Psicodelico

Raposa dropou um doce e me beijou em seguida. Senti sua língua, ainda ácida, percorrendo minha boca, trazendo à tona sensações que estavam dormentes dentro de mim há muito tempo.

Nunca fui chegado a psicodélicos, ou qualquer coisa que me acelerasse o pensamento.

Ela separou o corpo do meu quase que rispidamente e voltou para dentro do bar. Fiquei do lado de fora, sentado num batente do outro lado da rua, enquanto Johann e toda sua “gangue” lgbt conversavam euforicamente, alimentados pelo mesmo LSD que Raposa tinha tomado. Me foquei em continuar esvaziando o litrão de cerveja que eu trazia comigo, bebendo diretamente no gargalo.

A embriaguez não estava chegando, mas eu insistia por pura teimosia. De longe, eu podia ver Raposa deslizando pelo bar, nos braços de outro rapaz, mas aquilo já tinha deixado de me incomodar a um bom tempo. Juza atravessou a rua e se sentou do meu lado, com um cigarro parcialmente molhado, que queimava lentamente.

- Meu fio tá pensativo tá? – Perguntou-me

- Quando é que eu não estou?

- Verdade.

- Sinto falta de Amâncio aqui.

- Ah. Ele deve estar melhor pro lado de lá. As vezes acho que ele se sentia meio peixe fora d’agua aqui.

- É... Só que é estranho... Vai demorar pra eu me acostumar.

- É verdade.

Ficamos calados por alguns segundos, até que eu interrompi o silêncio, enquanto Juza tentava inutilmente acender o que restava do cigarro.

- Tô travado, cara.

- Como assim?

- Raposa tomou um doce e me beijou logo depois. Johann disse que esse era uma pedrada. Acho que ele não tava brincando.

- Velho. Você tá meio estranho mesmo. – Ele disse tentando disfarçar o riso.

- Estou. – Respondi, caindo também na risada.

- E você? Ainda tá afim dela?

- Ah. Nem tanto. Só gosto de estar perto mesmo. Tem algo nela que me estimula.

- Acho que uma coisa que nunca vai mudar é que você tem essa mania de se meter com mulher complicada.

- É. Parece que sim.

Ficamos novamente calados e Juza jogou a bituca de cigarro no chão.

- Vou ver se arrumo um cigarro com alguém lá dentro...

- Ok.

- Vai se hidratando que a lombra passa mais rápido.

- Tá. Vou fazer isso.

Ele virou as costas e atravessou a rua e eu esvaziei o litrão de cerveja numa golada só.

A gritaria ao meu redor tinha se tornado abafada e ininteligível e começava a me incomodar. Assim como a luz amarelada dos postes, que parecia que ia derreter os meus olhos.

Segui para o bar do lado, onde eu havia começado a beber mais cedo. Era um ambiente diferente, mais casual e “underground” que o primeiro. A vantagem é que no interior era completamente escuro e havia um sofá para sentar.

Passei por João, o dono do bar e pedi uma cerveja. Ele escreveu o meu nome em um papel e marcou a bebida que eu havia pedido.

Peguei a garrafa e me sentei no sofá que por sorte estava vazio.

Fui entornando a cerveja com uma velocidade não muito saudável, dada à sede que eu sentia.

O bar se chamava Espaço Ovni, e era iluminado por dois focos de luz negra e várias pequenas lâmpadas azuis, que dominavam a atmosfera do lugar.

Fiquei me perguntando como eu terminava em situações como aquela com uma certa periodicidade. Completamente fora de rumo, com uma sensação de desperdício e perda de tempo a cada garrafa que eu esvaziava.

Certamente não era o que eu tinha imaginado para a minha vida. Só que eu quase tinha certeza que se eu tivesse seguido meus planos de adolescência, eu estaria vivendo completamente entediado. Talvez as coisas tenham acontecido da forma que tinham que me acontecer... Ou talvez eu só estivesse no meio de uma bad trip lisérgica por um doce adulterado.

Eu só tinha que esperar passar, tanto a bad, quanto a fase.

Nesse pensamento, segui bebendo, esperando que o tempo não estivesse tão dilatado quanto me parecia... quando percebi que B. estava me observando, encostada numa parede, com uma dose de caipirinha na mão.

- Oi B. – Falei automaticamente.

- Pensei que você não ia falar comigo.

- Eu não tinha percebido você ai.

- Sei. – Respondeu-me.

B. sempre me pareceu uma pessoa desconfiada. Eu sabia que não acreditava em muito do que eu dizia. Talvez pelo seu histórico, quase tão trágico quanto o meu.

- Senta ai – Convidei-a.

Ela se aproximou devagar, mas não se sentou.

- Não sei se quero.

- Ok então.

Ela crispou os lábios, contrariada. E foi se afastando, sem dizer mais nada.

Continuei no mesmo lugar com a cerveja na mão e os olhos fixos na parede manchada de luz azul.

Raposa passou sozinha pela frente do bar e percebeu que eu estava lá dentro, vindo ao meu encontro.

- Pensei que você tinha ido embora.

- Nada. Só acho que o doce bateu pesado aqui.

Ela caiu na risada e me deu um beijo na testa.

- aqui também. Mas eu tô acostumada.

- É. Dá pra ver.

- Vou pra casa com Biel, ok?

- Tá. Vou dar um tempo aqui ainda.

- Quem é aquela menina que tá olhando feio pra nós dois? – perguntou-me.

- Qual?

- Aquela magrinha de óculos.

- Ah sim. É B. Ela está com raiva de mim por algum motivo que eu não consigo entender muito bem.

- É que você é complicado demais, bebê.

- Eu sei. Acontece.

Raposa riu e se despediu, correndo para fora do bar.

Eu me levantei logo em seguida, paguei a cerveja a João e fui em direção a B. que estava conversando com outras pessoas do lado de fora.

- Oi – Ela disse, antes que eu falasse qualquer coisa.

Me afastei um pouco das pessoas, ela me seguiu e ficamos frente a frente.

- Você quer me dizer alguma coisa? – Perguntei.

- Talvez.

- Diga então.

- Porque é tão difícil você assumir que está apaixonado por alguém?

- Não é difícil, por que eu não estou.

- Ah. Eu leio seus textos. Dá pra ver que está, pelo que tem lá.

- Bem. Eu já lhe disse que não levasse em consideração tudo o que eu escrevo.

- Mas eu levei. Por que não tem como aquilo não ser real.

- Taí o problema. Você prefere levar em consideração os textos que eu escrevo, ou suas próprias abstrações sobre o que eles significam, do que o que eu lhe falei.

- E como eu vou saber se você não está mentindo?

- É. Ninguém tem como saber. Mas o fato dessa ser sua maior preocupação é que nos trouxe a essa conversa. E sinceramente eu prefiro o meu silêncio a isso.

Ela ficou sem ter o que falar e eu deixei que ela seguisse com seus pensamentos.

Andei até o ponto de ônibus e subi no primeiro que passou, que por coincidência era um dos que me levava para casa todos os dias.

É raro quando esse tipo de timing acontece. Em geral eu fico esperando muito mais do que eu gostaria.

Passei pela catraca, me sentei em uma cadeira no fundo do ônibus e me deixei perder na visão das cores e luzes que se misturavam na rua.

Naquele momento eu tive a certeza que seria a última vez que embarcaria naquele tipo de viagem psicodélica, mas ainda me restavam muitas viagens em janelas de ônibus.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 19/07/2018
Código do texto: T6394155
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