Morrer sem advérbio

A primeira impressão é a que fica, é a que fica nas passagens muitas vezes esquecidas, algumas vezes nunca a mesma, raras vezes uma imagem eterniza-se adentro de uma pessoa.

Quem conhece fatos, natureza, os conta para alegria do espírito, esconde para assegurar seu sujeito ou faz piada, música, estende o domínio da verdade à arte.

No entanto, é melhor mencionar palavras, palavras ou marias. Perdida na escuridão das árvores, num bairro de ruas ainda paralelepípedicas, o telhado recoberto de folhas, algum jardim na frente, todas as noites uns cachorros uns gatos carros compõem; os sons da noite são festas de cidade grande.

Juntos (lentamente o dia acabou em noite) viram dentro do lotação o passar da escola de samba e as noviças mais fulgurantes aparecerem no céu.

No passeio, na sombra de uma árvore cujas folhas borboletas dão num famoso chá, uma dama triunfava o odor eloqüente e áspero por todo derredor. Procuraram a campainha, pelas mãos de Diego nem um som chegou da casa.

Rua tranqüila, luz acesa. Nem música, nenhuma voz.

O eco não esbarrou nas grades: — um instante — silêncio — uns instantes — silêncios... O trato no horário, o certo era acontecer.

Tocaram a campainha novamente. O eco não alcançou os ouvidos.

O portão apenas cerradoaberto, verde, estacionaram na porta principal. A campainha estalou e retornou pro lado de fora da porta. A mão de Bela no bolso do casaco, inquietação pelo continente de Jual, pressionado pelos rins, desde sempre com bexiga cheia, desejava ir ao banheiro.

Ele acendeu um cigarro, um ros-ros-nar de cachorro chegou de longe, a lua emagrecia em altas nuvens, esperavam ali, na varanda ainda sob a fragrância espessa da noite esperavam por ela atender a porta. Em pé, sem saber o que fazer, os três reunidos tocaram mais uma vez a campainha. Soou alto lá dentro, uma companhia acesa, ela jogou o cigarro fora; o cigarro caindo na grama. Numa das cadeiras da varanda Diego se sentou.

A luz que os atingiam retorcida e rala vinha do poste. A rua sombreada, o perfume, as estrelas, claridade nas nuvens. “Ela combinou o horário!” Disse Bela. “Será que precisou sair?” Remedou Jual. “Ela nos teria avisado.” “Já já ela está de volta!” Hesitaram. Excitados. Hesitados. Não sabiam o que faziam, faziam o que fariam fazer. À esquerda uma máquina de se locomover na garagem plana, uma grande janela protegida com grades negras. Ela checou a porta principal. “Cerrada — aberta!” A porta aberta, ela queria entrar, Diego intercedeu contra, porém o voto minerva ficou com o rim que comunicou com a bexiga a decisão do sim.

Do sim necessário, do sim arbitrário, evasivo e medicinal, do positivo, o sim na crença do sim, na fé do sim, o sim biológico; Jual disse sim.

Ela angulou quem não rangeu, a companheira acesa, os três em pé soletraram o nome, alto disse ela, veio a vez de Jual, por último a dele. “Maria! Tem alguém em casa!” Nada se ouviu, permanecia um silêncio torpe no ranger dos sapatos. Entraram na copa iluminada, as cadeiras, uma parede, uma saleta com uma mesa um sofá televisão cortina.

A sala vazia pela luz da copa.

Seguida de perto pelos amigos, riso aqui, brincadeira, ela ausente, casa alheia, estranhamento. “Vamos embora!” “Vamos esperar na varanda.”

Conheciam o onde, o como, e o até o quarto dela. “Você não acha que a porta aberta é um sinal?” “Talvez!” “Para que nós entrássemos?” “Sei lá” “Maria!” Cozinha, banheiro, Jual não resistiu, voltou reclamando do chão molhado. “...e não tem sabão na pia!” Reclamação ou apologia da ausência. Faziam na casa, queriam e não queriam ficar. Queriam esperar, queriam partir, não sabiam o que fazer. Inusitado.

O corredor caminhava para os quartos. Lá, no legítimo fundo, uma parede, a sala de estudo, a escada de leque omitida, o quarto dela em cima — mezanino. Os três chamaram-na. “Não tem ninguém.” . Nada se moveu, a água do banheiro ainda fazia barulho na caixa. Pelas esferas de vidro se olharam, “Vamos embora!” . Vidros se olharam. Vamos esperar do lado de fora!” No roçar das mãos do cabelo, o relógio de parede marcava as horas, sem fazer alarde, sete e trinta; naquela altura, invadindo propriedade privada, conhecida, privada — até então silenciosa. Jual convidou todos para fora, ela não se persuadiu, ele meio mole, na inconseqüente preguiça, queria esperar ali mesmo, sentado na cadeira da mesa.

Por Maria ou pela ausência da mesma, por uma explicação, por não saber agir, porque teria a noite toda livre, havia andado. “Maria está chegando!” Que ela explicasse aquela situação, aquela falta, somente ela poderia fazê-lo. “Já estamos aqui dentro!” “Não há ninguém na casa.” “A porta estava aberta!” “Ela nos convidou?” . Disse Bela. “Pode ser um sinal!”

Entrar pela casa inteira como seria na festa, sem a amiga, fiando a teia do labirinto.

Ela pescou os dois para concluir a invasão. Ele não quis, Diego morreu pela boca. Entraram pelo corredor, quarto por quarto, tudo muito arrumado — como uma piada — na sala de estudo, ela se adiantou até o pé da escada. “Tem uma outra luz acesa!”

Num dos degraus esperou companhia, subiram juntos. Moça na frente, viram a cama vazia, a luz da suíte acesa, não havia ninguém.

Jual até o banheiro enquanto o outro mirava um livro na estante — já um livro na mão. Ela sentou-se à beirada da cama, dois travesseiros visíveis na guarda de viúva. Voltava da janela, a janela do banheiro, no quarto com a cama mexida, ao ouvir o grito dele — palidez embutida na pele em lábios incolores. Ela driblou a própria sombra, Jual falecia balbuciando alguma coisa.

Viram-na deitada do outro lado da cama, quase com a parede, meio por-de-baixo, o sangue farto pelo ouvido exposto, a arma caída a dedos da mão direita, o cabelo negro cobria uma pequena parte do chão de taco, disse ela não, Diego deixou o livro taciturno na cama, passos sobre a jovem paralisada.

Não parecia uma mulher feia, nem mesma ferida, apesar do sangue, ainda respirava encantos. Diego olhou a pulsação dela, Bela chamou a ambulância, também chamou a polícia, mas quem primeiro chegou, um grupo de amigos, a tragédia não envergonhou ninguém. Os amigos aglutinados na copa. Eles chegaram: médicos, policiais, fardas brancas, farda. Jual ainda estava no quarto quando os médicos a removeram de soro e balão de oxigênio. O policial experimentava as primeiras perguntas, oito e cinqüenta e os rapazes foram embora, os amigos para a delegacia, interditada a casa.

Um longo interrogatório e a reedição de itens. Dispensados enfim, direto para o hospital. Não chegaram tarde. Saíram do hospital abraçados. Jual não dormiu em casa, os três foram para debaixo do mesmo teto. Sentados no sofá da sala, música, vinho doce, aninhavam-se. Naquela altura algumas das perguntas já haviam sido respondidas, pelo menos a mais importante. Quem é que deu o tiro, a polícia perguntou, questionou a estranha ação deles de invadir a casa, mas mesmo assim, nada os comprometiam com a polícia, talvez com a família dela, talvez agora a vida se comprometesse.

A polícia falou em suicídio, talvez em assassinato. As idéias se parecem. As idéias de dor se parecem. As idéias de bem sempre se parecem. Semelhantes, sempre semelhantes! As perguntas são perguntas.

A novidade daquela sexta-feira não era líquida, pesava ouro, pepita com sujeira, uma situação de contexto inoperável. Ficaram conversando supondo a suposição.

Viável e aérea, pelos pulmões, pelos corações, por estupidez. De noite ou de dia, um grande crepúsculo anoitece, bronzeia o corpo, apedreja a alma pensante, pois pensar supõe: uma ausência possível, estranha, um absurdo.

Os olhos graúdos ainda não ajaezavam por completo. Deitada apenas, o sangue escorrendo, o ouvido em autópsia, fazia o mundo da beleza sua parte, se manteve desejável de amor, ainda amável, não é a bala que a matava, morrer era coisa médica. Caída, dormindo, não tinha no rosto uma face de expressão, não estava lívida, com só corpo era gente, era persona, não precisava de mais. Ela era sua amiga, da mesma forma Jual dele, Diego de Maria, Maria de Jual eram extremos recentes, no coincidente do um, no perante do outro.

Jual não tocou no corpo, em pé permaneceu até a polícia chegar, em pé ele não a via, um corpo apenas, o preguiçoso Diego se ajoelhou, colocou a mão no coração, os peitos ainda amáveis, uma manta cobriu até o pescoço, o alvoroço de mais tarde ficaria no almoço da vizinhança.

Uma taça a mais de vinho, Jual e suas lágrimas deitadas pelo corpo. Bela sentia a temperatura fria das mãos dele. Não passava ainda da meia-noite, amanhã cedo Diego iria trabalhar, ela não iria à aula, chorando Jual teria a manhã livre. Os olhos foram fechados e neles porneles ela não sofreu mais. A polícia sutilizou a morte com a possibilidade de assassinato. Levemente a casa dominada. Adormeceu primeiro quem iria trabalhar, sobrou a cama vazia do quarto de hóspede. O vinho na sala-de-estar da garganta, ele virou o disco, um cigarro aqui, ela fumava no hábito alheio.

Sala de janela aberta, o ar fresco dizia da noite; é necessário amor. A história do necessário é a história do amor. Da fábula a epopéia — um berço esplêndido que deixa transparecer todo homem é mortal.

Ninguém naquela noite sonharia com a morte, ninguém, não de fato aberto, uma película cinza legendaria os sonhos humanos, as noites humanas se levantam, a distância da noite para o dia não diria sentido a eles, talvez uma sensação de descanso sobrepujaria todos.

Pela manhã o delegado os acordou. O resultado da autópsia era positivo ao suicídio, nenhuma digital havia sido encontrada deles que merecessem suspeitas. A porta havia sido aberta pela cotidianidade, os pais da morta já tinham sido avisados. As únicas digitais encontradas além das deles eram da família. Não foi possível o assassinato, não foi possível encontrar um deus para responder inquérito, estava morta — os deuses estão vivos.

Ele atendeu o telefonema do delegado, quase onze horas, de tarde os três compareceriam ao distrito. Eles não conseguiram voltar a dormir, fizeram almoço e esperaram por Diego. Jual avisou a família onde tinha passado a noite.

Se reuniram no começo, no começo, no meio, no fim de tudo era apenas uma tarde. Trocaram algumas palavras de ocasião, os suspiros largos, os olhos cheios de manobras e os sentidos organizando o corpo.

A idéia foi para mesa. Por mais discretos que fossem todos, a pena, o sabor forte de covardia, o gosto pairava — uma vergonha. O estado de choque que tal caso proporciona restringe a vista.

Não há mesmo liberdade morta. Pelo menos não conheciam. O muito que sabiam esclarecia nada. Os motivos dos quais usou haviam se dissipado com ela. O enterro no final da tarde, desde que a família chegasse. Diego aludiu alguma coisa com Jual a respeito das digitais achadas na porta principal. “Não tem nenhuma importância.” “A polícia não tem suspeitas, estão convencidos.”

Cedida a força. Umas gotas de lágrimas, uma gota de idéia caiu sobre o prato. O almoço e um receoso ar. “...tão infeliz e tão corajosa!” “...com um tiro no ouvido.” O corpo inconsciente caído, ensangüentado.

Tinha olhos grandes e risonhos, mal mal podia recolhê-los para se tornarem sérios. Na escola a via alegre, em casa as vezes que viu, que presenciou, presenciou com a família afeto, abusava deste com irmão anos mais novo. O pai a amava, a mãe queria amá-la, na família nada era visto com premeditação espontânea. Diego e Bela muitas vezes juntos lá almoçaram. Na mesa entre a prosa e a sobremesa, entre a lei e a vaidade, entre olhares, desolhares de ironia.

Quase todos os dias, com o consentimento do tempo, saía de saia, pernas longínquas, frisava bem os tornozelos, Maria do balé, da dança obviamente, os cabelos lisos, o preto cobria-lhe os ombros. No quarto em que muitas vezes esteve, nas longas tardes masculinas conversam duas mulheres, sobreamigas diziam as amigas, não se pode confiar em qualquer assunto, homens mulheres amigas pessoas mundo. Agora não fala, escuta, vagueia no pensamento de outros, de Bela, chorando e achando chorar a dor, de suicídio morreu se foi para o estrangeiro. “Não foi assassinada, ninguém matou minha amiga, meus colegas ficaram perplexos.” Não houve festa, a morte não deixa fresta, ocupa tudo, um outro tipo talvez de festa.

Um policial ficou naquela noite protegendo a casa de qualquer assalto.

Bela arredou o prato à frente, engoliu a dificuldade garganta abaixo, pensou em mais alguma coisa, Diego não punhava nenhum talher.

Quem ama fica com raiva — quem odeia nunca fica saciado.

Deixa vivos os vivos, uma desmedida viva. Uma amiga e não foi de desastre de carro, a bala quente mandada pela ciência de mãos tão finas implodiu todos os planos, ficaram aos vivos e a sorte de amá-la.

Pedir reza finita, pedir corpo, pois alma nenhuma sente prazer, alma nenhuma fala, pensa, pois a palavra alma não diz a matéria de que consiste.

Motivos levaram-na ao ato, extenso ao ponto de abarcar............embaraçoso, estéreo a ponto de, dolby estéreo, estéreo a ponto de abarcar felicidade como conteúdo acústico? Não, não sabiam, por isso ali, unidos em torno a carne fresca, fraca, não sabiam, sabiam como todo mundo, quem os ver primeiro, com o corpo flácido, dormindo ao raciocínio de uma criança, quem os ver primeiro nunca esquecerá a definição de fenômeno.

O ensejo no mundo. É a impressão que fica, é a dor que fica para quem continuar a viver, é a arte de viver procurando o verdadeiro artista, é o que fica — a vida fica. A fala na laringe dosoutros.

Ainda viva, frescamente na memória de todos aqueles que a amaram. É com o tempo em tubo de ensaio que a vida descola, custa a se soltar da carne, perder o espaço não é tarefa de horas.

A pessoa presente iluminando como cometa a vida de muitos.

Nestes primeiros dias ainda mais enigmática, na rodinha da escola, no paladar dos amigos, um problema para a polícia, uma fatalidade para a família.

A sensação de passado por todos os cômodos, a casa um acontecido tarde de mais àcontecer. Não voltaria mesmo que todos gritassem juntos, não voltaria, deitada em seu quarto, respirando lentamente, o coração que batia batia no peito dos três. Ele olhou sua pulsação, ela se despediu, sem lágrimas, sem fala.

Duas horas da tarde, os três entraram num fusca e foram para a delegacia. O delegado demorou para recebê-los, demoraram para sair da delegacia. O suicídio e favas contadas. Liberado o corpo, o enterro seria no domingo.

Era noite, voltaram a se encontrar num bar à véspera do enterro. A família havia chegado na noite de sábado. Diego já tinha ido encontrá-los no aeroporto.

Sentados, a cerveja mantinha um segredo perante quem? O vasto mundo os rodeava como abelhas em dança de guerra.

Em tempos onde alguém querido morre, na estupidez do cotidiano, é necessário mais do que fé para suportar.

Bebiam eles e eles amanhã, juntos iriam visitar a família dela.

A luz, o silêncio enfadonho faziam ranger ossos nos quais não fariam mais barulho. Nas suas mãos pulsava o coração dela. Bonita até o limite do pode, até retirá-la do quarto de terra. Surpresa verdejante vê-la no chão, o sangue correndo, o pulso enfraquecendo, se aproximando só: do espaço perdido obtido pelo corpo.

Com todos, nas laterais de cada copo de cerveja — a mostrar o absurdo sabor de estar vivo. Jual confessa amor amando, dirias na solaridade do dia, na mesma noite o amor sentia, sente sentido infinito solidão.

Chorou muito sem pensar nos que estavam em volta; as mesmas carnes esquartejadas.

Dezenove anos completos, a fraude mais delicada que todos participam — com animais ou com deus a morte é certa na cabeceira da cama. Bela desviou a conversa e relançou a pergunta. A amiga não respondeu, ninguém manifestou vontade. Todos juntos, juntos e não mais sozinhos, juntos e sozinhos, uma pequena diferença nos alcança quando estamos para dormir sozinhos ou juntos. Um homem dois homens duas mulheres, um quartel ou um prostíbulo, um mosteiro, uma abadia, uma cúria, um templo, o muro, o rio, a fogueira, a mesquita, o triste não ocupa lugar.

Bela continuou a dizer, na voz dele, que a amiga morreu porque desejar dispensa motivo e motivo não é tudo, tudo termina, tudo é vida e vida não se explica nem mais à Maria, nem a ninguém. Enterrada — não, ela não sabe, nem sabem eles. Por natureza ou crueldade, aflição medida humana. Coisa outra qualquer.

A necessidade do morrer das formas,

— compreender o trabalho,

— não se diz perder, o ama,

— se este ente é gente,

por vontade própria, por ferir vontade foi ao corpo, e ferir, e aferir a alma, nada sobrevive de pé. Uma jovem se mata, nem mesmo sobrevive o mundo que continua mundo.

Meia-noite — continuaram — cerveja — mesa de bar.

...a vida sabendo o que esperar manda a palavra amor, notícia estranha de Maria. Foram eles que deixaram de viver vivendo a sensibilidade comum do cotidiano.

Ninguém por Ninguém. Morrer por ninguém. Por muitas mortes alimentaram glórias.

Culpa glória remorsos vivos.

Ela não deixou nada, quase e nada. Um vírus-erótico cristalizado, um irmão sem irmã, um pai e mãe sem filha. Madrugada.

Chave, porta, duas voltas, por dois dias, Bela, longe de casa. Conferiu se tudo estava no lugar, como era de se esperar numa quitinete, nada mudou.

O ar guardado.

Na cama esticada encostando seios em algodão bundas ao ar. Naquela noite insinuada por uma longa semana, nada tão sublime assim, amoleceu suas sobrancelhas em cima do travesseiro, o corpo passeava em esticados lençóis, a cama de casal, naquele apartamento, a cama era casa.

Lembrou-se de Jual, de como era bonito. Nas primeiras vezes que o viu, o quis como coisa bonita de se possuir, o belo que se admira, mas tudo passa, normalmente a beleza.. Rolou pelo extenso plano, no criado, um cigarro encontrou dormido.

