A cura

Altamiro era professor. Professor de história. Dos bons. Quando criança, - como bom brasileiro -, aderiu ao sincretismo religioso e frequentava a missa e, para reforçar, o terreiro de dona Laura, que incorporava o pai Miguel e dava passes, e fazia pequenas curas, e o livrou muitas vezes do terrível mau olhado ou mesmo de um encosto, cujo diagnóstico era feito pela própria mãe, em casa: - Este menino está triste, amuado demais. Logo à noite, levo ele pro pai Miguel consertar.

Vemo-lo agora, já homem feito e com terrível dor no rim. Rim esquerdo. O médico, após exame, já tinha indicado cirurgia. A pedra era grande. De nada adiantaria ingerir muito líquido. Mesmo assim, por via das dúvidas, o jovem professor tomava chá de quebra-pedra, o que o levava a interromper frequentemente as aulas para idas ao toalete. Uma chateação.

Pior mesmo eram as crises. Fortíssimas. A injeção de analgésico era um paliativo. Um ex-aluno, autoridade na burocracia pública, prometeu-lhe agilizar os procedimentos cirúrgicos, conduzindo o mestre aos primeiros lugares da fila. Altamiro contestou o alvitre, não por zelos morais, mas porque tinha um medo colossal de submeter-se ao ato cirúrgico. Queria mesmo era que não houvesse vaga, nunca!

Ultimamente, os padecimentos eram horríveis. Cólicas começavam brandas, mas se agravavam e requeriam os fortes sedativos. Uma penúria! Uma vida pela metade! Um amigo lhe indicou uma alternativa ao processo cirúrgico: - O médium Roque está operando milagres. Parece até o Zé Arigó. Por que você não se consulta?

Altamiro voltou à infância. Lembrou-se do pai Miguel, do terreiro, das velas – única contrapartida – que eles levavam para o centro; reviveu o cambono ajudando o pai a espantar os espíritos maus e a felicidade que era a vida dali pra frente. Dona Laura já morrera e, viva que estivesse, não era sua especialidade fazer cirurgias...

Cheio de fé, procurou o Roque. Encontrou-o numa casa espaçosa, cheia de gente aflita e de alguns colaboradores na empreitada de curar. Chegou a sua vez. Entrou numa sala escura, onde chegou a ver, sobre uma das mesas, o possível instrumento que lhe traria a cura: uma faca luzidia. Seria usada? Estremeceu... Roque ouviu o padecimento e, com o paciente de costas, navegou pela epiderme com a faca, aplicando-lhe a seguir grande quantidade de esparadrapo. Uma cirurgia de poucos minutos. O remédio, mediante acerto pecuniário, seria entregue por uma assistente do médium. Saiu de lá com a esperança de uma vida nova. As costas lhe pareciam firmes, presas e - fantástico! - sem dores. Roque recomendou que retornasse, em quinze dias, para a retirada do curativo.

Verdade é que Altamiro passou a se sentir bem. Sem dores. Sem crises. Dava certo trabalho, no banho, manter aquela faixa larga de esparadrapo. Mas tudo vale a pena a quem vive um problema. Vida que seguia. Aulas caminhavam, e o professor escrevia na lousa com desenvoltura e explicava com alegria. Tiradentes morria, os bolcheviques tomavam o poder, a Bastilha caía, Fidel chegava a Havana... Tudo, tudo, sem maiores dores.

Era chegado o dia da retirada dos pontos, pontos espirituais, pensou ele. Altamiro encontrou a casa fechada. Bateu, bateu e nada... Questionou o vizinho ao lado, de quem veio a resposta:

- Ele era meu inquilino aqui. Estava com o aluguei atrasado há três meses. Eu fiz uma viagem e, quando voltei, o senhor Roque tinha fugido.

Altamiro voltou pra casa. À noite, sentiu-se muito mal e foi internado às pressas. Ainda com o curativo.