A desconhecida

Olhos no chão, assovia um bolero, pensa na vida. A rua tranquila, calçada ampla, impecável. Aos poucos avista o quarteirão dos bares. Passa a ouvir a música em volta, ruídos de fundo completando a cena. Cada um é outro, cada um é o centro de seu mundo. Este ser que caminha pela noite amena está tranquilo, tem o coração, finalmente, pacificado.

Porém, de relance, a percebeu. Saía do carro, esguia, elegante, curvilínea. Já de pé, um clique no controle remoto, em seguida o piscar da fechadura eletrônica, guarda as chaves na bolsa a tiracolo. O ruído de saltos altos revela um caminhar decidido, o perfume deixa rastros. Muito mais que um ser: um arquétipo. Ato reflexo - para esses casos ele tem sentidos de tubarão - a localiza. No entanto, o ato aprendido reage e prevalece: desvia o olhar e o pensamento, qualquer coisa para se distrair daquele evento transcendental, recorrente, temerário. Perigo afastado... por enquanto.

Falta uma consulta. Sempre recorre a seus botões em situações-limite. Um deles, o mais judiado, por isso mesmo o mais experiente, o adverte:

- Não vale a pena, já conheço os passos dessa estrada. Olha pra frente, respira. Você pode.

Felizmente, o ruído de passos se distancia, a desconhecida deve ter entrado em algum dos bares em volta. Que permaneça assim: desconhecida, apenas uma silhueta esguia, elegante, curvilínea. Que não venha contaminar o coração pacificado.

Agradece aos botões, ao zíper, ao fecho-éclair:

- Fiquemos por aqui, obrigado. Nunca mais o mais do mesmo.

Os ruídos da rua diminuem de novo, o aglomerado de bares fica para trás, o passeio continua. Os boleros voltam à memória, retoma os assovios. Só aí percebe que anda na contramão, nem tinha notado os encontrões com os transeuntes na calçada.

William Santiago
Enviado por William Santiago em 20/08/2018
Reeditado em 02/10/2021
Código do texto: T6424718
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