Naquela imensa praia, na cama tecida, esbofava um azul num torneado de pernilongos. Passou suavemente suas mãos no pequeno nu, a mais de um mês não o via, roçou seus cabelos e os achou duros, crespos. A barba por fazer dava-lhe um toque de imperfeição em pele clara, os olhos azuis se movimentavam rapidamente ao sabor da menor brisa. Acariciou o corpo dele, o nu esteve na palma das mãos vazia, cheia de sonho, viu a imagem acabar. Maria despertou sorrindo desmazeladamente. Um sorriso que por muitas vezes teve inveja, talvez só do efeito que tais sorrisos causavam sobre outros que a amaram mas que mesmo assim não impediram de uma morte prematura. Ninguém conheceu uma amadurecida.

Quem é amado desesperadamente não perde a vontade.

Muitas vezes sentiu ímpeto de esganar a amiga, envenená-la, jogá-la no rio com correntes. Também isto se passou, retornou ainda enquanto passou, voltou e retornou a sair.

Um dia presenciou a recente amiga de então trocar de roupa, os seios arredondados lhe causaram impacto. O conhecer não a tranqüilizou, o sutiã preto colocado com tamanha delicadeza era uma resposta mágica. Bela alcançou desconfiadamente seus próprios, verificou em mente em tato as diferenças, não disse a amiga o que se passou, muito medo, uma ponta de ciúmes tomou das pontas dos dedos conta dos seios. Nesta ocasião, foi convidada para dormir na casa dela — não deixou azo para ver novamente a amiga trocar de roupa.

Apareceu o restante da manhã, foram todos ao enterro. A família havia chegado; necessidade de velório. Bela colocou o robe, atendeu a porta. Os dois amigos entraram, havia apenas dois bancos, o resto eram almofadas no carpete. Sentaram-se na cama desentendida. Tomaram café no bar da esquina. Melhor seria se não houvesse café.

O irmão mais novo de Maria era ainda nesses momentos de dor, a fragilidade toma conta de todos, infantis estão todos. Apesar do pesar, as lágrimas do adolescente entreabertas, talvez somente lágrimas de amor. O pai sobre o corpo da filha. Diego se encarregava do menino, do pouco menino que restava. Bela ao lado de Glória, a mãe tragedificava seu sofrimento, por conseqüência, criava um alicerce.

Julgar as pessoas num enterro, os inimigos choram de prazer, os amigos choram por não saber, e os sensatos colegas choram sofrer. Julgá-las num enterro é se dispor à nudez ridícula, é não reconhecer o primeiro passo útil e passos são todos os dias, o logro dos heróis ou covardes, nesta oposição o mal-estar de Bela continuaria até o final da festa.

Tudo passa pelo estômago. Sem se deixar abater, como uma atriz, voltava ao bis, para receber palmas, no entanto, a cena recebia sim um pescoço mole truculento de Glória, a mãe de Maria, lágrimas ensebavam os ombros de Bela.

Reuniram-se após o enterro, não acompanharam a família até em casa. Antes de pegar o metrô, como esperado, Bela discutiu com o estômago, passou a brancura, muita água na pia do banheiro. Sábado à tarde, uma leve monotonia bajulava no calor do dia os músculos dos corpos.

Saiu do banho. Todo mal-estar do dia com as borboletas. A radiola ainda ainda exteriorizava algum ruído. O coração por um fio, abriu uma garrafa de suco, Jual conteve seus olhos sempre ao chão, percebia os pingos caírem no assoalho pardo. Um espaço de tempo seguiu assim; esperando por Diego, numa tarde de sábado, num enterro de sábado, assim; Bela se ofereceu a sonhar, aproveitando a música, a tristeza contida, um ano e meio atrás conheceu Maria na escola.

O contente.

Entre uma cerveja e outra, casos e muito sexo, piadas, em pratos limpos a infância, falaram da adolescência, da copa do mundo, das putas, dos religiosos. O sono veio coroá-los, afinal de contas, o amor está em moda.

Procura-se um desesperadamente pelos jornais classificados.

Jual descobriu mais tarde, nem por isso infeliz. Aos dezesseis anos uma profissional conheceu Diego, sem censura gozou com precocidade. Aos dezoito Quisca o fez chorar, o deixou por outro, ali foi o começo de um ano de bebedeira, de fraudes amorosas, e nada deu em nada.

Os batons de infinitas cores, os cabelos cuidadosamente desarranjados, a masculinidade não é rude. As pernas, as carícias, sem pensar criam beldades, são floras e afloram, engendram. As mulheres que sabem amar, a elas a dor é uma necessidade muito mais vaga, o riso é mais mágico, o inferno é menos cru, a razão é lasciva mas preponderante, o céu é livre de metáforas.

Tudo sobrevive em mulher. O mundo seria uma falta completa se só existissem mulheres.

Testemunhas da beleza.

Porém tudo é muito misterioso, as deusas os amam, e por fim, eles têm lindas ereções. Bela sempre os deixou cansados, inseguros diante da virilidade. Obteve sempre sacrifícios, sem crueldade destruía aqueles corpos, mostrou aos mesmos um sentido espesso, fê-los acreditarem na silhueta oculta, e para o próprio bem da humanidade, fez os homens acreditarem na própria mediocridade, o primeiro passo para ser um grande gênio; o passo para continuar medíocre.

Morte, pura animalidade. Nem os deuses desfrutam glória, os heróis conduzidos à glória, os medíocres se universalizam.

No dia seguinte, uma desconhecida procurou Diego no serviço. Acabaram almoçando juntos com ele ferrando a conta.

Olhos famintos diziam de Maria, havia tido um caso mal sucedido com uma outra mulher casada. A mulher casada tinha filhos e se chamava Beatriz. Ficou sem saber o que dizer, esperava como numa anedota a ilação dos acontecimentos.

Ele quase comeu, o apetite ficou largado no estômago. Luya falou com a boca cheia, excitada, ansiosa, seus nervos não flutuavam. As mãos firmes ficaram por cima da mesa. Diego não conseguiu sair junto com a forasteira. Ficou ali em meio a uma atonia musical.

Na parte da tarde Diego não conseguiu trabalhar. Ao terminar o expediente procurou por Bela. Não a encontrou. Mais medroso, uma noite o aguardava. Andando de volta para casa, sentindo agora, enfim, o peso dos fatos, a importância e a negligência do mundo.

A vida tropeçava em alguns cocos, projeta-se como sombra, não existe sol que não dê sombra.

Jual não blefou seus sentimentos diante de Bela, ela também não disse, mas no seu silêncio a fidelidade estava ancorada, agora soube pela boca de Jual, uma parte da paixão por Maria.

Não sabia, ensangüentada no quarto, com pólvora no ouvido, uma mulher cuja beleza havia uma pequena fadiga, algo que instaura a possibilidade de amor. Amor palavra redonda e completa, fala baixo em ouvidos de tambores, uma língua que alcança a dimensão da poesia, respira ao ritmo dos maratonistas. Eles foram apertar-se no refeitório de Diego. Ainda estava, querendo sair, o dia não lhe tinha deixado em paz.

Conhecer o complexo de uma palavra é poder deixar de dizê-la, a paz que Diego prescindia não vivia nele, algo exterior, inalcançáveis estavam as mãos — as mãos dela estão mortas.

Ele revelou. A mulher, a amante, a doce Maria espantava os olhos de Jual. Sentiram-se sacudidos, rabo de arraia, meia lua inteira, não houve tumulto, mas uma nova aflição surgia, um pequeno neném deixado à porta da república.

Fazer falar a verdade por aquela boca, por outras bocas se acaso fosse necessário. Porém a verdade não é o que se diz, muito diferente do que se deseja. Basta que as coisas ocorram no interior do tempo para que o ser que muito se dispersa com bobagens se deixe levar pela daninha vontade de saber.

Inevitável, aos poucos, quase nunca nos sentimos ameaçados pelo inevitável. Em compensação, do desleixo nasce o tema de amor. Quem ama conversa com o inevitável, quem pensa na morte sabe exilar-se no amor.

No dia seguinte Bela encontrou com Luya, não conseguiu descobrir o endereço de Beatriz, a conversa nada acrescentou. O que poderia acrescentar? Um caso com uma mulher ou com várias mulheres não modificaria o laudo da polícia. Claro e objetivo, com um tiro no ouvido. Foi com um tiro de amor? A polícia não dispõe de tecnologia para fazer uma autópsia subjetiva.

Escorria sangue pelo pescoço, ela ainda permaneceu sedutora, seduzível.

Acontece e os vivos ficam sabendo o quão denso é viver. Ou existe algum corpo frio, parado, estático, decomposto e decompondo, imprescindivelmente a vida é o grande armazém, com muitos diversos alimentos perecíveis.

Para os que vivem Maria está presente, ainda amada por Jual, ainda lembrada pela família, querida pelo irmão, desejada pela ex-amante.

Uma semana depois, Beatriz por uma colega soube e não teve com quem se abrir, aquele caso, o caso era mais sigiloso no íntimo do que na realidade de fato.

Se beijaram, se despiram, se amaram, trocaram seios modesses as pílulas ficaram desnecessárias. De fato as duas em um apartamento foragido da cidade, num alhures isolado do trânsito, conspiraram contra a moral, contra as religiões, conspiraram contra os desígnios ocultos, mas o oculto não se preocupa, em se tratando de mulher o mal ainda é maior.

De fato. Maria gostou dos quadris, da ausência marcante do falo, gostou ainda mais das mãos dela. Beatriz por sua vez, através do experiente curso do casamento, não se diluía em preocupações pouco concisas. Um tipo de mulher que não se ausenta perante desejos, um tipo que não se ausenta de ter desejos, não os teme como os ama, no fato central de seus desejos percebe apenas a carência imensa de amor, este amor por gente, homem ou mulher, mulher ou mulheres, seja como for, sem piedade, sem constrangimento, Beatriz ama quem a ama, odeia quem a ama, ama quem ama odiar, ama porque amar é uma atitude involuntária.

Impróprios desejos, bomba desejo, amor desejo, filhos desejo, marido desejo. Uma ligeira lembrança dos seios dela ainda lhe alegrava.

Enquanto o marido trabalhava, as crianças na escola, chorou muito e confirmou o amor.

Com o ouvido ensangüentado, Jual sonhava em sua cama quase nu.

Eles queriam conhecer Beatriz, por nuanças queriam conhecê-la.

Por todo mundo saber o sabido parece que não se apreende.

Se sabe que se vai, não se apreende, se se apreende já não se sabe mais nada.

Idiossincrasias. De algo humano, por ato humano, coisa mais humana é o que eles sentiam. Não foi Beatriz, nem a amante dela, foi Maria a surpresa de todos. Jual e Bela voltaram ao local do crime à noite.

Conheciam a família, conheciam a casa, na verdade nunca a conheceram. Abatidos pelo o ainda abatidos, dez dias depois, como era de se esperar — toda a família agradeceu à visita. A missa de sétimo dia no primeiro domingo de outubro. Eles não foram no quarto dela, bem que queriam, não tiveram coragem de suscitar tamanho espetáculo. Deixaram a casa como no dia da festa.

Desta vez encontraram Diego na sua moradia. Com os dois amigos e o frescor melancólico de uma noite, uma noite certamente, a infelicidade dos três que agora seca.

Uma pessoa é conhecida — uma pessoa conhecida e amada, alguém amado é uma realidade íntima, nem por isso mais acessiva. Não há acesso ou via para morte, não há motivo de suspeitar de nada. No equilíbrio imutável de um corpo fixo, não se pode ver, nem crer. Basta estar vivo...

Aonde está? Sobre as Marias que ficaram, uma com o irmão, outras três com os amigos, outras quatro na escola, há milhões espalhadas pelo mundo. Uma ainda reverbera em Beatriz, outra em Luya, milhões foram estendidas no ar. Um ar que pesa, ocupa lugar, um ar de santo, de são; diz Bela sentada na cadeira, o cabelo numa quase franja. “Não me acostumei a ver e nem viver nesse mundo depois dela!” “Quem é que se acostuma com a morte?” Disse Jual. “Quem é, qual é a pessoa que não se desarticula?”

Jual tinha e sentia a carícia e a dor de Bela. Ele tinha razão pela qual a mesma vida desarticula, nesta hora, na vista, diante do amor.

É fato que se estende enquanto causa, que diz o efeito, uma vida se sombreia. A vida é questão que exala, não é fato permanente, mudo, silencioso e imutável.

O que fica deixa Bela cansada, a Maria de Jual ainda respira como pura assombração, pura vontade, quem bebe cachaça não reconhece a abertura de uma fresta.

Ele pediu a conta, quase meia-noite, ligaram para Diego. Quem pode impedir os desejos, impedir o amor, quem pode viver sem correr do seu próprio relato infeliz.

Se encontraram tarde da noite. Abatido como há muito tempo não acontecia.

Sofrendo de quê? Jual e Bela permaneceram atentos, cada minúsculo gesto do amigo, cada pequena frase que dizia. A angústia não pertence ao corpo, muito menos a uma única pessoa, não pertence aos mortos, a angústia não é Maria não é João, não desvela, não revela, não imprime. Diego abriu uma garrafa de vinho, perguntou onde eles estavam, esperou a resposta e uma pausa, por sobre os copos disse que Beatriz o telefonou, confessou o que tinha dito a Luya, confessou os amores que sentia.

A virtude nem sempre sábia e o amor é exato. Se é puro equívoco onde se constrói a felicidade, a mesma medida do erro está no prazer no carinho, num poema, são os poetas profetas que desvelam, uma espécie de rouquidão reside no futuro, numa falta, é os poetas os melhores amantes, os que pelo menos sobrevivem ao amor. Eles não eram poetas, nem mesmo escreviam versos, não sabiam como sobreviveram.

Rica e solitariamente fecunda apesar de nunca ter parido. Pessoa que não se sentia ameaçada por nada, ou por quase nada, que se permitia iludir-se à custo de algum prazer remoto. Feita de lenha que queima devagar, esquisita permanecendo ainda doce, era veloz ainda que permanecesse parada. Maria sobrevive em ferida de outros, uma coisa para Beatriz que não a amou por acaso, não a amou por bestialidade, o acaso é morada dos mortais.

Duas inglesas se encontram numa praça coberta de folhas, bêbados aqui e acolá, a cidade urbana porque é cidade, é fria, encantada para os loucos, romântica para os românticos.

São os ossos o testemunho do letal, o mesmo osso carbono.

A tarde ferruada por nuvens, enuviados carneiros, o céu não estava cinza, o azul e o branco se relaçavam na reciprocidade.

A estranheza das duas, aperto de mão, beijos, dosolhares. De novo presente, não se contentando estar presente, também viva, não estando contente, também era amada, não se contentando, estava mortificada. As duas se vasculharam, se definiram, Beatriz de imediato revelou surpresa, sua voz doce não encorajava nenhuma suspeita, respondia por igual todas as perguntas, o que predestinava ser uma investigação se tornou uma conversa. Para Bela não restou dúvida que Beatriz amou profundamente Maria. Despediram-se em clima de cortesia, a noite já despejava perfume na sombra da cidade.

Mais tarde já na casa dele, reunidos, nem mesmo falaram o nome dela.

O que buscaram nos outros, não acharam na família. Também procuraram na escola, nem na amante encontraram.

A dor resta, resta e não é compartilhada. O tempo este, mesmo, sempre, um nascer. Beberam uma flor murcha, desidratados.

Que ferida é essa, se não o é ferida física, nem é ferida um lugar subjetivo, não é uma região, ela feriu muita gente. Não foi com faca ou com palavras, apenas acontece, pessoas ferem e outros ferem.

Os vivos estão vivos. As vogais que perdoem — a vida é como consoante, uma quase girafa, quase muda — que muda vida.

Passou quase quinze dias para que conseguissem o endereço dela. Como mulher que era e Bela era uma linfa singela, verdadeira, ela foi ter com Beatriz.

Marias tantas, marias velhas, marias mortas, a mais bela estátua que conhecera pela vida. Não foi difícil convencer Beatriz da necessidade do encontro. Um pouco de chantagem emocional, um pouco de feminismo, pouco de satanismo e tudo estava pronto. Num final de tarde, sozinha, muito sozinha, linda demais, colã e mini-saia, muito sozinha e muito amada por Jual, por Diego, por si mesma. O que Beatriz queria deste encontro ninguém sabia, o que Bela queria deste encontro os cúmplices dividiam na bagagem.

Num café as duas já estavam. É necessário um tempo extra para que duas mulheres sozinhas num bar descobrissem que uma esperava pela outra. O colã vermelho a dica de Beatriz, o blazer azul a deixa para Bela. Se cumprimentaram com beijos. Dosolhares, toda falta de graça se encontra em encontros desconhecidos. Pediram dois cafés, eram dezoito e trinta que se acaba em noite.

Bela disse sobre Luya, de como soube do acontecido. Beatriz bem sabia quem era esta Luya, prima de uma amiga, sabia do caso que teve com Maria e agora fazia chantagem ameaçando contar para o marido o acontecido.

Espantada, uma morta ainda é cobiçada, motivo de medo, valor de compra ou de troca. Não falava nervosa, nem estava chorosa apesar da crítica situação, sua amiga ficou de intervir.

Meio afônica, “Nós havíamos ido na casa dela num dia de festa, lá estava, lá estava ela, em seu quarto, em seu quarto iluminado o sangue escorria, o ouvido, o grito de Jual, os seios...” , e ela ainda se mostrava seduzível, isto é, pelo olhar do coração de Jual. O relato curto, uma melhor distância para narrar os fatos lhe fugiu da boca. Já cansada de esperar, Bela não a inibiu apesar de ter também suas lagoas cheias. Recuou a dor, perguntou como as duas se conheceram.

Numa mesa bem distante do outro lado do café, os amigos de Bela estavam sentados.

“Mero ocaso, um feliz acaso diria o amor, agora já não há nada para dizer, porque não há com o que dizer.”

A felicidade, os filhos, os dias os mesmos, a trepada a mesma, o mesmo hálito, a mesma vida, os filhos nunca os mesmos, mudam o meio os caminhos os pensamentos, os corpos das crianças mudam.

Trinta anos, duas filhas, uma de nove outra de cinco. A família algo conhecido e tão inusitado, era tudo para ela, tudo e muito além disto não residia nem Beatriz, talvez amá-la fosse o despertar de si, adormecida já alguns anos, em casa, na solidão das tardes enquanto as filhas estudam, adormecida pela vagarosa vontade de viver. Isto já não o é bastante para o amor. Não se sabe como ele chega, dizem que é um ratinho na cozinha, dizem que vem do nada, mesmo a paixão ou o sexo, também a morte, não se sabe como tudo acontece. Maria sabia o que era o amor, pois amava os amigos que amavam mulheres homens crianças garotos ou garotas.

