DE VOLTA AOS DEZENOVE (DO TREM DA MEMÓRIA)

Eu adorava aquelas viagens nos trens de bitola inglesa! A pouca distância entre os dois trilhos, apenas um metro, fazia com que a composição balançasse bastante, tornando as viagens muito divertidas. Eu não conseguia sossegar em minha poltrona, nem em meu vagão. Percorria o trem inteiro, transitando entre os vagões, em busca de paqueras, quase inevitáveis naqueles frescos anos da minha vida, entre os dezoito e os vinte e um.

Certa vez, tomei o trem em Cacequi, com destino a Bagé, numa viagem que poderia durar dez horas. No meu vagão, só pessoas mais velhas e com caras sisudas. Mal o trem se movimentou, comecei a maratona entre os vagões. Mas não havia uma única guria no trem, a quem pudesse insinuar o meu charme. Num dos vagões, vi uma ceguinha que usava bengala, acompanhada de uma senhora que devia ser sua avó. E uns guris adolescentes, com caras de malvados.

Depois de percorrer o trem de ponta a ponta e nada encontrar, comecei a achar maçante aquela viagem. Decidi que desceria na minha cidade, São Gabriel, a menos da metade da distância até Bagé. Como ainda estava bem longe, fui até o último vagão e postei-me naquele compartimento que fica fora, no extremo posterior do trem e que, por não saber o nome, eu chamava de alpendre. Fiquei ali por cerca de duas horas, até que a fome bateu. Vi que era hora do almoço. Fui ao vagão-restaurante e escolhi uma das duas opções possíveis. O prato estava frio, como era de praxe. Comi e voltei para o alpendre. Apareceu por lá um cara, que me cumprimentou e fez-me companhia por uns vinte minutos. Eu não fumava. Mas, naquela situação, aceitei um cigarro que ele me ofereceu. Sem tragar a fumaça, pus-me a sugá-la e soltá-la pelo nariz. Funcionou como uma distração.

Na estação Tiaraju, a última antes de São Gabriel, vi embarcar uma

moça, mais ou menos da minha idade, que era uma lindeza! Não era para o meu bico, pensei. Mas, como não vira no trem nenhum rapaz que uma moça pudesse achar bonito, mantive uma pontinha de esperança numa paquera. O trem apitou e começou a se movimentar. Disfarçadamente, eu observava a mocinha. E vi que ela também perscrutava o ambiente como que a procura de alguém com quem conversar. Não queria parecer avexado. Por isso, deixei que o trem se distanciasse da estação e empreendesse sua velocidade "de cruzeiro", para então iniciar minhas andanças. De cara, encaminhei-me para a traseira da composição, o que exigia que eu passasse por onde estava a garota. Ao fazê-lo, olhei-a com discrição. Ela esboçou um sorrisinho e disse "Opa!", um cumprimento comum na região, à época. "Opa!" - respondi. E fui para o alpendre.

Não demorou dez minutos, ela também apareceu lá. Experimentei um misto de felicidade e pesar, ao mesmo tempo, pois em dez minutos estaríamos em São Gabriel, onde eu saltaria.

- Olá! - ela disse.

- Olá!

- Está melhor aqui do que lá dentro, né? Mais fresquinho.

- Verdade. E agora, com você de companhia, ficou melhor ainda!

- Você acha mesmo isso?

- Acho! E vim para cá porque esperava que você também viesse. Pena que minha viagem já vai terminar. Desço aqui em São Gabriel. E você, vai para onde?

- Bagé.

- Jura? Meu bilhete também é para Bagé.

- Se é para Bagé, por que vai descer em São Gabriel?

- Taí uma boa pergunta! Acho que porque a viagem estava chata.

- Estava?

- Sim. Mas acho que, com seu embarque, não está mais.

- Embora pra Bagé, então?

- Pra Bagé!

A gente começava a se entender, quando o trem cruzou a "ponte seca", já em velocidade reduzida, e iniciou a frenagem para a estação de São Gabriel. Ali, desceram umas dezenas de passageiros e embarcaram outras tantas. Desci rapidamente, comprei uns bombons e voltei para junto dela, no trem.

- Como é seu nome? - ela perguntou.

- Luiz. - eu disse.

- Eu sou Eleonora. Mas pode me chamar de Lena.

Sentamo-nos no vagão dela. A poltrona a seu lado vagara, em São Gabriel, e pude ocupá-la. Algum tempo depois, combinamos voltar para o alpendre.

- Você vai na frente. - sugeri. Eu vou em seguida.

- Ok. - ela assentiu.

Com isso, tentávamos não despertar a curiosidade dos outros passageiros, na esperança de que ninguém aparecesse para nos incomodar. Três minutos depois, lá fui eu para junto dela.

Quando me aproximei, ela olhava a paisagem. Seus cabelos, longos e loiros, esvoaçavam ao vento; seu rosto, iluminado pelo sol, irradiava beleza e serenidade; os lábios, pintados de rosa, eram de estranha e doce sedução! Para que ela não notasse, ainda, minha presença, fiquei em silêncio, admirando-a e pensando que, por uma criatura assim, era fácil um homem se apaixonar. E que um cara inexperiente como eu, sem uma ocupação definida, sem eira-nem-beira, não merecia a atenção dela. Pensei até em voltar, para pôr-me a salvo da tentação. Mas ela me viu e disse:

- Ei, você está aí?

- Sim. Estava a admirá-la.

- Venha cá! - disse.

Meus olhos encontraram os dela, de um azul de céus e mares, e a emoção quase me fez chorar. Não era uma mulher, era um anjo!

- Venha! - insistiu. Tem medo de mim?

- Não. Só estava vendo o quanto você é linda!

- Então me beije!

Beijamo-nos, abraçamo-nos e nos dissemos palavras que só dois corações arrebatados conhecem. O tempo de viagem até Bagé foi pouco para tanto encantamento. Quando descemos na estação de destino, familiares a esperavam com uma camionete. Dali, iriam diretamente para a fazenda da família. Ela apresentou-me como companheiro de viagem. Pediu que esperassem um pouco. Tirou uma cadernetinha da bolsa, anotou seu endereço em Santa Maria, onde cursava a universidade, e um número de telefone.

- Me ligue, tá? Dentro de duas semanas estarei de volta a Santa Maria e atenderei neste número. Tchau!

- Tchau!

Nunca mais soube de Eleonora. Não tive coragem de ligar para ela. Nossos mundos eram muito diferentes. Talvez, por sua juventude e inexperiência, ela ignorasse essas diferenças. Mas não eu. Um cara sem pedigree, desde cedo tem a obrigação de saber o seu lugar. O amor não tem a solução para tudo. Ela que seguisse o seu destino e fosse muito, muito feliz! Eu continuaria por mais um par de anos as minhas paqueras de trem, enquanto construía, paulatinamente, o meu lugarzinho no mundo. Bastava-me, desse episódio, a lembrança de sua figura angelical, com o sol a bater-lhe no rosto, os cabelos ao vento, os olhos de céu e mar; e os beijos no alpendre do trem, que jamais esquecerei.

José Luiz Barbosa de Oliveira
Enviado por José Luiz Barbosa de Oliveira em 16/09/2018
Reeditado em 13/12/2019
Código do texto: T6449990
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