microconto-NÃO SE JOGA MAIS BOTÃO

Deitado na cama, onze e cinco da noite, e as lembranças voam no ar misteriosamente belas e alegres, quebrando a lúgubre letargia de um domingo cansado.

Carlos se levanta, vai até a cozinha, prepara duas xícaras de chá de camomila. Aguardando o tempo até que macere devidamente (afinal tinha um tempo, aquele quase antes de esfriar, conforme lhe dissera certa vez seu avô), arrastou-se até o segundo quarto (o dos "entulhos", conforme já se referira algumas de suas ilustres visitas), sentindo o peso nas costas de tanto ficar deitado.

Ao se abaixar um pouco, alongando sabe-se lá o que (nem sabia para quê), deteve-se no "estrelão", sim a quadrinha de botão que comprara há mais de dez meses no Mercado Livre. Seu coração se encheu de ternura melancólica.

O estrelão representava algo distante. Séculos passados. A lembrança, o símbolo, de um mundo mais familiar e querido. Sentiu saudade da infância, uma sensação de eternidade dentro de si.

Lágrimas se agitaram, os olhos pesaram, mas ele não choraria. (Nunca chorar águas passadas. Esse já não sou mais eu, caro "estrelão". Meus amigos não compraram os times de botão. Não deu certo. Não daria mesmo! Eles estão beirando os quarenta anos, Carlos, o que você queria, afinal?).

Ele ficava abismado como seus amigos tinham mudado. Por quê não aceitaram seu convite de jogar botão novamente, todos juntos, seus amigos de infância, relembrando, curtindo?

A dúvida perdura um segundo apenas. Logo seu olhar está embaçado de indiferença desesperançosa, ausente e solitária. (Sim, Carlos. Você é um lobo solitário da neve. Você e sua esposa. Nova família, agora, não entende? Para sempre!).

Foi à janela. Espiava a rua. O vento frio escorria nas folhas e lhe acertou o rosto. A chuva tinha parado, o mar explodia tão próximo e distante. Conversas murmurosas na calcada. Dois jovens escondidos, cheiro de maconha.

Então, de súbito, andava no ar a explicação e ele a pegou. Palavras lhe pingavam feito gotas, lavando seus olhos.

Seus amigos não queriam nenhuma disputa. Já não queriam mais campeonatos de ping pong no salão de jogos do prédio. Já não admitiriam jogar bafo com figurinha de chiclete. (E ele sorriu aliviado ao se lembrar que quase gastara duzentos reais na coleção completa daquele famoso chiclete da copa de 1986!).

Não, não havia mais disputa coletiva. O politicamente correto tinha se apoderado de todos. Cada um tinha se entregado ao próprio destino. Lobos solitários.

O pensamento novamente flutuava à toa, solto no ar. E Carlos ainda viu a imagem de um chute por cima de uma caixa de fósforos de goleiro. Ele marcou o gol no seu amigo Junior e ele teve que sorrir e admitir que Carlos era mais astuto que ele. Mais pensamentos voltavam em trovoada, mas ele os afastou.

Saiu da janela, apagou a luz e voltou para pegar as xícaras de chá.

Alexandre Scarpa
Enviado por Alexandre Scarpa em 07/10/2018
Reeditado em 08/10/2018
Código do texto: T6470304
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