Maria — uma garota...

Um lindo e forte ato. Numa época inesperada já é algo bem corajoso.

O merecedor corte da adaga, que fia a alma em versos inóspitos, fia a singela matéria gasta que se dá vida, como seja fosse toda ilusão.

Não bastasse ela, mas todos, sendo o cedo ou o tarde, todos terão tempo. Beatriz e suas filhas, nomes, seu casamento, Bela sem querer se lembrar daquela que num dia de festa, festa continuou acontecer, iria acontecer normalmente, iria continuar, iria pela vida a fora transcorrer como o sangue, como a água, como um livro, como se sabe, saber e amar.

Por amor, claro o não, claro que sim, claro como água suja que as afirmações são muitas marias.

Bela ainda ama, é Jual que ainda ama, é amor pelos lados inversos, não há reverso que se esgota, não há o que se esconde de paixão.

Beatriz sabia disso no porisso sabia amar, sabia. Seja nos filhos do homem pela mulher no mundo para além deste. Chorou por poder chorar. É algo que importa pouco, importa, não importa. Bela a deixou ir após recobrar o rosto, o seu legítimo, o belo. Para casa foi como esposa, como mãe permaneceria até o fim das filhas.

Sentaram-se à mesa, curiosos não perderam tempo perante as novidades. Havia apenas uma, a chantagem, as outras não eram novidades, ou se eram, para uma fulana que já não existe mais. Amada, ainda que seja amada, morta.

A pessoa não ama mais, não se expressa mais, a pessoa é agora o caminho deserto de eternidade.

Bela estava cansada, enjoada, o monólogo não rendia mais do que dor, dor que preenche e não satisfaz. A dor é como a gula — nunca se satisfaz. Quiçá acaba. Se acaba, ainda vive o hospedeiro.

Pediram mais um café, um chopp, um refresco. Já sentiam muita saudade dela, já queriam tê-la de volta, com sorriso, com choro, com sedução, com... mas a morte é sem, sem alças, sempre na imensa exatidão.

O marido acabava de chegar em casa no momento em que saiu do banho. Ouviu a porta se fechar, as crianças entraram correndo; Ébora primeiro, cambaleando veio Balba com a merendeira, a televisão já ligada na sala, Beatriz desceu as escadas, o telefone tocou, ele atendeu, é para você Beatriz. “Atendo lá em cima.” Voltou rapidamente pela escada. “Pronto.” “Cadê a grana?” “Quem é!” “Beatriz não se faça de imbecil! Sou eu, Luya!” “Vá para o inferno!” Desligou o telefone. O telefone toca novamente, Beatriz atende. “Alô.” “Beatriz não quero contar nada para seu marido, eu preciso de dinheiro!” “Vai trabalhar vagabunda!” “Beatriz!” “Faça o que quiser!” Beatriz desligou o telefone — ligou para a amiga. “Isto não vai acontecer mais.” . Enfim, desceu as escadas para receber a família.

{Acordou por volta de umas onze, cabisbaixa, não querendo ver, não querendo ver nem de que cor é o céu, cinza Bela aula dia claro ...viver.}

Por orgia do acaso, por orgia do amor, muitas coisas ficam sem explicação. Na vida, como nos fenômenos, tudo aparece e desaparece. Aos olhos hábeis, talvez ainda infantis, importa pouco.

Maria dentro do carro, Beatriz sem nenhuma maquiagem, o automóvel de vidro aberto, um pouco antes de tudo — do outro lado da calçada, voltando da casa duma colega, mochila nas costas — a noite jámeaçava as colinas mais distantes.

Pensou ele em atravessar a rua.

Atravessar a rua foi a última coisa que fez — focalizou os olhos no automóvel parado.

Maria sucedeu aos seus olhos, sucedeu a ela ser beijada por Beatriz, como um leve instante que não se apaga mais, Alvro fica sem piscar, talvez ficasse muito tempo sem piscar... tempo sem piscar... sem piscar... piscar... assim...sem piscar partiu o carro.

No sempre do seu amor por Maria, desta vez não, não a reconheceu como irmã, não como irmã beijada, como irmã beijada findou o amor de irmão.

Ela bem logo entendeu a frieza, compreendeu tudo por não saber de nada, por sentir nada do que sentia, nem mesmo ele sabia o que sentia, se sentia saber, sentia esquisito. No dia seguinte as coisas estranhas entre os dois — Entre dois.

Entre ela e o mundo somente Beatriz,

Entre eles somente família,

Entre Marias, terceiro não havia,

Entre Diego e Jual uma Maria,

Entre (Bela Maria) Beatriz,

Entre marido mulher — amante.

Uma filha uma casa...

Tudo termina em família.

No dia seguinte, não se viram, quase não se viram — um pouco antes de dormir na cozinha. No dia outro, ela acordou bem cedo para ir à aula, passou a tarde com Beatriz, à noite sozinha foi ao cinema, antes de dormir esteve no quarto do irmão.

Alvro estava estudando matemática, bateu na porta, entrou, não piscava. “O que está acontecendo com você? Você quase me enxerga! Fizeram alguma coisa com você?” “Você beijou uma mulher na boca!” “Que é que você está dizendo!” “Você sabe. Você beijou mulher na boca! Eu vi! Ninguém me disse.” “Você está ficando louco!” “Pare de mentir Maria! Eu vi o lindo carro dela. Eu vi você beijando uma mulher! Ela tem cabelo preto, longo.” “Alvro não é isso que cê tá pensando” “Não é isso o quê Maria! Eu vi você beijando, ela não te agarrou, você sorria. Mulher que beija mulher é sapatão! Minha irmã é sapatão! Se nosso pai souber disso, se mamãe souber disso, eles morrem!” “Alvro, Alvro, Alvro, mamãe nunca pode saber!” “Não pode como! Um dia ela vai saber. Papai um dia vai saber!” “Você não pode contar isso pra ninguém Alvro!” “Pra ninguém! Claro que não, eu não quero magoar papai, não quero matar mamãe, não quero que eles sintam a vergonha que você me fez sentir” “Eu ainda sou sua irmã!” “Até ontem não sabia quem você era. Você é sapatão, não quero uma irmã sapatão. Você tá me ouvindo! Não quero uma irmã sapatão! Não quero mais falar com você. “Alvro não faz isso!” “Dá o fora Maria!” “Alvro, eu te amo, mais do que tudo, eu te amo.” “Sai fora Maria! Me esquece! Tá ouvindo! Esquece de mim”.

Muitas vezes esquecidas, a irmã esquecida nuncanunca a mesma — raras vezes uma imagem eterniza-se adentro de uma pessoa. Raramente. Quem conhece fatos da natureza se esconde.

O telhado recoberto de folhas, algum jardim na frente, todas as noites uns cachorros uns gatos carros compõem; os sons da noite são festas naturais.

As noites se seguiram, nunca as mesmas noites nuas. O irmão desconhecia também a família — abjetamente tomou consideração pela irmã.

Nem mesmo Beatriz conseguia alegrá-la. As duas se pesaram de infelicidade. Beatriz então, por saber como as crianças se decepcionam, como guardam a dor — duas crianças em casa — temia pela família, pela família de seus pais, mas agora não havia mais tempo e nem o tempo é curador de tudo.

Sem piscar os olhos que ainda não se fecharam, olhos ressecados e embaçados que não voltavam a ver, a irmã que muito sempre amava. Sempre não é puro presente.

Bela percebeu o abatimento da amiga, procurou se aproximar, procurou dar ajuda, embora fossem o que são, amigas — limites hão de haver para a amizade — haverá limites para o amor. Qualquer coisa e qualquer limite.

Embora seja possível pensar e sentir para além, embora a vida, a vida líquida e por isso mesmo esteja um degrau acima delas, embora pela opinião da verdade não há limite no antemão, nem mesmo limite é pós, não gera os deles nem os delas, assim mesmo, numa menor fresta que não supõe nossa inteligência, se desenvolve o ser que limita, se reconhece, luz de algo, limite algo ou outra coisa qualquer que clareia algo e não outra coisa qualquer.

E havia qualquer coisa com ela, não era a mesma garota, não era, por um, por dois por três por quatro por cinco por seis por sete por oito...

Cinco dias depois do não piscar de olhos Alvro, Beatriz se despedia em definitivo de Maria. Não pode, não cria em acreditar, em acreditar não via, não cria em amar, mais nada.

Amar uma mulher não era uma tarefa de medida fácil, nem mesmo Beatriz que insuflou-se de vida, uma vida que havia sido esquecida pela família. O amor de família maltrata o amor cego de família maltrata gente que enxerga orifícios e outros desejos. Desejou, nem por isso tudo, tudo é flores coloridas ou desidratadas.

Beatriz recolheu-se, o mesmo cobertor de outrora, o motivo de outrora somado a si. O desejo, suas filhas na casa — não quis pensar.

Na mulher não pensou.

Da Maria não soube, não queria saber.

Pela longa escada desceu lentamente; a Beatriz que Beatriz não queria levou Maria até a porta. Uma mulher que na mulher se apaixonou, se livrou, se engravidou,

— do pecado de um outro

— para uma outra,

Entre pecados,

 verdadeiras marias.

Aquela sofria silenciosamente pelo irmão, irmão que vestido de calça cumprida é ela mesma — uma maria.

“...Luya não me venha commais ou menos, pare com tudo isso, basta mais um telefonema para eu denunciá-la para a polícia.”

“...fico sem marido! Fico sem família! Mas você vai para trás das grades!”

“Eu vou matá-la! Acabo com minha vida! Acabo com tudo! Mas eu juro que a mato!”

“— Beatriz se acalme, tudo se resolve. Você, querendo ou não, tem uma família pracriar, uma família vulnerável para...”

“Maria ainda bem que você não precisa passar por mais este suplício,

lindo sorriso,

lindos seios,

boca bunda braço,

Nunca gostou de homens, homens não souberam amá-la,

por ser linda demais,

demais eram eles tão poucos,

tão eretos, tão 

não sobrando lugar para milhões...

“O que desejam eles?” — “Um dia você me perguntou e apesar deu ter marido eu não sabia como respondê-la.

Muitos homens não podem amar mais do que uma mulher, uma mulher como você... demais para atordoá-los.”

“...Luya vai parar!

— Eu te prometo Beatriz! Ela vai parar.”

Fernãna se despediu através de ondas, Beatriz se despedia no fio enquanto sequiava com os ecos de Maria.

O como da morta falta, falta a todos. A vida continuaria sem Beatriz — vidainda depois dela.

As filhas — suas filhas, mal saberiam da mãe, pois existia vida que ao acompanhá-las também companhia sentia. E as filhas não poderiam saber — porque saber também é — muitas vezes em tardes azuis o sol já não existe, somente se vê sol, não se sabe dele, porque saber é: (uma mãe é sempre, no quase sempre do sempre uma mãe, quase inteira, no quase sempre inteira mãe, sempre mãe, por isso mesmo uma mulher desconhecida), muitas vezes cegar a luminosidade do mistério.

Beatriz não ligou, nem esperava que ligasse. Não esperava porque não há nada para esperar depois do amor. Ao final deste, as alegrias por muito que sobrevivam, não muito...muito aqui é nada e nada quiçá é, quase incompreensível.

Não mesmo, e Beatriz certamente que não. Bem sabia o que queria, embora quisesse outras coisas que não soubesse e se soubesse não quereria. No ocultar, no desvelar, no de Beatriz, no de Maria, no da família, pelo amor se nutre uma eterna saudade.

Mais um da nova safra se impôs no mercado. Casou com Beatriz nos tempos de formando, tiveram a primeira menina um ano e meio depois. Ébora, prematura, 2 Kilos — miúda. No final do quarto ano Balba nasceu grande e carnuda. Parto normal por duas vezes, normal, mas não menos solitário.

Depois das filhas, após treze anos de casamento só a família sobrevive, sobrevive a falência.

Trabalhava no banco do estado, fazia cobranças, hipotecas urbanas e financiamento rural. zeloso com o futuro das filhas. Pai carinhoso, talvez por ingenuidade ausente.

O telefone ficou em silêncio pela semana.

Embora muitas vezes pensasse ligar, Beatriz não o fez / não o faria / porque não faria amor se ligasse.

Se ligasse não faria o menor dos bens, se não ligasse não faria o maior dos males. Entre um e outro está o amor que não se desloca, que não se pode encontrar seu fim. O fim não se desloca, se não move amor, não se desloca Beatriz, se não se desloca Maria, não se movem as mulheres, de amor não se desloca o mover dos homens, porque de amor se move o não amor de alguém Maria por ninguém de Beatriz.

Sentido nisso ou naquilo. Naquilo outro seja. Alvro era o menino de colégio particular, já com os mesmos sonhos uma mancha indelével na família.

Podia negar, podia... podia não, a vida condizia, a irmã sentia; se sentia algo abstrato por ela — retirado o menino agora diferente, menos pouco menino, confuso e decepcionado, subtraído o menino. O resto inteiro.

Já estava claro.

A mesma de então.

A mesma do ante-então.

A mesma de ontem não foi a mesma sempre.

Nem o que é o mesmo sempre o sempre o mesmo permanece.

A vida que é estranha por demais, opera. Neste sentido todos os seres são maus médicos.

Alvro não pediu Maria do socorro, não pediu dá licença de gostar, nem mesmo uma morada ou uma oca estendida. Os meninos são meninos, são: alegres amados meninos. Não sendo isto tudo, porque do tudo só podemos saber as partes: laterais, frontais, anteriores, posteriores, compreender bem podiam palavras, o que sentiam compreender por ela. Não estando o sentimento nem as palavras isentas de equívocos, o sofrimento e o pensamento são sempre por demais perdoáveis.

Madrugada. Beatriz chantageada. Bar. Mesa. Eles foram pra casa de Diego.

Dez dias sem, dez dias ontem, ontem mesmo, motivos vários, talvez sem, por pura loucura, doença, algo alheio ao mundo à família aos amigos. Beatriz não podia saber, nem Maria poderia saber. A vontade alheia. Agora sabia contar. Enquanto viva ninguém soube, não mencionou, talvez acreditava que não sentia, queria fazer, mas fazer ainda parecia algo longínquo.

No encalço, a sua morte no encalço, a sua, a de cada um com cada um, a dela já toda Maria. Existiu, alguns dias atrás, o mundo tardio não estava por completo apagado. Alguns dias atrás, simplesmente viva. O conjunto das partes, as partes do todo agora são:

“Sua mulher Beatriz” “O quê?” “Beatriz teve um caso!” “Que caso?” “Eu nem te conheço!” “Beatriz! Olhe aqui a fotografia.” Ele tomou a foto em punho, realmente não entendeu, duas mulheres se beijando, uma delas era Beatriz. “Aonde você arranjou isto?” A porta do elevador se abriu, uns estranhos entraram, o elevador continuou a subir. A foto atrás das mãos, as mãos atrás do corpo, ela não fez isto comigo, não podia fazer isto comigo, ela não podia, não precisava fazer. A porta se abriu. “Você vem comigo.” Um corredor, uma porta. “Valda, não estou para ninguém.” Ele não era muito mais doce do que isso, no trabalho não pecava por falta de seriedade. “Que foto é essa? Aonde arranjou isto! Quem é essa mulher aqui?” “Não sei.” “Como é que você não sabe?” “Não sei!” “Maria! Fulana! Dá na mesma. Não estou aqui pra conversar, só vim entregar isso, eu avisei sua mulher, ela não acreditou!” Ele tentou detê-la, Luya o empurrou com força; — bateu a porta.

“Dr. Amal, chamada para você, Dr. Alberto” “Diga que eu não estou. Daqui a pouco eu ligo para ele.” Amal enfraquecido, transpirava numa sala com ar condicionado. Olhava revia revirava a foto. “O que é que eu vou fazer? Minha mulher, mãe de família tendo um caso, um caso com uma mulher! Pilantra, prostituta, vadia, palhaça, palhaço sou eu, não sabia não podia nem pensar, minha mulher!”

Parou o carro. A porta da rua se abriu, Beatriz transtornada, sem piscar os olhos, a noite toda colada na porta, colada no telefone, tinha ligado no vasto meio mundo, ninguém havia dado notícia dele. “Querido, aonde você estava?” “Me larga porra!” “Quê isso Amal, está me estranhando! Sou eu, Beatriz! Sua mulher?” “Me larga porra! Você? Minha mulher? Que infelicidade a minha!” “A nossa!” “Esta família acabou!” Ele caiu no sofá. Do jeito que veio, ficou. Beatriz não acreditou, nunca o havia visto daquela maneira.

Na mão, a foto amassada, miçangas — a mão a vida o casamento. Ele não largou o feto, mesmo assim viu, pelas mãos dele viu Maria, ela viu, se viu.

Eram cinco horas da manhã quando começou a chorar na cozinha os últimos litros de luz de uma estrela.

“— Papai, papai, mamãe está chorando.” Amal se deu conta de onde estava, sua filha falando da mãe, uma dor horrorosa de cabeça, ainda de terno, gravata, um bafo de onça. “Por que mamãe está chorando no quarto papai! Vocês brigaram?” “Minha filha, não se preocupe, está tudo bem. Espera aqui, sua mãe já vem... “Beatriz! Beatriz! — Beatriz aonde está você?” A porta aberta, sentada na cama, Beatriz chorava como criança. “Beatriz! Minha filha tem que ir à aula, agora não adianta chorar. Eu vou tomar banho, tenho que trabalhar. Vai pedir o café.” Beatriz não reagiu, moveu não, músculos nenhum. “Beatriz, acorda!” Ela, , em choque. “Beatriz acorda... acorda mulher!” No instante que a tocou, ela sentiu raiva, muita raiva. “Acorda!” Só se ouviu um som aberto. Voltou a chorar agora nos ombros dele. “Por favor meu bem, me perdoa.” “Não vamos falar nisso. Minha filha está esperando — vai chamar Zula para fazer o café.”

Há uma certa maneira de sobreviver.

Ébora e Balba foram à escola, Amal não falou nada antes de sair para o trabalho.

Os-têm-heróis — a tolerância humana é uma tragédia. A casa semiimensa, semisua, jejuou na manhã evasiva, na lateral dos braços fez o melhor porque chorar.

No seu quarto ensolarado pelo inferno e o inferno que seguiria não iria iluminar a casa, a cama, a voz mal dizia o nome o motivo e o lugar do já. Ela estava ausente, deixou tocar o telefone, repetiu a ligação, o telefone tocou pela casa sozinha. Desistiu; não existem amigas, nem mesmo algum lugar de ficar.

{Para além do que aconteceria,

Aconteceria o além para o pára

Não mais cessaria a dor

Nem solidão tomaria companhia,

por detrás das almas amantes

[ Beatriz uma pessoa imperdoável

(ele juraria por esta máxima,

algozmente a levaria ao pelotão de fuzilamento) Talvez não!

talvez o Talvez saiba de algo absolvitório]}.

