O pequeno pensador - Origens e uma conversa com Bartira

Anacleto anda sempre assim, ensimesmado, e isso é sua marca desde criança que preferia a solidão do quarto onde ficava lendo por tardes inteiras nem que fosse gibi e fotonovela, a brincadeiras de rua. Foi criado pela tia que nunca reclamou da quietude do menino por quem não teve que se preocupar com os perigos da vida. Se o jeito recluso o torna diferente, injustamente tido como metido a “não me toque não me rele”, também tem o repeito das pessoas por ser alguém a quem tudo se pode perguntar. Na cidadezinha onde nasceu e vive, não há quem não o conheça.

Um dia num banco de praça, lia compenetradamente Don Casmurro quando Bartira, neta de um bugre chamado Ramiro, sentou ao seu lado e puxou conversa:

- Anacleto, estou muito triste, preciso desabafar, quero pedir sua opinião a respeito de uma coisa que está me intrigando. Parece que tudo aquilo de que vivo fugindo me persegue, não sei o que é isso. Outro dia foi a última: tinha medo que certo alguém, uma amiga, digamos assim, que não convém aqui dizer o nome, me pedisse para fazer alguma coisa, já que há duas semanas nada me pedia e como sempre, a contragosto, lhe atenderia. Minha intuição estava certa, pediu-me para cuidar do filho, uma criança que parece movida a pilha de tanto que se agita a mexer em tudo pela casa. Programava ir ao motel com o marido num sábado à tarde. Não é uma folgada para pedir uma coisa dessas? Que afronta! E de fato, como sempre, querendo dizer não, disse-lhe sim. Por que será que tudo o que mais temo me acontece? Por que simplesmente não consigo dizer não?

- Ora, Bartira, acontece porque seu foco está naquilo que teme. E a gente sempre teme aquilo que julga não ter poder sobre. Ou seja, teme principalmente alguma coisa de que não temos consciência e que nos faz tremer quando certas situações se repetem a nossa frente. Nos paralisa, faz suar frio, acelera os batimentos e nos faz evitar a todo custo. Por isso os encostadores se dão bem. Contam com o medo das pessoas de boa vontade e também daqueles que por vaidade dizem sim quando querem dizer não. São os folgados que no mundo tem aos montes; não fazem ideia de como atormentam pessoas que perdem noites de sono quando não conseguem enfrentá-los e cedem às suas vontades como você fez. Eles conseguem pequenas coisas que julgam grandes vantagens e até se sentem superiores, porém, não vão além, estão sempre naquela toada. Encostam um pouquinho nesse, depois naquele, mas nunca alçam voo. Suas asas não são desenvolvidas apesar da idade. Mas, preste atenção, menina: é preciso estabelecer-lhes limite. Imponha-se deixando claro que a partir de certo ponto não podem invadir o seu direito. Sempre é bom lembrar o que dizia minha tia-mãe: “enquanto houverem trouxas, os ladinos vão vivendo”. De mais a mais, será uma pequena atitude que se repetida, fará aos poucos apagar essa programação inconsciente, que te faz sentir raiva toda vez que impotente cumpre a risca.

Passado algum tempo encontraram-se novamente, o pequeno pensador e Bartira que lhe agradeceu o sábio conselho dizendo que apesar de tremer e suar frio tivera coragem de negar um novo pedido da amiga que, aliás, não demorou a acontecer. Completou dizendo que só se chateia com o fato de que aquela, depois de encarada, toda vez que a encontra vira a cara. Anacleto sorrindo, prontamente a consolou dizendo que nada perdera. Não fará falta alguma, disse; justificando que amigo que não permite ao outro dizer não, é melhor que se afaste.

Despediram-se, e Anacleto seguiu seu caminho a pensar em Cecília, que mora na casa de número 471 que fica na esquina da rua que cruza com a sua. Seu coração bate célere pela moça de tranças loiras que lhe sorri toda vez que se veem.