A Casa Amarela

Dizem que antigamente, nos idos de 1877/79, o Ceará padeceu de um dos mais graves períodos de seca que se tem notícia. Subdesenvolvido, ainda hoje, esse estado sofre com a ausência de chuvas, os açudes secam, os rios, esses, nem se vêem mais. O que há são pontes sobre estradas de terra fina, o fenômeno do assoreamento. É triste, leitores. Como costumo dizer, os rios do sertão são estradas onde andam pedras.

Mas essa história aconteceu de vera. Não é invenção de escritora fantasiosa. Naquele tempo, as casas de taipa, de tijolo, de palha, eram todas muito distantes umas das outras. Andava-se léguas pela vareda do gado ou cortando pela caatinga para chegar-se à vivenda de amigos, parentes, conhecidos. Isso porém nunca foi problema para menino, pelo contrário; desde que o mundo é mundo, menino gosta de aventurar-se, sair ao deus-dará com os amigos, baladeira no bolso, alçapão para pegar passarinho, linha e anzol com os mais experientes. Mas na seca não há tantas diversões, no máximo acertam lagartixas com pedras, avistam uma cobra de cipó se esgueirando pelas trilhas, apostam corrida pela estrada poeirenta que parece não ter fim. São todos assim: acordam, comem o que tiver para o café, reúnem-se em grupos de três ou quatro e adeus, só aparecem na hora do almoço e de tarde é o mesmo ritual, pela boca da noite é que apontam no terreiro de casa.

Apois. Um sertanejo sério, muito devoto de nosso divino São José, era pai de três diabretes desse naipe. Não gostava que os meninos fossem longe porque ele, com os próprios olhos, já vira retirantes maltrapilhos, esqueléticos se arrastando pelos caminhos, homens, mulheres, velhos, crianças de colo. Para onde iam? Quem sabe. Urgia fugir da fome, da seca e da morte, muito embora essas inimigas os alcançassem pelas mais diversas paragens. Vez por outra podia-se encontrar um corpo pendurado em galho de jatobá, um montículo de terra encimado por uma cruz, baús de roupas e utensílios deixados pela falta de forças para conduzi-los.

Perto da casa da família, respeitando-se o conceito sertanejo de perto e longe, havia uma casa grande e deteriorada. Um casarão amarelo, imponente em meio ao nada da paisagem. Ossos de criação viam-se pelo terreiro, touceiras secas de mato, pedregulhos brancos e redondos transportados por mãozinhas que já não estavam mais ali, de um rio que há muito deixara de correr. Ora, o homem, na hora da janta, advertia aos meninos que não se aproximassem daquela casa. E. se perguntavam o porquê, recebiam de volta um olhar duro, de severa repreensão. Baixavam a crista mas por dentro ardiam de curiosidade porque menino é assim, dizer que não faça é o mesmo que mandar.

Um dia, cansados dos folguedos da tarde, os meninos acharam-se defronte à casa proibida. O Sol lançava seus últimos raios sobre a caatinga, uma bola vermelha se escondendo atrás do serrote. Eles se entreolharam, pensaram nos olhos severos do pai mas a verdade é que ele não estava ali, aliás, não precisava nem saber. E se lançaram pelas escadas que levavam ao umbral.

Encontraram a porta alta e antiga apenas encostada. Empurraram-na. “Nhééém”, gemeram as dobradiças enferrujadas daquele novo mundo inexplorado. A luz da tarde entrou primeiro, revelando móveis austeros, retratos de gente que eles jamais conheceram, um São Lásaro em óleo sobre tela pendurado na parede com os cães a lamber-lhe as feridas. Nada de mais, pensaram os meninos, era só o pai querendo lhes fazer medo. Que mal havia entrar em uma casa abandonada? E emburacaram. Exploraram a sala, o corredor, a cozinha, o quarto dos santos, os diversos vãos que, pela mobília, outrora teriam pertencido a moças, crianças, empregados e o quarto do casal. Este era diferente. Havia um que de mistério a envolvê-lo. O menino mais novo sentiu os pelos da nuca se eriçarem, não sabia ainda mas era sensitivo. Ao final do corredor, aquela porta de mogno, a penumbra, o silêncio... Irresistível demais para os três peraltas. Caminharam em passo de gato, giraram a chave na fechadura e desvelaram o que o pai lhes encobrira: em cima da cama, jazia um corpo de mulher. Uma mulher morta. Devido ao ambiente sem ventilação, o corpo ressecara-se, como se a mulher tivesse se deitado para um breve descanso e não acordado nunca mais. O vestido longo, os sapatos, o camafeu, os dentes arreganhados, os cabelos espichados e as unhas crescidas após a morte invadiram os sentidos dos meninos recordando-lhes histórias de assombração, covas abertas como bocas pretas, medo, pânico e os três dispararam a correr de volta para casa gritando pelo pai, pela mãe, o medo de olhar para trás e ver a mulher perseguindo-os maior que tudo na vida. Caíram aos prantos nos braços do pai que voltava do roçado, enxada no ombro e saco de milho seco nas costas. Entre soluços, contaram o que tinham visto.

O pai os ouviu em silêncio. Não era homem de bater em criança, peia não ensina ninguém. Disse que os avisara. Que filho não desobedece ordem de pai. E como castigo pela desobediência, voltariam os quatro àquele lugar, abririam uma cova no quintal e os três garotos conduziriam o corpo à sepultura que era lugar de cristão falecido.

As sombras da noite já se estendiam como uma mortalha negra sobre as árvores e as pedras. Os meninos engoliram o choro. E seguiram no rastro do pai em direção à casa amarela.

Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 16/11/2018
Reeditado em 12/12/2018
Código do texto: T6504160
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