Beatriz esperou por toda tarde, tarde pela manhã inteira, esperou pela tríade. (Crianças homem família.) Por algo atrás do abscôndito amor a magia laranja de um sol sublime.

Algo atrás do abscôndito amor, a magia laranja de um sol sublime...

Atrás do abscôndito amor a magia laranja de um sol sublime.

E fica

Nas passagens,

— a irmã esquecida nuncanunca a mesma,

Raras vezes uma imagem eterniza-se adentro de uma pessoa.

Raramente. Todas as noites uns cachorros uns gatos carros compõem noite.

A maca corria ardentemente pelo corredor. Adormecida, não fazia nada.

O carro milhões de vezes sangue, a sensação de memória possuía corpo, não sentiu dor, o sangue pelo banco, se mover não conseguia — já em volta — aquelas enormes caras.

No asfalto o outro virado na pista — furou o farol vermelho. Felizmente nada acontecido aos olhos verdes, ao rosto claro — jovem guiado de luz.

Ainda mil e uma noites seriam necessárias para que voltasse a comer pelas mil e uma bocas...

dois buracos no nariz, um no ânus, um na boca, um na xoxota, um par de olhos,

O cérebro infelizmente funcionava de cor, o corpo ignóbil, uma massa por certo incolor, de certo ainda queria amar. Não podia falar o que sentia — tudo lhe dava preguiça.

Sobrevive sim, a magia do inferno, o corpo possível de seios, de boca, de voz, (como sentia saudade da voz, a sair pelos cantos, pelos fundos da garganta, a tomar o ar, a velar nos ouvidos as doces palavras, já não mais palavras de voz, como cantava no banheiro, como ele gostava que cantasse na cama) sobrevive sim a lembrança dos nus.

Pegou-a esquiando num imenso choro.

Agora Jual não mais tinha revolta, a revolta não resolveria nada, o moço responsável pelo acidente estava na cadeia.

Um dia sairia de lá andando. Comia todos os dias, falava, bocejava com as mãos na boca. Nem mais revolta nem mais amor, nem ódio ou esperança.

O que por ela não podia ser amada, todos queriam viver, o que por ela não podia ser vivido.

O tempo que passa — passa, o tempo fica — fica, fica e passa. O pescoço não sabendo muito bem o porquê, este ainda manobrava seus trinta graus leste, seus graus oeste.

Mais nada.

Agora mundo nenhum se dilatava. Nada mais objeto do tato, nada de sujeito andante, muito embora pensasse no amor não mais amava, nem família nem namorado.

Uma semana depois da rejeição do esôfago artificial, Harllene veio lhe visitar. Não demonstrou melhor agrado por esta ou por qualquer outra visita.

Coração, o coração de uma vaca, de um porco, o sangue de uma vaca e de um galo, as veias de cachorro sem galinhas sem obstrução. Harllene a deixou coberta de palavras de amor. Nas palavras, uma ameaça, no amor uma ameaça mais concreta de nada, o nada ora vezes maior ora vez do amor.

Podendo faltar, não podendo faltar oxigênio no cérebro, saliva na boca quase não tinha, as pálpebras piscavam bem, ininterruptamente o mundo aos pés, ajoelhado, orando, o mundo nos pés. Líliam desviou os olhos, foi com eles para parede, com eles por cima dos ombros, por cima do mundo por cima do ar do quarto, do ar do bar do hospital, do corpo das coxas da voz oculta, porcima.

O céu — único lugar, lugar dos olhos do corpo morfo amorfo não cumpridor de suas propriedades excêntricas. Por cima das curvas monótonas, da enfermagem das coxas, porcima dos telhados. O corpo olvidou de tudo.

Ela desviou os olhos, com eles para parede, por cima dos ombros, por cima do mundo por cima do ar do quarto, do ar do bar do hospital, do corpo das coxas da voz oculta, porcima. Vivia. As pessoas diziam que era um estado de vida, estado de coisa — vivia um estado de coisa.

Bem assim, bem assada, bem humorada, frieza nos enganos e os presentes e os sacrifícios e a saudade e o encargo e a morte e as mudanças e as partes, as somas e as horas, outrora luz do brincar, a porta se abriu, não podia ver quem abria a porta, seu leito ficava à esquerda da porta, sem nunca ver quem entrava, muitas vezes a porta se abria e se fechava.

Um soldado se fez ver “Tem visita pra você dona.” “Para mim!” Ele entrou, ainda ela não poderia vê-lo, depois de vê-lo nada mudou, não o conhecia. Ele parou em frente ao leito, mirou-a como se fosse o seu espelho do banheiro. Se apresentou, Líliam ficou rubra ao ouvir dizer quem ele era, e ele era a pessoa artífice de quase toda a tragédia. “Você não anda, você não fala, você não move, quem é você, o que é que eu fiz, se fiz, fiz cair tudo em cima de você, fui eu que fiz, e o que poderia eu fazer agora?”

Uma imensa inquietude afigurou no rosto dela, uma imensa vontade de falar sobrepujou-lhe a face pálida, manobrava o pescoço, manobrava inocuamente todo o resto do corpo jogado num leito de hospital. “O que posso fazer por você, como posso me fazer perdoar, o que posso dizer, que loucura que eu fiz?” “Me perdoa!” Ela continuava a manobrar a cabeça viva, ela queria muito que queria falar, falar o quê, como falar, como expressar. Ele percebeu o conflito, fez silêncio... as lágrimas nos rostos. “Você quer me dizer alguma coisa, como posso ajudar, como posso saber o que você quer dizer, como será possível você se comunicar?” Rubra, chorando, rubra e nada mais, objeto sem nada além, triste — a vida é assim mesmo — um estado de coisa. O soldado entrou no quarto. “Tá na hora.” “Moça eu volto para te visitar.” O soldado algemou o jovem, algemou a juventude do mundo, a juventude de uma criança, a juventude atrás das grades não é um acontecimento que se comemora.

Dormia ainda por inteiro. Tanto de dia, como também à noite. Dormia porque dormir é destino de todos.

Existem momentos em que tudo se cala, a noite se consome, dormir de noite, enquanto os carros passam, enquanto a noite passa, dormir... enquanto a vida passa.

Dormir pelas tardes claras, dormir no hoje pelo amanhã. Com o travesseiro nu, empijamado, enudado, coberto de mulher, coberto de homem, dormir coberto de cobertô. No cobertô aberto, aberta, com o ventre aberto, dormir de camisola, com a camisa branca, sem esperar sonhar. Não sonhar e não lembrar que sonhou. Ela dormia por cima de dormir. Uma coluna ereta coisa de dormir. Inativamentemente ereta coisa de dormir. Coisa mesmo de mortais.

Erguida plena face branca, a luz no sono de silêncio, ela recitou o silêncio da poesia calada na vigília — na juventude dos seus pés, por sua própria boca, ele ouviu, com as cores da verdade, a voz sabia que era macia na primeira palavra, partiu do profundo ar dos pulmões:

“Sou tão velha

Porque sou a mesma

Estou tão velha

Porque a mesma então

Tão velha

É maldade de alguém,

sou, Se tão velha porque sou a mesma

A mesma de minha morte 

Velha

De minha morte

Minha

Morte eu mesma] [Eu mesma velha em minha morte

Eu mesma velha

Morte minha velha vida

Minha velha

Eu mesma morte minha velha vida

Eu mesma outra

Era eu mesma agora viva minha velha vida

Morte minha vida leva.

Porque sou a mesma

A velha

Porém

Mesma

Então alguém velho mesmo morre

O mesmo morre

O outro não.

O mesmo sempre mesmo velho

O outro sempre diferente novo

O outro que não o mesmo

Por isso não velho

Por isso não o mesmo

Um sempre novo outro

O outro que não o mesmo.

Ele ouvia, por completo feliz Jual ouvia, paralisado, ela no banheiro molhada bem molhada bem olvidada, uma Líliam sonhava ser mulher que é mulher no era da mulher que sonhava ser no sonho de uma mulher que não podia mais ser ela uma Líliam — a plena face branca acordou no ensolarado quarto branco do hospital Sant... e os pecados do mundo protegidos por Hipócrates.

A vigília acordou Líliam. Voz se cala à vigília andante. Voz se cala — adormece.

Acordou com sua mãe aos pés da cama, acordou, quem mais fazia diferença diferença não mais fazia.

Junto ao corpo não cabia mais família, sua mãe sofria, muito que sofria, que se envergonhava diante do destino, a meia filha não tinha mais mãe, a tragédia não tem mãe, sem apreço medo dó perdão gula, sem voz. A tragédia acontece com ou sem medida, com ou sem consentimento, com ou sem ajuda, somente com os contidos de humanidade.

A mãe mirou-a sem machucá-la, cedeu seu lugar de mãe sem machucá-la. A enfermeira entrou sem pedir licença. Um tubo pelo nariz, um líquido espesso, escuro, fluía, pela sonda tudo parecia cheio, dentro dela tudo era silêncio, dentro do corpo o desabrigo era corpo, dentro do corpo ela era silêncio, o silêncio cheio de comida.

A mãe não saiu do quarto, com calma esperava a operação terminar.

Não tinha porque temer.

Maria sozinha em casa, sem Beatriz, sem o irmão sem os amigos, sozinha, nua e linda, acordava. Nada a cobria.

Quando poros e tez reluziam numa noite passada, bem dormida,

quando se lembrou do pai da mãe e a família que muito bem a queria,

quando a tarde se monta pelos quatro cantos da parede,

quando a televisão permanece desligada,

quando se ama alguém, alguém carne e osso, alguém desejo, alguém mulher, lábios, mulher,

quando uma mulher usa seu batom vermelho,

quando uma mulher aproxima,

quando dia, noite, intensas moradias

quando não dizem ao certo, intensas moradias, o que é o de certo o amor,

quando nas noites masculinas enraizadas na beleza tardia unilateral,

quando um homem não consegue se fazer ver por uma mulher,

quando uma mulher se diz mal amada,

quando o casamento se esvai,

quando os filhos se amontoam em desejos inóspitos,

quando gente emudece,

quando tudo cala, não mais voz, frigideira ou banho,

quando a gordura do mundo não se dissolve na água,

mesmo assim, numa tarde morna, na noite genitiva,

quando amigos por muito perto ainda por muito longe não sofrem não sabem do sofrimento,

quando Bela dormia feliz,

quando Diego trabalhava feliz,

quando Jual disse alô para sua mãe,

quando a verdade é noticiada em algum relato infantil nem mesmo o amor credita.

Quando a fé já é efêmera, quando a voz já se engasga, quando a sorte está com os mortos, quando os homens fazem-se mortais, quando os aspectos estão monótonos, quando um ás de espadas cai sobre a mesa, quando o verde é marrom, o verde é laranja, quando a saudade não manda mais notícia, quando em algum lugar, uma mulher sofre, quando o mundo se liberta, quando for possível morrer, quando uma mulher morrer, quando morrer for morrer, ausentar, ceder seu lugar, quando o aprender a ceder seu lugar despreender-se de seu lugar sem nada sofrer, de certo Maria estaria mais feliz.

Inábil homem do da presente história, futuras outroras. Na história sem ora certa tudo acontece. Balba bem era; pequena miúda esperta.

E o pior vinha com o marido. Amal voltou, não estava em casa e a noite começou. Uma eternidade de noite ainda por vir.

A vida entrou pela porta da frente, porta da frente, a porta de frente à casa, a porta aberta, a porta, aportar, a porta estava aberta e ele chegou.

Aberta a porta da infâmia, aberta a porta das desavenças, aberta a porta,

— entrou meio zonzo,

— meio sonso, o que seria de tudo, o que seria Beatriz, o que é, que é família, aonde está a família. “Cadê Beatriz!” “Cadê minhas filhas!” .

A casa silenciosa ouvia as solas do sapato, não avisou que chegou, não gritou por ninguém. Deixou o paletó no sofá da sala, abriu a geladeira, as filhas e a mulher não saíam da cabeça, não saíram do escritório e nem do carro. Nada saiu depois daquela porta. Bebeu água, fez xixi.

Sentado no sofá não sabia o que fazer desde o meio da tarde. “Vou deixar a família, a minha família acabou.”

A mão ficou aberta. A certeza não se cativa. Soterrado ainda nas malhas da família, ainda membro e já órfão. Do resoluto ao covarde, da ira ao perdão, da vergonha ao vergonhoso de pupilas dilatadas, de coração enchagado, com a raiva enchagada, com o amor enchagado, com a morte nunca se brinca.

Também não se enfrenta, também não se aceita, se acomoda ao peito o existir aqui do agora e do acolá o de ontem o de hoje no regresso ou no verso, se acomoda — se acomoda o amor. O tardio dilema da difícil tarefa, o decidir a tarefa, nos ombros como nos pneus, o peso era por muito um muito mesmo. O mundo expandia sua cabeça, expandia o ódio que nem sonolento ficava, que distraído nem ficava, ao ver a mulher deitada na cama, na cama, o cinema na cama, a felicidade na cama, que infeliz cama a sentir Beatriz de olhos vendados.

Selados os glóbulos, selada a voz pátria, vaga ocasião de flores, selada na curva infinita, vagarosa, infinita passageira do amor.

E o amor na repleta solidão das palavras sobrevoava a matéria. Uma imensidão de Beatriz. Pela vertente do corpo esguio, barriga no contato — o ar do mundo. Agora não sentia no mais puro pensamento ou no puro sentimento, talvez uma violação o conquistava. Ela deitada era um tudo de escolha, de sono, de cansaço, de medo. Medo. Esta palavra era pros dois, dois que sentiam medo, o medo sentia os dois na palavra dos dois o medo sentia por eles.

O amor que o medo sentia pelos dois não regressava, não sobreviveria, o amor não sobreviveria do medo, o mundo talvez sobrevivesse. O futuro não é permitido ao medo, mesmo as palavras, nem mesmo eles, nem elas ou as filhas — nem o mesmo futuro sobrevive.

O futuro estava na idéia que ele fazia dela, na cama ela fazia a idéia futura dele, mas não era ele o que amava Maria, a morta incendiada no verso, o espaço triste da morte livre, não era ela esposa dele ou mãe.

O segredo de um breve encanto do medo, a voz do medo, a criança que não ouve a voz do medo não é a criança que balança o mar perfeito. Ele retornou com tua mesma sombra que o acompanhou ao quarto das filhas, abriu a porta na esperança de reencontrar alguma liberdade nas meninas, as meninas dormiam, as meninas estavam dormindo.

Os sonhos de umas crianças são sonhos de humanidade. Recolheu a porta ao seu conforto horizontal.

As pálpebras que se abriram quiseram não abrir. É espantoso, não ver as cores, nem as pessoas em cores, nem o mundo com suas cores, não ver nas cores o mundo infinito cinza, não ver no infinito cinza as cores do mundo, não ver — já-via.

De traços curtos, na certeza que nem é o certo, agora Beatriz não o conhecia por conhecer somente outros muitos maridos.

Matéria sucessiva, esquiva, deixa ser celeste, deixa ser velho, sempre se forma no inteiro, no inteiro que não é o completo conhecido, e ela não conhecia o tempo que a arrodeava, nem a fome, a sorte não a conhecia. Maria nenhuma conhecia, muito menos quem a olhava. Amal andou até ao banheiro, não demorou o xixi. “Beatriz não posso mais suportar!” “Amanhã me mudo daqui!” Não era o pior, não esperava o pior, nem o como esperava, o talvez esperava, fechou os olhos como se fecha um livro querido.

O mundo na falácia moderna despe o soberano desejo, despe o corpo de alma, pois alma corpo nenhum quer ser.

Na imensidão plena a dor de toda alma é não poder ter um belo corpo, um corpo de Maria, um corpo de Beatriz, um corpo de Jual, um corpo outro.

O livro se fechou. Aveludado livro do esp’rito que ilumina as veste de uma mulher que se chama Beatriz.

Bela estava sentada no meio-fio, como de costume o sono à deriva. Derivava a consciência saúde plena. Pelo amanhã o acordar se comove com o barulho.

Era o último ano colegial, não estava atrasada mas assim mesmo ele chegou e ela nem notou.

A manhã que abastada de nuvens reluzia o brilho púrpuro ficou sem saber do encontro, eles entraram juntos na escola, e ela nem mesmo viu o porteiro, ele veio atrás sabido do que estava à sua frente. Saia, meias, o curto cabelo negro dela, a nuca. E ela nem mesmo viu, mesmo estando sentada na carteira, ele entrou por lentos passos, e ela não o viu mesmo estando na primeira fileira.

Dudu olhou mais uma vez, no ônibus olhou a nuca pálida, no passeio as meias, agora via os ombros os peitos os lábios. O último bocejo da manhã veio após o recreio, na fila da coca-cola.

— Garota você dorme acordada! Você sonha acordada! Nem os anjos você vê!

Bela olhou para trás, um pouco por intuição, um pouco por costume, nas filas se fala de vidas alheias ou não.

— Falas para mim?

— Peguei sua companhia desde o ponto de ônibus. De lá pra cá você nem me viu. Sou seu colega-de-sala!

Um passo na fila antes dele dizer — “Você está dormindo!” . Sorrindo pela metade da manhã.

— Dudu não repara não, o problema não é comigo, é com a manhã.

O instante no caixa. “Eu quero uma coca-cola com um pastel de queijo.”

Ela se perdeu pela cantina, ele comprou um chocolate branco.

— Estudou para a prova de física?

Não antes de sentar na última fileira do lado oposto à porta.

— Não estudei, mas não creio no meu fracasso.

Ela se levantou, de frente a ele com os materiais nas mãos.

— Você pode ou não me ajudar? Não sou nem mesmo parente de Newton!

— Senta aí! Vamos ver o que podemos fazer.

No último horário trocaram de prova, era múltipla-escolha, não foi lá muito difícil. Pela porta voltaram juntos comentando o feito, mas o verdadeiro feito ainda dependia da nota. Breve estadia no coletivo, entre os risos, entre as pessoas, entre o calor, entre vidas o engano é um mero bem. Eles se deixaram no mesmo ponto. Nem um ele, nem um ela, ficaram eles sem saber onde moravam. No dia seguinte Dudu não foi à aula.

Primeiro ela acordou, olhou o homem, olhou-o, não procurou mais que seu próprio lugar, foi ao banheiro, não queria dizer que o amava, o amava, amava também Maria, mas Maria é amor morrido, que não goteja, seja suor ou lágrima. Amal acordou — já saía do banheiro, molhados os cabelos, desceu pela sombra da escada, o sol locomovia o ar da casa, Ébora e Balba brincavam no jardim.

Quem seriam eles para contar a notícia, quem é a notícia que noticia, que notícia é esta que não noticia o vão da família, a família se pode soletrar. Ele havia arrumado as malas, no silêncio no verso o ódio, no mesmo amor que nasce e não morre, acaba, veio pensando em algo, pensando olhou as filhas. “Beatriz o advogado vai te procurar.” Não disse que o amava, não ousou, não se viu, nem mesmo temeu, o pior não tem ofício, não vem de empréstimo, reside latente.

No mundano a fuga burla o amor, e que seja a saudade a saída do parto que prospera o que é sempre o que supera, e o que separa supera a criação.

A falta, a dor, a medida, a voz, no reinado tranqüilo há sempre uma galáxia que se expande que se acolhe, entre o outro e o eu o morno silêncio dialoga enrredando a feliz sombra de uma liberdade que não é precisa, muito menos infeliz.

Ele levou as filhas para a escola, junto também o seu coração foi levado para a escola. Ela viu as malas prontas, as mesmas que ela levou para Maria, não mais Maria, mesmo assim as malas são sempre amorosas. As malas junto ao quarto, junto a casa, ao contrário de tudo, ela não estava nem aqui nem ali, nem acá, nem dacá, foi ver a comida do cachorro. Mais tarde voltou à cozinha e ele já estava de volta, de volta emprestado pelo acaso.

“É melhor você contar.” “A nossa família acabou na minha vez de jogar?” “A culpa foi toda sua!” “A culpa não nos responde coisa alguma! Não nos ensina agir.” “Não venha dividir o que você fez!” “Somos ou não pais de nossas filhas? “Posso não ser mais sua esposa, sua perfeita esposa morreu!” “Nunca viveu! Nunca!” “Ou nós falamos sozinhos ou juntos, ou não direi nada.” “Faça como quiser!” .

Nos ombros uma única dor dilacera a úlcera escondida, renovado termo do convívio humano que tece, fenece na teia algum inseto. Ele desceu em desespero com todo exílio, desceu as longas escadas verdadeiras, desceu com as amorosas na mão, a mala e Amal partiram na vaga lua do dia, desceu e ela não deixou de estar sempre sozinha.

“Depois de um dia de luta, o leão descansa sobre a água fresca!” “Bela como você está bem esta manhã!” “Segui seu conselho.” Ele foi sentar no fundo da sala.

O coletivo não foi tão rápido quanto da última vez. A última vez e a passada vez que realça por ser passada, e o tamanho aumenta porque cresce. Uma volta, duas voltas, a volta da escola ficou divertida.

Bela tomou alegria e aceitou o convite. Após a morte de seu avô não saiu, não comeu, alguns dias ficou sem ir à aula. “É por isso então que você parou de brincar comigo, é por isso que além de tonta de manhã ficou também surda, cansada, você muitas vezes ignorava tudo?” “Há muitos dias que não sei o que é ter uma vida normal.” “Uma vida normal me parece uma coisa um tanto chata.” O chopp chegou novamente escuro na mesa.

Dudu a olhou não sabendo o que olhava, e ali, daquela noite, o sereno epitáfio do amor escavava o mármore tártaro.

Num domingo próximo ao mesmo ano ao mesmo dia que se conheceram no bar, bem se olharam, havia estrelas escondidas no céu.

A cidade grande, bem grande que seja, ainda tem um discreto silêncio, um silêncio corrupto que se vende a qualquer moto que se vende em qualquer bar, se vende por uma cachaça, de dia ou de noite.

O silêncio incólume permaneceu por um inteiro, por um minuto. Fração tardia de um beijo. Lançam-se as almas atrozes na versa medida que espeta o longínquo anseio do desejo.

O dia amendoado de nuvens vislumbra o regresso, mas a paixão não regressa, se firma se finda no oceano. A vida que revolve não dispensa as lágrimas, cobra a juros altos.

O transporte amadurece os sonhos e os novos sonhos se completam na ferida feroz deixada como ilha por algum continente descontente por sua imensidão.

O amor não se explica. Acontece o amor, acontece

o filho,

acontece a morte,

acontece o inequívoco,

acontece o sol nascer,

acontece a noite,

acontece a super nova,

acontece a guerra, acontece a miséria,

acontece a loucura,

acontece a arte,

acontece ser mulher, acontece o é,

acontece o foi,

acontece o sempre,

adiante e o talvez,

o mágico e o opróbrio,

o que desvela e o reinado,

acontece o mundano,

acontece doente, acontece saúde, o novo e o super,

acontece o resto,

acontece mas não há alguém que vê.

A porta automática angulou, cumprimentou o porteiro, um envelope na caixa, o elevador, porta aberta, em casa. Bela já punhava os olhos no convite “Convidamos todos que amavam nossa filha Maria para celebrar um mês de sua morte. Respeitosamente...” O telefone, o telefone. “Alô.” “Tudo bem Bela!” “Tudo.” “Jual e eu estamos precisando de uma companhia feminina.” “Vocês estão aonde?” “Na porta de seu prédio. Da sua janela você pode ver o orelhão!” .

Uma quitinete não foi feita para três pessoas, muito menos para uma, talvez para um pobre cachorro, mesmo uma pessoa não permite ser tão pequena. São desejos pequenos móveis em quarto de boneca. Não são bonecas.

Eram eles apenas bonecas — frutos da imaginação arcanja de um ser poderoso, não eram o melhor do sonho dos mendigos, dos mendigos que falam língua estrangeira.

Ó mundo amoroso vociferais as almas pequenas e grandes no turbilhão de algum tempo medido em esporas.

E o espirro e o tiro e a mira e a voz que alcança da porta ao corredor. Diego embalado e miúdo, Jual trajado no veludo das faces que enroseiam as abóbadas celestes _ celestiais são os amigos que aninham em palavras multicores.

No ensaio de uma noite ainda precisa de pontos eles se viram mais uma vez, bem longe de Maria, aonde poderia estar mais longe senão no terreno, enterrada na galeria mais funda entre os precipícios de lençóis, entre o breve e o úmido. Entre ela e o mundo eram eles a mais fofa terra que acudia o sereno pejo de uma mulher que cometera o que qualquer um pode cometer. É possível ver e entrever o que é visto, é possível no máximo sorrir diante — diante do inevitável o sorriso escarlate.

O chão que se abre, o domo que se abre diante do sol e a luz que toca na flexibilidade solteira a superfície do mundo, o amor se abre perdido em suas próprias fendas se fecha, cozido, retorcido, o solo lixiviado deixa para o sub o calor das águas desertas. O deserto é vermelho, o deserto é branco, é amarelo, é marrom, é verde imenso, o deserto é belo no perfeito.

Bela deixou os amigos na felicidade de sua companhia.

Se despediu já enlagoado, o sofrimento não aumentou, Beatriz alcançava o futuro, a dor e a solidão do futuro, ao encontrar com seu futuro já tinha ido Amal.

O quarto das meninas no soluço autoritário das lágrimas prenunciava uma saudade familiar, saudade tal que não comove a realidade.

Mirando as crianças, devendo ao futuro ação, o amor se viu subtraído pelo marido. No perdido, no que ameaça, a traição não perdoa. O orgulho como grande pecador e a liberdade por entre paredes. No entremeio das leis, esquecidas nos muros.

Na possessão maligna, com a fé escandinava, nas pilhérias humanas só se deixa solto, solitário, à deriva — emplaca o amor no rochedo noturno.

Tripulantes e tubarões se somam na experiência do medo do terror do eterno do efêmero do que é vazio e mesmo assim preenche o que é novo, por muitas vezes o que na maioria das vezes é um começo. O que importa às crianças invadidas pelo Amazonas, o que importa à realidade se as crianças sofrem, aos homens a felicidade é na utopia a fórmula infeliz de aceitar as frustrações. O que significa ao mundo dos homens se crianças choram, se crianças choram a dimensão divina se esvai e se condensa em fé ou ignorância. O que importa a deus se crianças não têm famílias, sua presença não diminui, não se diminui por nada, a realidade não se diminui em verdade por nada, o mundo é o mesmo e mesmo assim crianças são uma parte indizível inefável de verdade.

Não significa, não importa as águas turvas do inconsciente, ninguém se diminui, ninguém desiste de seu emprego, ninguém desiste de trabalhar porque crianças supuram, ninguém deixa de amar, ninguém deixa de meter, ninguém deixa de se locomover, ninguém é realidade concisa, o mestre de todo amor deseja a lógica da perversão.

Malditas sejam todas as crianças do mundo que choram e perturbam o sono do falo, do clitóris dos sábios dos enamorados dos marginais. Mirando as crianças, o futuro mirando as crianças, as crianças... Beatriz mirada pela realidade, que na infantilidade ignóbil dos adultos se desloca, repudia o próprio desejo. Balba e Ébora colididas. Beatriz foi aumentar a colisão.

No quarto infantil, naquele momento infantil, duas crianças e uma mãe viviam a alegria dos sentimentos, a alegria de sentir pra além da realidade da perda, para além da dor uma magia humana irrefletida que nem por isso deixa de ser desverdejante. Mesmo desnaturadas folhas da relva não deixam de embelezar os seios de uma ursa que à procura do mel não esconde no seu peso na sua fome a malícia da delicadeza maternal.

Lá se vão as crianças autônomas educadoras ensinar diante do rugoso tecido epitelial dos carrascos a novidade e a estranheza do amor. Naquela tarde o solvente universal elidia palmadas no futuro próximo. Sobrevive a saudade, sobrevive o sorriso, sobrevive quem melhor sabe amar, pois o amor é puro relato infantil.

Inacabadas são as âncoras que encostam e acariciam a areia diminuta do mar. As pérolas e as ostras, as deixas e os ocasos do presente remoto, as gueixas dizem da mulher muito mais das mulheres que podem supor quaisqueres homens.

Líliam deixou ao intestino o sabor do paladar. A sua vergonha não desfez, mas por isso não deixou de perceber o olhar de mãe atrofiado pela macabra arte do acaso.

A arte é bela, a mãe é bela e sem adjetivos. A vida breve é rebeldia. O amor instantâneo nem sempre é nutritivo. A voz é finda ecoando. E finda a visita, Líliam entregue aos botões cor-de-rosas do pensamento. Esmerando fazê-la feliz, os pensamentos movimentavam na altura dos joelhos na altura da boca pela coxa pelo ventre adentro, afora com as naves espaciais, com as estrelas com a lua com os tornados.

Com precisão, no conjunto dos pontos, no domínio arquitetônico das imagens os pensamentos massageavam o peito, o dorso, os pés. “Minha filha, todos lá em casa sentem muita falta de ti!” “Todos da família rezam por você.” Ela consentiu com sabedoria um piscar de olhos. Ela não se afastou, não se deixou rebelar, o rosto não demonstrou qualquer dessabor. A mãe sentou ao lado da cama, acariciou a filha, intento apaixonado do gesto humano mais raro; o gratuito amor maternal a fez chorar. Na maior parte das vezes chorava pela inutilidade.

O médico veio-lhe visitar na magna cor de deus, o médico esperança do mundo, depositava no quarto o dom perpétuo andante não menos viril. Não se receava de nada, cumpria o profissional e o passional, era o negro e o branco. O curandeiro amamentava a felicidade que já não participava da vida dela.

Se nenhuma fé se conserva em liberdade, em ato mágico, não o é, antes o é — o diabo da liberdade. Esta palavra gasta, comprada a dinheiro num qualquer shopping, não rui — ainda não desfalece, sabe-se lá porque, talvez os pensamentos de Líliam se alimentassem da mais maldita ingenuidade, um sonho cujo infinito se dissipa se cauteriza e transforma o que apenas era história natural, em história.

Mesmo que o mesmo seja ignorante de si, por isso algo, o não saber sentia o certo de tudo.

Na tarde plana, não convexa, nem realeza, nem beleza, o atrevimento torpe, aquiesceu os olhos na casa vazia, nos quadros da parede, pelo ar se chega àlgum lugar. O lugar esconde nome, esconde espaço... tempo.

Na nativa ousadia da nudez, no solitário aumento de tudo, na transpiração do dia quente, nem o desodorante passivo comprometia o metálico suor de expandir, o céu por sempre azul, o céu muito além das nuvens, passarinhos, novidades de viagens. Maria foi à caixa de correio à procura de notícia, não teve pejo de sair nua, lá não encontrou nada, encontrou nada além do que o mesmo mundo inspirador de saudade.

Não há notícia que não mereça seus detalhes. Quando não existem notícias sobra o desejo de querê-las.

Queria muito, o muito é o próprio muito, o próprio nó, desatada alma, dispersada por uma ferida atroz, Maria mira a sobrancelha perdida de uma outra mulher. Dissolvida a família diante do olhar, o querido irmão jogado no fundo da lacuna.

Alvro escapa com a asa quebrada, o encanto quebrado, ainda xícara a xícara quebrada, ainda vida a vida azada, ainda feliz o que não é, feliz de ser algo, feliz o é, não importa, porta, importa o carro, a morte, a voz — sonhou ver o irmão abraçando-a, como no costume dos carinhos deles uma poeira entra nos olhos, arde lágrima — amor, sensação de amor não noticia, afagada ordem no peito cheio, coberto de cheio o dom estranha até o mesmo contrário de si.

Deitada acontece amar, em pé o choro, já no final do ano as duas tartarugas tiravam os cascos. A grama pendulou em novembro, as uvas vieram pelas pontas, o mar continuou a tecer os fundamentos da discórdia, os marinheiros solitários chegaram em terra firme.

Embevecidos num sítio, ainda que muitas pessoas dançavam no fim de uma grande festa, Bela e Dudu já se encontravam fora de cena. Frente a eles o sossego da fogueira estalava pela úmida aurora o recíproco calor. Os insetos frivolamente dispersavam pelo pomar, o vinho branco, sutil e seco em copos azuis, os pequenos bêbados solapados na relva, os deuses festejantes tribulavam pelas chamas azuis, a madeira portenha de impenetrável dureza secava lentamente, um estalido aqui, um chão noturno no derredor, uma sombra e uma árvore, as flores no seu preconceito mais raro odorificavam os ventos.

A parte mais leve de todo tempo flutuava pela lua crescente.

No metro mais tardio, na voz mais mansa, no encanto isolado da dualidade a juventude trazia o que de pressa o destino dragava. Nem a solidão se manifestava, nem o mármore, nem as pedras, nem o galo, nem o cachorro, a suspeita toda ficava nas patas de algum bicho faminto.

O futuro torto, viajante de tapete alado conduzia a dedos, a dança das bailarinas felizes. A roda do mundo, a engrenagem, o universo — expande, recolhe — a roda do universo se calou, a festa acabou, os bêbados dormiram.

Também em volta da fogueira os amigos as fadas o fado o trágico o belo o mágico, o incolor o inodoro o indizível o indelével o inefável o que emociona o que entristece, o que é alegre, o que é o ar, em roda da fogueira o universo. As estrelas, os planetas, as horas, o espaço, o amor, o propício e o precipício, o homem uma mulher em volta da fogueira, por pura vaidade em volta da fogueira o universo.

Vaidoso por ter todos e todos os homens por tê-lo, vaidoso por saber o todo de si, o quão todo é o sabor, o universo em sua medida desenhava as órbitas.

Num quarto dos fundos eles se deitaram, um na companhia do outro, o mundo na companhia deles, o universo nunca está fora da própria companhia, sempre consigo e com tudo. Com eles o universo na cama do universo, na cama da terra, na roda da terra, a terra e eles, em companhia um do outro, em companhia da vida, em companhia da tragédia, em companhia do incólume, por sua vez os corpos em companhias, por sua vez os seres se fazem companhia, uma mulher, uma garota e um rapaz em companhia, as bailarinas felizes continuavam dançando em volta da fogueira.

Nus, o amor está nu, os corpos nus, desnudados, o nu está despido, o masculino e o feminino num único nu, o devir é o nu, o devir é o amor, o amor está nu, e o nu enudece, emudece, se torna nua a voz, a saliva que seca rejeita os corpos frios, nus estão os corpos aquecidos. E o nu está nua, nua o que é nu, os nus são: desejos, faltas, amor, transcendências, mortes, pequenas mortes. Os nus são belos nos iguais, são nus nos iguais, são belos nus nos iguais.

Na cama o envolvimento insolúvel, na cama os nus são insondáveis. A graça e a beleza também é dos pobres, dos feios, dos tristes, dos homossexuais. O filho do mesmo é também do outro. O sonho de um é sonho de outro. O amor é: amor todos. O todo é uma nudez infinita. Infinitos são os corpos que gotejam pela penumbra da noite, pelo raiar do dia, pela tarde lã, pela tarde litro, pelo entardecer... assim os corpos inflamam-se, a nudez mesma se abriga. Cordialidade.

A mãe se foi pelo partido das pernas, sozinha, sem se debruçar em dor, sem lembrar de si mesma, andante. A noite sobreveio, não esperava, nem mesmo por um milagre. Embora aconteça, narram-se milagres, embora aconteçam na narrativa de uns nos sentimentos de uns nas vidas de uns, não esperava por um milagre, a noite sobrevinha calma, iludida, ácida e metamorfoseada, a televisão estava ligada no quarto, a terra girou uma volta e meia sobre Líliam — noite se fez.

Sozinha — de tarde chegou em casa. Uma cobertura amiga velou a festa no sítio. A mãe perguntou à Bela alguma coisa, embora houvesse já respondido, não se deteve de pé.

Deitou na cama de molas. Diversas vezes ali entristecida pela adolescência, o avô vinha lhe fazer companhia. O pai nunca havia conhecido, partiu logo que sua mãe assumiu-se grávida. Sobre isso sua mãe não falava, o avô tomou Bela como filha.

Um sabor indecifrável pluralizado no corpo, com os pés na guarda da cama sua mãe entrou sem bater à porta como costume, como era sabido, em uma maior nitidez entendeu a solidão do que falta. “Você não quer comer? Está no forno seu prato.” “Não mãe, não estou com fome” “Filha! Você não comeu nada hoje!” “Mãe, acabei de chegar, estou cansada.” “Aconteceu alguma coisa? Desde o dia em que seu avô morreu você não é mais a mesma.” “Você anda tão distante minha filha!” “Não aconteceu nada não mãe, não se preocupe, só estou cansada” “Querida, como seu avô faz falta.” Pela primeira vez suspirava a pessoa dele. Bela mirou a mãe, que também foi filha. “Estou cansada mãe, vou tomar um banho, depois eu como qualquer coisa.”

A porta diminuiu seu ângulo, quase anoitecia ao se perceber com sono. Resistiu. Entrou no chuveiro, resistiu mas não pôde. Uma frase inteira lhe dizia que estava feliz, com medo mais feliz, feliz porque o amor é por sempre felicidade. O amor pode ser trágico — quando consegue ser tragédia com todos os seus atos — é uma incólume felicidade.

Beatriz enxugou-se com minúcia. Cada parte tocada por suas mãos, as gotas que ficando no algodão, cada parte tocada, cada parte: cada toque, gesto, nua, nua, nua seca.

Ela não sentia frio, seu cabelo curto, anéis na pia, o olhar multiplicado do espelho, seu corpo nu e nu no espelho, enxugou-se com minúcia. O telefone toca: uma duas três sua mãe “Alô!” “Por favor, poderia falar com Isabela!” “Espere um instante. Bela! Bela! Telefone pra você!” “Quê mãe! Estou no banheiro!” “Telefone pra você!” “Já estou saindo.” De toalha enrodada pelos seios, pelas coxas, pelas costas semi-nuas. “Alô.” “Tudo bem Bela!” “Como não!” “Saudade de você!” “Fazem duas horas de eternidade que não nos vemos.” “Isto tudo!” “Tudo isso.” “Vamos no cinema?” “Em que sessão?” “Das nove pode ser!” “Oito e meia no ponto.” “Tá bom.” “Um beijo.” “Um bolo de beijos pra você.” “Tchau.” “Até mais.” Deixou o telefone no aparelho como quem deixa um neném no berço. Olhou para parede mas não se sentiu detida, mirou a mãe na doçura de filha, para o quarto se trocar. “Filha, filha, filha, Terçã ligou para ti mais cedo, pediu para você ligar assim que chegasse em casa. Estou ficando esquecida, estou ficando velha!” “Tudo bem mãe! Tudo bem, só vou terminar de me trocar.” Cerrou a porta, soltou a toalha. Nua por inteira, nua pela metade, nenhuma nudez é por si mesma a completa nudez, há sempre uma mortalha, uma tecitura que protege e guarda, que torna o ser inviolável.

Abriu a geladeira, Maria encontrou. A maçã ficou lavada em cima da pia. Funcionou a torneira da banheira, foi aos fundos da casa tomar sol. Ainda continuava despida, o resto da família estava viajando. A noite fosse madrugada seria festa. Novamente pensou em ligar para Bela, não teve coragem, não teve mesmo é vontade, ficou ali, sentada em um banquinho de madeira — (o sol a dizer sobre a luz da própria pele) — pensou no irmão, ele não contaria para ninguém, não diria para ninguém, nunca mais seria capaz de amá-la. Tomou juízo pelo banheiro, alagado de água quente, morna no chão, fez a maçã brilhar em sua tez, deitou-se na banheira transbordante.

Um barulho de mar, um barulho de rio, um lago cheio, o som da maçã mencionou o sabor, sua cor e a boca vermelha o cabelo negro, liso, curto, a pele morena, retirou do armário a essência de eucalipto, a porta aberta, a vida aberta, as pernas abertas, as vozes abertas, começou a cantar. “espuma branca pela vida...”

O telefone tocou, tocou as noves vezes nem por isso foi atender, não modificou os gestos, não perdeu o canto, nem esqueceu a letra. As lágrimas avolumavam na banheira, não rejuvenesciam a coragem, nem diziam das fraquezas. Singelas lágrimas dizem da alegria — apenas singelas lágrimas dizem do mundo.

Sonham outro universo completo e outras mecânicas. Nas belezas mais carnais, sem motivos de censura, as lágrimas terão fim.

Uma última lágrima desceu-lhe pela mortalha, pela última vez pensou em Beatriz, por Beatriz sonhou Jual, por Bela sonhou Jual, por Diego sonhou Jual, por Jual sonhou a si mesma, nua, feliz, amante e amável, por ser a felicidade uma espécie de saudade, alcançou a família muito longe dali.

À noite Líliam não ficou na televisão, o sono que convergiu pelo nariz, trouxe-lhe o afeto de sentido, duas terras ficaram obscuras, a mente em asa, a vida pusilânime deixou de brilhar, o olhar se pôs, o corpo voltou a ter autonomia. Um ser moribundo, um ser eternamente moribundo parece ser o presente magnânimo desejado por toda doença.

Lílians são outras milhões, um conjunto de miríades sobrevêm ao funesto, milagres acontecem.

No dorso de uma aliá, nas cores das zebras, os macacos e os urangutangos, com muita dança nas noites, onde as cobras rastejam à procura de algum jantar, os ruídos prolongando entre os ecos do vento, as chuvas os rios e os hipopótamos, os ociosos bichos fulgurando a tradição de que tudo na natureza conhece a felicidade, a maturidade é instintiva.

O sexo é mesmo novidade para quem o faz, o filho é mesmo novidade para a mãe, com tudo — tudo adormece, com tudo se acorda.

Na relva poente, deslocou os lábios adocicados, ao ver uma mulher de espírito branco orar a pedido de deuses outros, pôde resistir à carne, pôde resistir à mulher, pôde ausentar de si, o mesmo amor ausente ainda move na esplanada o próprio gozo.

Mordeu Ugumbá, ao arranhar as costas fortemente negras, a tez manteve seu brilho, ele não perdeu-se de si. A lua cinza pela planície dourada, as estrelas não se ofuscaram, mal cabiam nuvens e estrelas no céu. Tocando cada buraco negro, negra é a voz do relâmpago de cristas e vales, a tensão não se distendia, o encontro não maltratava, a selva cujo brilho vário descansava nas alturas das girafas, o silêncio inexistia, ininteligivelmente só as pedras compreendiam o exato equívoco que é o mundo e as rosas que muito longe estavam dali, ali não havia nenhum contágio, tudo era formado de uma extrema expressão efetiva e doce.

Comumente o amargo, o acre e o azedo, o muito mal e o vulgo, sorvidas as quimeras da paixão ainda restava a tamanha noite, gorda, com quilos de sobra, com alimentos excedentes para os enamorados e os amantes. Dragões saudosos no céu, os homens solitários, mesmo as viúvas tinham com quem se cativar, a abóbada celeste plenificava a redonda esfera, as redondas esferas do universo, as que estão longe do sol, as que se avizinham dele, todas as bolas de marfim nunca deixavam de ser amadas.

Enfim o planeta de longe azul — o ar compõe o azul, o medo compõe o azul, a gravidade é azul, os olhos são azuis, as novidades são azuis, o júbilo é azul, as ausências são eternamente azuis, os poemas são modificações dos azuis, os cachorros são azuis desidratados, mesmo o fogo-fátuo é azul. O espírito se conserva azul, o mundo não conhece outra cor, ao mirar o universo percebe-se na justa aspereza que infinidades são de fato, átomos de cor.

A cor da África é a vontade da África, principia e finda em cor. Por volta das oito acordou. Depois de dois meses no hospital, ao abrir os olhos não sentia ressentimento. A porta abriu, a porta — única imagem, a porta abriu, a cor da enfermeira lhe causou dessabor.

Eles não foram na missa ou na casa de Maria. Buscaram uma caverna no centro da cidade, buscaram a bebida, sobrou o triângulo, sobrou uma reta, um ponto, no final só resta um dom. Se sabe dom enquanto se está vivo.

Jual foi direto para o banheiro, para o chuveiro, enxugou-se de porre, ainda de porre comeu. A casa num sortido silêncio, pai, mãe e irmão dormiam. Geladeira. Já-ti-vi — uma macarronada requentada em frigideira. Um corpo de água nos dentes, fio dental, xixi, deitou-se na cama no quarto com o irmão. Parando os olhos no teto, a luz da rua entrava enfraquecida pela janela diáfana. A cortina aberta até que o irmão fechasse antes de ir para o colégio. Pensou Maria — saudade, o amor chegou a sentir, héé, não teve tempo nem crescimento.

O corpo em lençol limpo — os músculos, os lábios, as pernas de cueca, coberto por uma fina colcha de retalho. Uma imagem de Beatriz Maria, uma imagem inventada, os seios de uma saudade, a imagem é amor, move o corpo, move o respeito do corpo, move a cadeia motora do sono. Jual cambiou de posição, os olhos agora fechados, as imagens abertas, o coração sossegava com as pálpebras pesadas, o cérebro deixava vaga a moradia.

Bela tocou Dudu na bunda, no formato da bunda, tocou-o profundamente, apalpou, curvou os dedos em curvas outras, que suas, suas mãos, curvas, o que são as curvas de um corpo para mãos outras. Quedou-se de vermelho rubro, não omitiu, derivou sua vontade da dela, subiram na contramão da avenida.

Imiscuída, excitada, sábado — a cidade bebia em todos os bares, entorpecida de carros — loucos carros, os sons dos falíveis esquecidos, as bacantes pelos lugares, os desejos sobrecarregados de álcool, o sexo sobrenaturalizado, a lua e o supremo dom da ignorância, a ignorância seja na maior gratuidade, a burrice seja ela burra, seja ela sempre uma grande certeza, certeza e cegueira sinônimos.

Já de madrugada, umedecidos os cabelos, umedecidos os cabelos ainda de Dudu e Bela em suas respectivas camas. O beijo de adeus pouco despedia. Enaltecido fica o amor quanto mais se ama longe. É o começo, o começo de quase tudo.

Depois de ler, Beatriz assinou os papéis. A pensão lhe garantiria a sobrevivência ali, ou em qualquer outro lugar. A casa por demais imensa, por demais desnecessária agora.

No final da tarde Amal esteve lá, as filhas não tinham ainda chegado da escola. Os equívocos são inúmeros, as sortes são raras, o amor por certo não compreende.

O mundo humano: tomar banho com a torneira desligada, andar de carro sem as chaves, ser virgem estando grávida, falar em silêncio, viver enquanto estiver morto. Abriu os braços antes de ir embora, abriu os braços e as crianças se foram para o quarto.

E tudo começou... “Ela sofreu um acidente, está consciente! Está lúcida!” “Ela está bem!” “Machucada?” “Sim, mas já não corre perigo de vida.” “O que aconteceu?” “Uma batida de carro.” “Ontem eu tive com ela no final da tarde.” “Jual, acalme-se, estou indo lá no hospital agora, se você quiser passo aí, a gente aproveita para conversar no caminho.” “Tá bem.” “Aonde você mora?” “Atrás do ginásio Vermelho, a rua é...” “...eu conheço.” “Número 90.” “Eu te espero na porta do edifício.” “Sete meia!” “Tá bom.” “Até logo.” Trêmulo deixou o telefone.

Os pais trabalhando. O irmão brincando de bola na rua. O quarto para trocar de roupa. A casa vazia para trocar o rosto. Cambiar o rosto de pranto por algum punhado de coragem. Trocar a face e o choro. Trocar a dor pela vontade de amor. Trocar as asas quebradas pelo perdão. O desespero pela ternura. A vaidade pela virtude. As alegrias dos loucos, a paixão dos miseráveis, o dom dos indotados.

Líliam ainda viva.

As lágrimas caíram a onde está o sabão. Lavou o rosto  as mãos — a voz — os pulmões. Os olhos negros, os ondulados cabelos loiros e a pele branca.

Como gotas no ensaio, a pipeta adentro do subjetivo coração, semelhante ser tudo que tem.

Todo corpo, tudo que tem corpo — coração, tudo tem razão. Corpo, coração, tudo que tem na mente.

Tudo que move a mente, tudo que a mente faz mover, tudo que a imagem fazer mover, corpo, coração, tudo tem Jual.

Deixou o sinal da cruz no quarto de dormir. No banheiro deixou suas lágrimas no sinal da cruz. Deixou a cruz escavar seu peito — já não sentia mais dor.

Na porta do prédio encontrou o irmão driblando o goleiro, mas Lola não viu este belo gol, conversava com a amiga, de vez em beira olhavam os meninos, os chutes, os gritos, o suor, a bola. “Jacs! Jacs! Venha cá Jacs, venha aqui!” “Pô! Tô jogando!” “Eu tenho que sair, feche a casa ao entrar, não perca a chave, mamãe mata a gente!” “Tá legal” “Líliam tá precisando de um gol.”

A bola sendo procurada debaixo de algum carro ao ver Kika chegar de importado.

Na aula eles se olhavam de soslaio. Juntos de circular, juntos, de mãos dadas, entrevia neles.

O tempo que guia que enguia que diria a mesma tormenta no mesmo ar, o que difere infere feminino e masculino.

O momento de um presente, de um longo, com voltas, com sono e o tempo entre mãos entre os beijos.

O tempo sadio e o tempo efêmero, o tempo complexo, o tempo vil, o tempo de uma nota, o tempo de outras, o tempo da harmonia, o tempo da percussão, o tempo remoto jato de algo celeste, o tempo fere mãos pés pele.

Maus os ventos envelhecidos, más são as mãos cansadas, mau é o carinho pior é a paixão.

Sobre o amor não se lista adjetivos.

O tempo modificado, envergadura ou ferradura esquecida, o tempo morto, o tempo achado, o tempo possível, o tempo velado, esquecido o monte de estrume, o monte de merda, olvidados são todos os miseráveis e os viajantes.

Esquecido o amor em alguma prateleira de laboratório, em algum museu os ossos, os ferros a morte, o tempo inusitado sem abrevidade, o tempo breve, o intenso breve, o morto breve, breve é o morto.

O tempo outro para outro que não seja mais um morto.

O tempo escamoteia e sobrepuja o dorso vil, violento de algum amante. O tempo de tração dianteira, sem peso, derrapa em qualquer curva, em qualquer lugar.

Em algum lugar o que muda o que passa em algum lugar não existe não fere não preza não sacia não invade não descreve. Algum lugar nos algures nos nenhures, em algum lugar, não é necessário, não é complemento, não é vontade, não é potência, não é ser, não é novidade, em algum lugar, mesmo que este não exista.

Em algum lugar não existe.

Não abarca, nem rebarca, e o tempo fica sem ver a menina que passa, fica a chamar por sua própria vida. Na ausência da... o tempo... ser... sem asas.

Hospital. Óspito. Inóspito. Hóspede. Hospedeiro. Hospício. Hostil. Hóstia. Hostal. Ogro. Homem. Haja. Houver. Hoje. Sabia. Não. Andaria. Jamais. Médico. Transplante. Esôfago. Talvez. Não. Rejeição. Sem. Mínimo. Perigo. Jamais. Andar. Mexer. Sempre. Paralítica. Fala. Sem prazer. Talvez. Não amava. Corpo. Somente. Parece. Entrou. Líliam. Vigília. Encontro. Volta. Revolta. Conflito. Trágico. Crueldade. Vida. Amor. Choque. Escapa. Estado. Choro. Rosto. Somente. Rosto. Cabeça. Cérebro. Cabelos. Jual. Cabeça. Líliam. Toque. Intocáveis. Possibilidade. Amor. Chance. Dor. Não. Mais. Talvez. Insuportável. Ambos. Trauma. De longe. Calma. Tá bom. Ainda perto. Em redor. Algo. Esperança. Sem alcance. Importa. Não. Talvez. Talvez além. Lágrimas. Múltiplas. Sem escolha. Colha. Perda. Embora. Boldo. Necessidade. De todo. Ser. Viu. Ela. Vergonha. Dor. Ambos. Era. Não. Era. Sim. Amor. Nada. Raiva. Ódio. Acabado. Amor. Vida. Possibilidade. Término. Alma. Corpo. Eu. Presente. Caminho. Veredas. Quais. Nenhum. Assim. Perdão.No tudo. No nada. Inexo. Sem nexo. Vida. Somente. O dia seguinte. O momento seguinte. A vida seguinte. O amor. A Líliam. Jual. Aporia. Sem saída. Continua. Ser. Vida. Possível. As lágrimas. As voltas. Amanhã. O espelho quebrado, a casa e a vida quebrada, o amor ignorante dos corpos, a alma não sabe sobre os corpos, o que resta dele, o que resta dela. O resto, o finito, inflexão de uma esperança.

O carro parou suavemente. O carro. Lua. Estrelas. Noite. Amanhã. Uma estrela visível, visível, risível, não para Jual. O pensamento lateja dentro, deseja se libertar, a pedra não transpira, nem move, não sente e não movimenta — o dom do perfeito cárcere.

O todo se junta numa parte, como se fosse por pura captação, capta-se o que discorre, reúne, calcifica, a Líliam saúda Líliam, ela despede dela, despede do velho, não conhece o novo, a despedida do velho e o começo do novo. Tudo não passava de um embaçamento, nem mesmo a imagem dela permanecia perene.

Se rendeu na cama, percebeu o que lhe acontecia, quando aquiesceu que o que lhe acontecia era ainda um meio acontecimento, tomou para si o inteiro, o verdadeiro, sua vida lhe pareceu fagulha de estrela, uma unha cortada, nem mesmo os pés tocam o chão, o chão, o real, contra toda ortodoxia está a tragédia. Bem vinda seja a criação de todo inferno, seja o ser de falta, verdade que falta, verdade que é falta, falta ser, falta a falta ser. O método completo não é desvelação humana, não é humano conhecer, a parte garante o todo, o que garante a cama, o que garante Jual, o que garante ela, o que garante aniquilando. Ele deitado, o mesmo homem o diferente homem os dois os três estão em puras sonolências.

Um mês e meio e ele não desceu. Quarenta cinco dias. Seis semanas sem qualquer corrimento escuro. Dias e dias, sozinha, sem contar, sem pensar, fiel. Toda manhã no banheiro mirava-se; o sangue dentro. Ao aperceber que seus seios estavam inchados, na volta do colégio, atravessando algum assunto escolar. “Acho que estou grávida.” “O que você disse?” “Acho que estou grávida!” “Grávida!” “Como?” “Como eu não sei, mas minha menstruação está atrasada e meus seios estão inchados.” “Você não pode estar enganada?” “Tomara que eu possa.” “O que é que nós vamos fazer?” “É eu que sei.” “Não esperava que isto fosse acontecer.” “Muito menos eu!” Alguém olhou. O ônibus manteve o mesmo itinerário.

O mirar saber de uma mulher, o horizonte engravidado de barriga, o mirar ver saber o horizonte pela janela do ônibus, o horizonte biológico do útero, o olhar de Bela, solto, remoto, em siso em coragem.

Volta e revolve de suas voltas, se franqueia, se consome, o ver livre sábios dos olhos.

O ver das pupilas no mirar de algum horizonte o mesmo e distante, por ser o mesmo e distante é outro que se dá, que procura nos olhos de Bela o horizonte seu.

Horizontes entrementes sorriam belezas de amor, miravam as terras negras do rosto dela, diziam da liberdade da arquitetura da ordem, do caos homogêneo, flertavam. O belo o igual o armado o amigo, os glóbulos miram mirados estão, ver com as mãos da boca, ver com os pés.

O que é emprestado à visão são moedas raras de liberdade, liberdades são moedas moendas de liberdade. Trabalham, movem e removem o humano, recoloca o biológico em atividade, não o dispensa porém nem por isso se torna vil ou escrava.

Uma última lágrima desceu-lhe pela mortalha. O banheiro repleto de água, a banheira cheia, o corpo água em setenta por cento, a nudez nua em noventa e nove por cento, a casa na solidão de casa, em meia solidão as paredes, os quartos, a cozinha, os livros não abertos. Com meia vida ainda está a tarde por acontecer, está por acontecer a noite, as estrelas, as luas, está... estão...

Os outonos sem folhas, o calor da água e o calor do corpo emergido.

Maria de cabeça ereta, cabelos molhados, os olhos molhados molhando a água, o sal o som o verso a palavra a verdade o sonho o mundo o pai a vida a vértebra a coluna curva, a curva da banheira, a horizontal perfeita, a banheira cheia, repleta, a água cheia repleta versada veemente toca o corpo nu.

A água toca, imprime, relaciona, diz e conclama com toques o amor o vício o desperdício, não há início de suas mãos, não há fins para seus pés, não há movimento que se imprima — há o toque, o inteiro contato, o inteiro jogo líquido fluido sólido. O corpo que não se dissolve, não se alimenta, se compraz pelos carinhos das moléculas, o extremo nu alcançado, a extrema nudez contida pelos flancos, pelos lados inteiros, o de trás e o de frente, o singelo meio instruindo o peso levitar.

A gravidade domina, a água resiste ainda ser nua, pura água, nua água, nu que o corpo é nu, que o nu em água é ainda corpo água em sua própria nudez. O calor foi construindo seu litígio, o sabão separando de sua fragrância, os vapores para cima, o espelho se embaça, esbarra no escuro, não mais vê nem mais reflete, o banheiro sai de cena, a água encanada desce, a espuma ora, o molhado se esvai, Maria se levanta, se levanta o que é legível, o legível pinga, quantifica o tempo, em números de tardes se pode contar toda uma vida.

A realidade ausente do encontro físico, de encontro já podia melhor pensar do que encontrar o que se pensa, não se entretia mais nestes tipos de contatos, estas ligações não diziam mais sentido. Acostumando com a moradia hospitalar, Líliam acostumando a viver o pensamento, por demais carinhoso, fantasioso, viril, não movia o diferente do nada.

A porta abriu, bem ou mal, para além do amor era ele, para bem mais perto do ódio, Jual estava arrumado: calça jeans, cinto de couro, uma camisa branca, os cabelos curtos, o rosto bem passado, um leve odor. Desejou não vê-lo. Quisera não enxergar mais. O saber ver ainda elaborava algum encontro com o outro. Mirou no meio do gol, toda a torcida vaiava, campo repleto, a grama alta, o riso no frio do estômago eremita, deixou o pé na barriga do inimigo. Expulsa de campo, a torcida na estética da vaia, mirou no joelho, na boca, no saco, nas pernas, nas coxas, nos ombros, mirou o pinto, o desnudo fazia doer, o ausente rememorava esse infame encontro. Existe um corpo físico, existe uma memória de corpo. “O que posso fazer, o que posso dizer!” “Falar agora! Uma estupidez Líliam. Como posso ajudá-la, como posso...” Seus pensamentos, amigos amores, amigas pais, os pensamentos soterrados de inutilidades. Ela mirava, o mirava, porque mirar é; único meio disponível, um fim disponível, o um dela, o um era o tudo seu. O possível, o finito possível, o olho possível, o amor possível, olhos grandes olhos ardentes, as pupilas, os cílios, contorno, o buraco redondo, seus olhos negros cobriam toda a realidade de Jual.

Ele a beijou antes de sair, ele saiu antes de beijá-la, ele a beijou antes de entrar, despediu antes de encontrar, ele amou antes de amar, desamou antes de amar, Jual amou depois de desamar, ele, ela, a vida, sonhos, a cicatriz do mundo na pele. A porta no ângulo zero, o quarto e somente ela, por muito que fosse, fosse quase nada, um fosse que não tem lugar, o lugar do somente, um lugar do muito.

Os milagres só acontecem à noite.

No seguinte, no subsequente, pela transcrição do tempo um dia e uma noite. Pela transcrição humana um dia, um dia é um imenso relato, um dia grávido é um relato ainda maior, uma noite de Dudu grávido transpassa o noturno. Sucede. Um dia uma noite, sucede.

Um dia repleto de ocasiões, um dia, se olhando no espelho antes de ir para aula, o medo e a alegria, a força e o desespero, o feliz e o efêmero, o doce e o magro, se olhou no espelho que a apontava como uma mulher. “Nada.” Ele ficou em silêncio. Bela pegou em suas mão, o útero dentro, o ovo útero, o vivo ovo útero, o incondicional na barriga, a escola na barriga, um homem na barriga, um sonho na barriga, a maldade na barriga, o medo da barriga, tantas barrigas quantas necessitam o amor. A mão sucede, a mão toca tocada, a mão sucede no corrimão, a campainha estrídula, a escola, o portão, a carteirinha, que eles entram, a aula acontece acontecendo.

Na fila, sua vez. “Isabela Aurora Pill” “Deseja que seja entregue ao médico?” “Não, não, muito obrigada.” Desceu as escadas, na rua abriu o envelope — correu para encontrar Dudu.

Sentado num banco da praça não a viu chegar. “Verdade verdadeira! — Estou grávida.” Entregou-lhe o envelope. “Não há cura para isso?” “Não estou doente. Estou grávida!” Amor sede desespero. Sucedeu.

O distinto sentido pousa recobra retoma o corpo de quem ama, procurou algum lugar para ver, se Bela não era este lugar, resta a praça, alguma árvore, o céu, vento. Nem tudo é carinhoso, nem tudo é sintomático, mesmo o breve estende finito, o efêmero se eterniza de ser miúdo, um gude, um chicletes, o vidro dela não obscureceu não retornou a cristalizar, ela não procurou os dele; ...olhos... não naufragou em praias distantes, não tentou chorar, silenciosamente recuou seus sinceros ímpetos.

— Eu amo você !

— Ama, ama, trai, ama, pensasse antes de fazer

amor.

— Querido, me perdoa!

— Eu não posso. Não devo.

— Você não quer!

— Não quero mesmo.

— Você não me merece!

Vaidoso — desce Amal as escadas com o restante das coisas. Bem quis Maria, Beatriz ouve o carro partir. Não viver toda a vida biológica, toda uma vida, uma vida longa não é sem o baile da velhice.

Vida longa para os reis para os chefes para os padres para os soldados. Corpos personagens, política, poder, supressão. Bela ainda tinha a imagem cristalina de Maria, beleza inadmissível d’olvidar. As carícias, as línguas, as coxas, o encontro, a magia, o retrato... acaso... espírito... uma mulher em braços de mulher é mulher indefinida.

Não se sabe muito bem, bem de onde vem, mas o dinheiro aparece, fenômeno de alguma humilhação, de alguma escravidão, vem de algum amigo, de uma amiga, da poupança, vem do banco, do governo, da moratória, da necessidade.

Marcada hora, hora vez, vez vez vez da loucura, vez do desespero, vez para o precário, para o opróbrio, vez abjeta.

O baixo ventre, o baixo momento, marcada a vez.

Ignorância — os ingênuos entregues aos erros. Ignorância do desejo, o amor por nunca sabe, age por nunca saber, sabe agir. Ação do desejo — ação, efetividade, sem dissolução, sem dissolução aparente, tudo aparição. Sucessivo chão, momento, sucessiva fila, vez.

Dez horas, Dudu e Bela não iriam à aula na sexta.

Fim de semana, nunca mais uma mesma segunda.

Na porta do edifício Bela já chorava, ficha na mão, na mão a ficha muda, a escrita muda, em silêncio o corpo e todos os nãos, silêncio Dudu, silêncio os carros, silêncio os carnavais, silêncio nas alegrias, silêncio no belo, silêncio em todos os olhos, todos os rumos em silêncio, o silêncio da dor, a vez grita, silêncio, eu quero silêncio do mundo, do mundo inteiro, do fragmento das nuvens eu quero silêncio, e a vez grita, todos os sinais no vermelho, e a vez grita, quero o verde do silêncio e o vermelhos dos amores, e a vez grita, quero silêncio de todos os vivos, os mares que parem, os rios que cessem, e a vez grita, sou silêncio acompanhada.

Deitou na cama, ao se deitar na cama, e Bela se deitando na cama, cama era perdão e liberdade. A porta trancada, a janela aberta, o visar feminino em estendida cama, o corpo de variações infinitas chorava no travesseiro. Dudu entrou em casa não antes do anoitecer.

Pela terceira vez desceu aqueles degraus, suas filhas não estavam em casa, só com Beatriz os mitos dos mundos, sobre os braços, sobre as coxas, pelos lábios, por cima dos cabelos, adentro da orelha, o grande ruído de amor eclodia, prateava isoladamente seu coração. Maçã de prata — adaga. A maça do momento. Lágrimas, o vulto. Um dia interno mor. Suas filhas chegaram no lusco-fusco, aguava o jardim de almas penadas.

Lembrou-se da mãe à beirada do fogão, com seu xale nas costas, o lenço na cabeça, o ouvido na porta, tricô nas mãos, cercando as crianças querendo assistir televisão. Seu pai entrou pela imagem da casa colorida, abriu a porta, muito depressa veio Beatriz abraçá-lo. “Querida dona o que tem para jantar?” Sua mãe num breve sorriso de lábios não disfarçava a gratidão do carinho, pelo tom da voz, pelos olhos castanhos não vistos, mas muito bem sabia dizer deles.

A imagem reproduziu em som. “Mamãe, aonde está minha casinha.” “Filha, não está no quarto não?” Anoiteceu. O jardim molhado, Balba pela grama, o céu vidro de estrelas, vídeos de estrelas, feixes de luzes propagando universo.

O legível pinga, quantifica o tempo, em números de tardes se pode contar os momentos felizes. Pelo corredor e pela escada... ...degrau...degrau... degrau... No quarto a cama desestendida, o brilho de fora sob algum aspecto torna leve o cabelo molhado, o corpo nu, enudado. A voz meiga cálida língua que pousa e contém o dom o som o suspiro — espírito maternal.

O mundo de certo, que nem certo gomo de tangerina, muitas cascas finas soltam da pele de uma criança como Balba. Certo viver no retiro, certo momento foragido, o riso de Líliam, certamente novidades, a gravidez, a bomba, o fio doce.

O que turva os becos são as perguntas, o que esconde as estradas é a terra, o que devora é saudade de memória, as lembranças dos velhos, o envelhecimento do ar, o conteúdo do cú, o motivo dos contrários, a libertação das retas, o dedo aderente, a fumaça fratricida, o goleiro, a argumentação dos loucos, os desenhos dos soldados, o futebol do riso, a dívida amada, o gago.

Rio, rio, dos deles, dementes, dos flagelados artistas, a fome que reserva o tomo rico de justiça, pró diabo com os mortos nascentes em edifícios arejantes, culpijantes, o crioulo momento desempregado. “Mamãe aonde está papai?” “Quero o papai?” Trim, trim, Jual atende. “Beatriz! Eu soube de tudo mas não tive coragem de ligar.” “Paciência Fernãna, paciência...” “Mamãe não está Valéria, ligue mais tarde.” Balba soltou uma gargalhada cristalina, como são lindos os dentes, os lábios da menina, o timbre da felicidade solta no ar, que venha os dentes e a solta a voz, as crianças por sempre perdoam.

Palavrões, escravidão, as crianças perdoam. O abominável perdão capaz de ater as ignomínias ulcerígenas.

O liberto é o tanto sempre.

Ele não conseguiu entrar, eles não o deixaram entrar, não queria entrar pela porta principal ainda menos pela porta dos fundos. Pela janela também não, muito menos pelo teto. Entrarão todos no reino de deus com facas, com dor, com dinheiro, com ou sem liberdade.

Desceu as roupas num quarto minúsculo, colocou a túnica branca, abriu a porta, a maca esperava estacionada. Deitou-se imensamente, as paredes brancas, as paredes surdas e as mulheres surdas — as duas portas são abertas, a sala sozinha preenchida de estranhos.

Destino, ignorância, sobrevivência, pura realidade. Os mistérios para trás. As pernas encaixaram abertas, onde está o fio do fim. “Não vai doer nada Isabela.” Seringa, algum cheiro, falação. Frieza, dinheiro, realidade, dúvidas, profissionais. “Tudo bem com você?” Barulho de instrumentos metálicos. “Tudo.” “Quase tudo.” A sala pelo branco das paredes, iluminada pelos instrumentos, criada pelos estranhos, figuravam-na. Dudu lá fora e na barriga — é deveras, o amor ausente, o calor latente, o medo à cerca, o sucessor do momento, o frio na barriga, as pernas abertas, estão às portas abertas, vida livre agônica, os dentes firmes, a boca seca, os profissionais da saúde e o amor pelos malditos.

Os poetas se vestem de musas, dialogam ou morrem por ou com amor. Amor branco, o branco do amor, o brando amor, o que fere, o que supre, o que empobrece não deixando rastros, o que pode Bela sentir na vaidade de sentir, na vaguidade do sentir, o discípulo do sentir é o ódio, amor de ódio, o mestre do viver, talvez um oculto desejo.

Embora liberdade seja, ser de executação, que expia e é expiada, que cria e recria o assassinato ou a obra, a arte de matar, o feliz matar, o preciso matar, a necessidade de arte conflui no interior de algum assassino.

As mãos, pálidas ou não, bondosas ou não, musicais ou surdas, manetas; enceta no intocável o mais puro abominável ato. Matar como extensão líquida do corpo, a jaula é aberta, a resma, o seixo, o vento, a chuva, o passo, torna-se humano matar.

“Já acabou.” Fraca, tonta, transpassaram-na para a maca, portas abertas, a olhos vistos, choro, choco, parede e paredes, o corredor. Na sala de espera retomou a condição de se levantar.

Abraçou Dudu, atrelou ao corpo dele o corpo mexido seu. Claro se fez o ser mulher.

O amor já estava individado. A tarde fervia os miolos, as nuvens se multiplicavam, sobre a sexta-feira já se podia auscultar seu coração.

Foram de táxi para casa, foram ao encontro do tártaro deserto enlanguescido de compaixão. Ela necessitava de algo bem mais científico do que repouso, algo mais doce do que a solidão, algo real. Não é com o apoio de imagens, a dor, a íngreme ladeira não se supera devido ao perdão, não se reserva à perda a melhor das festas, o esquecimento não é solução — um mísero voto apenas.

Bela se deixou banhar em água morna antes de se deitar.

Um parque de imensas árvores, o céu castanho pardo, enferrujado de nuvens, o sol privado do contato direto com a terra, o dia já noite, o dia oferecia uma obscuridade nunca vista senão em eclipses. O vento surrupiava pela cabana carícias rugosas, andorinhas nas copas das árvores, as vassouras rufavam pela mata, o verde era aclamado pelo verde, as preguiçosas flores gesticulavam palavrões ao vento. Acendeu a lareira, a tarde anunciava noite de inverno enquanto o lusco-fusco declamava o texto inicial dos amantes.

O mundo mágico, o hábito do amor na redoma insolúvel do amor. Porque o resto existe, porque o resto do mundo existe e desmascara o costume humano. A morte existe na fecundidade do absurdo, porque o fenecer do eterno, os filhos que morrem antes dos pais, as idéias morrem antes de muitos homens, as memórias perecem, o corpo esvanece, a alma fica cega, a matéria se decompõe, a natureza degrada, o dia acaba, a noite termina, o começo fina a água da chaleira, o rio evapora, o inverno reinventa verão, a porta se abre, Jual é que entra — em junção o ar, o frio, a noite, o momento instantâneo solúvel — eles se beijam na cozinha.

Bela acorda, Líliam acorda, a realidade retorna aos olhos humanos, é segunda-feira — já não é mais possível qualquer tipo de sonho ou qualquer expectativa extensiva. Elas olham o derredor do lugar onde nasceu a vigília, olham na vigília o lugar de seus nascimentos, o olhar sol, o suco da manhã, o sulco da noite pela pele amassagada. A mãe prepara o café, a sílaba da novidade passa e repassa nos lábios, os novos lábios de segunda-feira, a feira do momento, a feira do acordado, o pulso do acordado, a novidade do acordado, o corpo acordado repensa o dormir, se livra do sono e cumpre a vigília.

Magnitudes e misérias, destrezas do vício, voltas estéticas devolvem a elas o que foi dor, o que foi viver o que é viver o que é futuro de nada adiante relutar. De consciência em consciência, do nada surge o algo, o novo, o começo do acordar do ir à aula ou do ir ao teto, da visita ou dos colegas, da escola ou do hospital. Bela e Líliam dormiram mas depois acordaram.

Maria pousou a mão, de palma e dedos, deitou os globos na escuridão celeste da imaginação, cerrou os globos com cortinas automáticas, palmas e dedos pousaram flutuaram pelo corpo, uma imagem correu veloz e colorida.

Existe o momento da imagem, imitação que se consuma, que move e remove o mover.

As pernas em dobradura preparatória, o lábio carne abundante de sangue tocado o de cima com o de baixo, o ar de trânsito leve entra sai-entra sai-entra sai-entra, sai de longe a ereção dos seios, sai os seios pelas ruas do corpos.

A mão pousada define o desenho do ventre, a mão define as coxas, a imagem desdita a matéria, o calor domina o mercado, a cama deitada, a cama desentendida, a selva pubiana embrenhada pelos fantasmas, desveladas pelos dedos. O dedo que entra, não é, não sai dedo, o dedo que aperta, fecha a língua e abre a linha, dissolve o sabor, toca a imagem, a imensidão frente ao porque detrás.

Beatriz às voltas e os homens afora. O vento levanta a fagulha, a mão cultiva a faísca, a lenha dos seios, a felicidade como lenda, o clima equatorial, a temperatura instaura o orifício dos desejos — ó mundo febril!

Dedo no canal, o aperto da palma, o abraço da palma, espalmada a bunda, os pêlos tecidos do negro, de África, a franquia aberta, importações de sentimentos.

A imagem decomposta em posta composta em forma que posta o etéreo o ilusório impõe-se pelo ritmo, ritmiza a visão. A volúpia e as terras redondas volteavam pelos nós, somente as sobrancelhas sabem do crepúsculo das alturas, das iluminúrias do tempo. A palma da mão certifica a pressão, retifica o nódulo de frente, decompõem-se a fissura do prazer, o calor íntimo sobe a ladeira motorizado pela produção de imagens, o corpo imiscuído de fantasias, os ouvidos mexidos gemidos mexidos, solitariamente os ouvidos se deixam ouvir pelas pleuras.

O ar que chaga o espírito reverte em carne o doce o medido palmo da embriaguez. A tarde ostenta, o tempo ostenta, a mão ostenta, as imagens e as atenções frívolas percalçam pela ladeira, pelo início, pelo abandono, num fim de começo, pelo começo da solidão indiscursiva, inserida na inefabilidade do ventre.

Desvelado o abismo esvoaçante, o desmedido corpo nu, enudece, emudece, amolece, supura, retorna. As gotas de suor, as sobrancelhas sugerem pela eternidade amizade que se dimana por descer o longo caminho de volta que envolta envolve uma pequena volta um pequeno começo um certo começo uma certa esperança em algo de concreto que não é mais, não é menos, nem que fosse outra coisa que não ilusão. Pouca importância teria. Pouca ou muita importância nenhuma faria viver o que vive vivendo por nenhum. Este que seja o bom e melhor tom do perigo inaugura um começo um meio um fim de começo em princípio de meio, enfim, surge o abismo do nenhum abismo.

Por que perdido repousa em descanso o seio mesmo de todo o mais completo cansaço, perdido na estréia feliz de viver. Dorme a mão, seca a boca, divide a vida em solidão e companhia. O sensível fala através do grito, a felicidade esgrima no completo. Maria desvelou para os olhos o fim do grená. O teto, o negro das alturas, o doce também amargo concretos.

Surge pela porta. De pé, não há nada mais redondo do que o movimento, existe nada mais inspirador do que ver alguém andando.

Lápis papel boné nas mãos; o guarda parou na porta de ângulo zero.

Sonhar movimentos enquanto dormia, dormir um terço era bom, o ruim estava nosoutros terços da vida. “O que estou fazendo aqui? Porque eu venho te ver! Eu penso em você, penso no perdão!” Papel e lápis apertado na mão. “Penso na minha família. Na minha namorada. Eu queria conversar com você. Quer me dizer alguma coisa? Diga-me!” Ele escreveu o alfabeto — ela coerentemente inábil. “Você quer esta letra?” Ele apontou para a letra A, o papel aberto na frente do rosto. “Escolha uma letra!” Ele apontava com o lápis as letras ao mesmo tempo em que olhava Líliam atento. Fixada na inabilidade do seu corpo, mal piscava por compreender todo aquele esforço, verdadeiro e único, o primeiro que sentiu desde o dia em que acordou no hospital.

Alguém solicitava ainda a presença dela, alguém imiscuído de dor de pena de remorso alguém também encarcerado, alguém era companhia, alguém era saída. Ele começou do A, ela escolheu por um n, por um a, um o, outro o, um d, um e, i, o, um v,o, um c um e. O exercício fez fadiga e sentido, o pescoço cansado como se fosse todo o corpo. Alguém sorria no quarto, alguém suspirava no quarto, na porta havia alguém em pé. “Quer me dizer mais alguma?” O pescoço pela horizontal, o guarda através da porta, a algema uniu as mãos. “Eu volto!” A enfermeira entrou no que ela pensou em dormir. Cinco horas da tarde, encerrado o horário de visitas.

O amor individado no circular. A mão toca tocada. Pelo silêncio de ambos, de ambas as mãos, eles eram muitos, mais do que uma fração. Na escola, na aula, o afeto desprendido, desligado dos corpos cotidianos. O efetivo afeto pela internalidade deles, enclausurado por correntes de vergonha, de pejo, de culpa, o amor sob tortura diz que odeia.

Garota ou rapaz — já não há mais garota ou rapaz.

O carrasco do mundo é o desejo. O réu do mundo é o desejo. O desperdício do humano por inocência, o diabo do mundo habita liberdade. A volúpia do amor elucubrada de sacrifício, o prazer é o aprisionado, o efêmero é a unidade do belo, a vida de digna passa ser apocalíptica. Dragões de finitas cabeças — nenhum lugar seguro, ausente está o descanso.

Despediram... despedidos. O rosto o beijo um abraço, um veloz arpejo de vento entreviu no meio, no meio do caminho dos dois, pelos meios dos dois, no meio dos dois uma única redonda bola, as pálpebras de ambos piscaram, piscaram...

Para presentear, alguma coisa de especial para uma criança de nove anos, alguma coisa que não lembrasse que o pai já não voltaria mais para casa.

Andando no shopping com o seu lindo sapato de salto, um vestido curto de flores negras estampadas, o cabelo solto, nada de maquiagem. Distraída nas vitrines, a tarde quente isolada pelo ar condicionado, contornou o corredor, desceu pela escada rolante para o piso das lojas de artigos infantis. O que encontrou nas roupas não lhe agradou, o que encontrou ao sair era muito menos agradável. Luya estava ali de pé, de óculos, esguia como um poste macabro, mal iluminado. “É a você que a alegria do meu tormento se dirigiu?” Luya não despistou da agressão. “Faria de novo sua sapatão!” “Fará coisa muito pior na vida sua vagabunda!” “Estou cobiçando seu marido, sua burra!” “Você será muito mais infeliz do que isso.” “Não importo de ser infeliz, quero ter dinheiro!” Não suportou mais vê-la, pelo amor que ainda sentia por Maria, o amor sentia as filhas, pelo próprio marido, a presença daquele esdrúxulo egoísmo não era mais suportável. “Vá com a fé cega do inferno para casa sua débil!”

Beatriz andou sobre o som de uma frase constituída de sinceros palavrões. Entrou na loja de brinquedos chorando, um senhor de idade perguntou-lhe se estava passando bem. “Não é nada senhor, isto já passa.” Saiu da loja com as mãos vazias, saiu com o mundo arquejado às costas, parou na primeira lanchonete encontrada, um chopp escuro e batatas fritas por favor. “Como ela gostava de batatas fritas!” Os pensamentos com as dores, com as filhas, com a casa, com saudades. “...poderia ter se dado um futuro diferente.” Mas o pensamento não move o mundo, as idéias não movem o futuro, os braços não se movem, a morte não se move, não pode ser nem presença, nem presença de mundo, a morte não o é.

Talagadas de chopp, batatas com catchup, Maria com catchup, saudade com lêvedo, dor com batatas, batatas na ausência do marido, e as crianças que corrigem o mundo com felicidade. Ébora de nove anos a benzia apesar do seu tácito silêncio, apesar de sua solidão, a companhia que uma criança faz aos pais é uma companhia invisível, ocupa os cantos de todas as curvas.

Um chopp não foi suficiente, um outro e Maria por perto das batatas, pelas batatas das pernas o amor, pelas faces amarelas, pela desilusão lútea, pelos lábios vermelhos o catchup. Balba sorria na imensidão do quarto, riso escarlate, o riso e o belo escarlate. Batatas salgadas e o mar salgado e o salgado que conserva instantes, mas a saudade é matéria universal (dos poetas nem só dos escritores nem só dos artistas nem só dos brasileiros nem só dos exilados), voz de alguns perante outros que são tantos como o são tantos tontos outros que sentem uma igual saudade que assim mesmo se diferenciam em corações os batimentos. O coração não bate nem trafega, não pulsa nem faz barulho, não borbulha nem bóia, não se despe nem se traja. O coração está por certo nas batatas debaixo da terra. As batatas acabaram com Beatriz um pouco mais calma. Maria não sentia mais fome, a companhia das filhas havia evaporado. Agora, sozinha, na ausência do marido a conta quedou-se na mesa. Terminou o chopp, antes de ir em pé, fazia já saber o que comprar. Talvez fosse presente para arrependimento, talvez a clarificação da vida, talvez o instante fosse mais benévolo com as filhas do que seus pais. Talvez a imagem seja, fosse, mais feliz do que o real.

(Triângulo pelo quadrado ausente de Maria) após dez dias, Diego telefonou para Jual e Bela irem até sua casa.

Abriu a porta, eles vieram juntos, ficaram surpresos ao serem recebidos por uma anfitriã. Diego já havia saído do banho. “Só vou me trocar!” “Vocês querem beber alguma coisa?” Um copo d’água disse Jual. “Eu não quero nada” “Como vai!” Sons e palavras físicas do corpo. “Bela!” Beijou-a, abraçou com a ternura dos moinhos. “Como está?” Um abraço, as mãos se abraçam, os sons físicos dos corpos. “A água.” “Vocês não conheciam Marila.” “Estamos conhecendo né Bela!” Não era muito do isto ou daquilo, o pacato Diego estava feliz. “Na última noite em que nos vimos, voltei bêbado para casa.” “Não foi tão mau assim Jual!” “Parece que não, não cheguei a envelhecer por isso.” Marila colocou o piano para tocar, Diego se levantou. “Um instante por favor!” As mãos para trás, da porta da sala. “Jual! Bela! Aceitam ser nossos padrinhos de casamento?” Ela sorria rubra ao lado dele, ficaram imóveis, o sorriso imóvel da boca, a surpresa imóvel de corpo inteiro. “Ele nunca nos contou nada a seu respeito Marila! Nem mesmo pra mim!” A champanhe estourou. “Por que não nos contou?” “Não sei Bela, tomava coragem-coragem desaparecia, não sei se foi porcausa do nosso sofrimento por Maria, nem mesmo isto era tanto motivo para alegria, comemorava minha felicidade no meio de minha própria dor.” “Marila não sei se deveria dizer, mas tu tens sorte!” “Você é suspeito dos dois lados” “Desde quando vocês se conhecem?” “Mais ou menos uns três mês antes dela morrer.” De taças cheias na mão, “um brinde” disse ela. “Um brinde ao casamento.” Disseram eles. “Ele é osso duro de roer Marila!” “Corri pela ponta.” “Ainda dizem que os azarões não são felizes?” “Sou um completo azarão Bela!” “Um azarão feliz?” “Feliz e traidor!” “Me perdoe Jual.” “Jual! Jual o quê?” “Não é para você ficar com ciúme Bela.” “Esses homens são todos iguais!” “A fidelidade masculina é quase incompreensível.” “Quem é que pode entender as amizades masculinas?” “Jual, elas estão furiosas!” “Sintimo-nos desprezadas, não é Marila?” “Eu devo parecer um tesouro em ilha perdida.” “Você é um continente inteiro.” “Eu posso acreditar nele Bela?” “Ele não faria assim se não amasse você.” “Faria?” “Todo homem tem seu preço.” “Um brinde pela felicidade!” “Bela! Ela nos roubou nosso amigo!” “O amigo é seus, mas o homem é meu.” “Senti confiança Diego.” “As mulheres tem muitos encantos Jual?” “Infinitos!” “Só para quem conhece o amor” “O amor existe?”

O amor é revelação como toda cegueira, desvela-se o escuro — fica o absurdo.

Os cães alimentam, os leões, os tubarões, os tucanos, as araras, os quatis, as cobras, as baratas, os ratos, as vespas e as abelhas, o mundo alimento de mundo, o comum alimento do comum, o insano demonstra insanidade, os ingênuos ingenuidades, os sábios morrem, o dia e a noite não perduram, o rio seca, o ar seca, a chuva molha, salvação compensação recompensa motivo não hão de ser figurados.

O mesmo e o diferente, os dois estão em puras sonolências humanas.

No mês que se seguiu já não mais amava, não era possível amar a mulher Líliam, já não mais, antes do acidente não amava, desamava, nunca amou, o amor não poderia deixar de existir, não foi ele que ficou paralítico, foi o corpo, não conseguia mais vê-la naquele estado, estado não — forma de ser.

Ficou com muita vergonha ao decidir nunca mais vê-la, ao decidir por si mesmo, reconheceu a pura contingência do amor.

Jual saiu do quarto.

— Eu não consigo mais ver você!

— Eu não sei amar!

Silêncio por parte dela, chorando pelo corredor do hospital, cadeia para Líliam.

O amor não deixa ser puro narcisismo, cadeia para Pétro. O mundo continua sendo, quisera o mundo depender de uma única mulher, de um único homem, quisera a vida ser para outros a vida que é para um.

O exterior perdido, o pior era o pior nela mesma, o máximo foi vê-lo partir com lágrimas no rosto, ficar com as suas... já quase... sempre.. suas vidas.

Por uma hora ninguém entrou e ninguém saiu do quarto.

Embevecidos pela alegria de amor, enternecidos pela trégua que a vida algumas vezes concede, dois amigos, duas vidas, boas novas, era bem-vindos o sorriso do amigo e a face de Marila.

Na rua as duas vidas, as boas novas, era bem-vinda a face da noite, toda noite tem céu, todo céu tem estrela, toda estrela pisca, o olho pisca, o vaga-lume pisca, a seta pisca, o pisca-pisca alerta.

Os dois andando pelas calçadas das ruas, descansando em companhia do manso céu de capricórnio de escorpião de aires. Sorriam eles e a lua crescente, um passo pelos passos ruidosos da cidade desperta.

Nas ruas os algozes emporcalham o ar que rodeia, o ápice montanhoso é ser feliz, no derredor na pior das vinganças, mesmo na pior das chacinas, também a dor alça um tipo de descanso, descansa e modula em algum acorde diverso, no frágil está o mágico, o máximo da vida é subtraído. Existe ar em todos os estupros, o ar dos assassinos doce ainda é; dos argonautas, das baleias, pelo dorso se aponta os amantes. Nas ruas os algozes carros eram subtraídos pela beleza dos dois amigos, duas vidas, boas novas, era bem-vinda a companhia.

Chovendo sorrindo, Ébora abriu o presente, abriu os braços, beijou a mãe, perguntou pelo pai, foi sufocada por um abraço de Balba, tirou uma foto, apagou as velas do bolo.

Maria desvelou aos olhos o teto, o negro das alturas, o doce também fraco — concretos. A volta de tudo o sistema solar, a volta da casa outras casas, por voltas da saudade o amor por Beatriz pelo irmão por Bela por Jual por Diego, em volta deles estão o duradouro, em volta deste o sentimento, no alcance de todos, sentimento de um.

Ainda mole Maria, nua, enudecida, emudecida, imiscuída na tarde que se ia, jazia um num corpo uma espécie de sacrifício. O suor das axilas, , o flerte a boca seca e o tráfego, a claridade pelo quarto. O engarrafamento do momento; seu coração pulsava batia-trombava-vibrava-dobrava-engrossava-supurava-flexionava-sobrevivia-mencionava-volteava-denotava, flambava o chumbo sólito do amor.

Amor por, pelo porém, no entanto, entretanto, para apesar com, com amor apenas predica coração.

Num prado cuja planície fecunda de verdes matos, sentada na cadeira de roda chorava embaixo de uma árvore. A casa de campo lhe oferecia um amor de memória, o sol extensivo machucava o ar, a brisa imóvel, Líliam estava incomunicável.

O desejos se formalizaram às condições tetraplégicas do corpo. A vida continua, as pessoas continuam amando, as criança correndo, tudo se adapta, não há lugar para o desespero, não há o que fazer, não poderia lutar para além da cerca dos olhos.

Quando acordou, ao se lembrar do sonho, saboreou a realidade pela língua da imagem, se viu ferida e traída, sentiu pela primeira monta, toda... a estupidez... toda... quando o que se lembra é dor, quando a tortura é executada, quem não fala não teme não sabe apenas morre.

Um mês e meio.

Os milagres não fizeram mais felizes sonhos.

Um mês e meio se passou, a porta se abriu e ele entrou, o guarda parou na porta do lado de fora. “Que letra você deseja?” Um e, u, um q, um u, e, um r, o, um m, o, um r, r, um e, r, um p, um o um r um f um a um v um o r, um m um a um t um e um a, um m um i um m. “Eu não posso fazer isto!” Ela balançava o pescoço lentamente, um v um o um c um e um m um e um d um e um v um e um i um s um s um o. O silêncio calou os lábios de Pétro. “Tem certeza?” Tensamente, lentamente, ela balançou o pescoço — tensamente, lentamente, balançou o pescoço por uma, por duas, por três, pelo quatro o guarda abriu a porta, pôs como de costume a algema. “Enquanto eu conseguir voltar eu volto.”

A porta fechou o quarto, a porta lacrou a porta, a saída de Pétro pelo corredor, os olhares das enfermeiras, o policial trajado de sociedade, o corredor bulido de branco, a pena, a responsabilidade, a cela, dez anos de cela.

Entrou novamente de posse do que era unicamente seu, o guardaram, trancaram a cela. Com a televisão ela passou ligada o resto da tarde.

Acordou com a mãe ao pé da cama, sonolenta, cansada, depois de uma operação, depois da batalha. “Eles disseram que correu tudo bem, possivelmente daqui uma semana você poderá se alimentar via oral.” Respira aflição, respira o próprio carinho no intervalo de dizer. “Seu pai também está aqui, ansioso para vê-la, posso falar para ele entrar?” Tensamente, lentamente mexeu o pescoço na horizontal, os olhos da mãe imediatamente chamaram o corpo de bombeiro.

O fecho dos olhos, três meses sem ver Jual, quatro meses vivendo em hospital, os milagres haviam cessado de acontecer, a porta se abriu sua irmã entrou com as filhas, não deviam, mas entraram.

Voltou abrir os olhos, a irmã e as crianças, a dor e a vontade de morrer, lembrou-se de Pétro, ele nunca mais voltou, a família não era mais feliz, os pensamentos olhavam as crianças. “Que lindas crianças!” “Mana está pronta para outra!” Não sorriu nem fez cara feia, as crianças afetavam, pegaram em sua mão, sentiu asco, asco do asco, no cimo do asco o tipo único de amor, seu único amor.

A família saiu, o pai entrou entristecido, beijou-a na testa, beijou-a, sentiu-se como uma boneca, ao lado dele isto não se fazia tão vergonhoso. “Eu te amo filha” “A única coisa que posso dizer-lhe é que te amo” “Sei que isto não lhe serve de nada, por isso me envergonho, já não me alegro mais em amá-la, já não é para você alegria nenhuma amá-la ou não.”

Nunca ele havia sido tão sincero, nunca sentiu aquele homem tão próximo, nunca foi tão filha, tão desamparada, tão doída, tão incomunicável, incomunicável o sempre todo para.

O sempre é feito de dias, de inúmeros, inúmeras horas. Quiçás dores, quiçás vidas, quiçás mortes, ele a beijou mais uma vez, não chorou no visível, a porta fechou, a porta, a saída da família pelo corredor, consternados, arrasados, a filha já não era mais filha de ninguém, já era de ninguém, uma garota órfã de pai e mãe vivos.

Na primeira semana sem ver Líliam, a culpa toda sua, na segunda semana do amor, na terceira prisioneira, para a vida ficou na quarta, a culpa da culpa na quinta, na sexta semana, já sofria ser feliz, na sétima já não se alienava mais da dor, na oitava semana não folgava mais em querer amá-la, já não amava, nunca havia amado, na nona pra missa, na décima semana Jual conheceu Bela e Diego, depois conheceu Maria, depois conheceu o perdão, depois da décima segunda — na décima-terceira semana voltou bêbado pra casa, décima-quarta-nada-de-especial — o cotidiano voltava tomar sua forma primitiva, a juventude voltava a ser vigorosa.

Toya Libânio
Enviado por Toya Libânio em 14/01/2019
Código do texto: T6550471
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