QUASE NASCI UM ÍNDIO

Foi sem nenhuma coincidência que há décadas eu me encontrava dentro de um ônibus, quando me deparei com um elemento muito falador, o qual a mim se apresentou espontaneamente dizendo-me ter quase cinquenta anos de idade e que se chamava Mesquita, isso mesmo: para mim o seu nome completo era apenas Mesquita.

Naquele primeiro contato - de alguns minutos -, ele já foi me dizendo quase metade de todos os seus anos de vida, e que era casado; que tinha quatro filhos, que já tinha feito muita coisa pra viver; que conhecia metade do Brasil e que, em meio à grandiosa dificuldade tornou-se bacharel em letras, mas, por enquanto se mantinha vivo com o mísero salário de um simples cobrador de ônibus, que era.

Achei duvidoso um bacharel em letras ter por ocupação cobrar passageiros de ônibus, mas...

Enquanto isso eu, apesar de incomodado com a sua voz estridente, permaneci calado, porém, muito atento àquelas pequenas e alvoroçadas histórias de aventuras ocorridas na sua época de menino travesso e também da árdua dificuldade financeira que o cercou na difícil fase de adolescente. Para mim suas histórias eram curtas, alegres, mas totalmente desinteressantes; mas, enfim, tive que ouví-las sem angariar nenhum proveito. Tudo que ele falava era igual aquele velho adágio que popularmente se diz: “entra num ouvido e sai no outro”.

Durante toda narrativa do Mesquita os passageiros do ônibus olhavam-no como a reprovar seu vozerio.

Vez em quando eu virava a cabeça e olhava para fora do ônibus na tentativa de desviar a atenção, mas era instantaneamente cutucado no braço para ouvir sua fala, e logo ele continuava com sua prosa dizendo que era nortista da divisa do Pará com o Amapá e que sua penosa infância se deu numa tribo indígena. Nesse instante eu lhe tomei a palavra e o interroguei, assim:

- Não acredito rapaz! Na minha vida eu nunca vi um índio de cabelo loiro e nem de tão perto assim. Você é mesmo um índio?

Sorrimos um pouco até ele retomar sua fala, e com a voz bem alta foi assim dizendo:

- Não? Não me acredita mesmo? Então me escute: não sou um índio biológico, sou de criação, mas sou quase um índio. Agora me ouça: certa vez o cacique Avaí me disse que eu fui um recém-nascido achado nu no meio da mata e que as formigas por pouco não me devoraram. Também me contou que de tanto eu ser picado por insetos o meu corpinho parecia mais com uma casca de jaca. Disse ainda que, para aliviar as dores das picadas, lambuzaram todo o meu corpo com mel de abelha jatai e que depois me levaram, às pressas, para me banhar num riacho. Em seguida me puseram numa rede dentro da maloca. Mesquita prosseguiu contando que para não morrer de fome lhe davam somente banana amassada depois de bem assada na cinza quente. E acrescentou assim: Quem cuidou de mim foi uma índia chamada Erene. Ela foi minha mãe de leite e mãe de criação. Era uma mulher genial, mas eu nunca a chamei de mãe. Não sei se ela ainda vive. Tenho muita saudade.

Em meio a um sorriso meio triste o Mesquita fez uma pequena pausa e revelou que não tinha nenhuma lembrança de ter visto sua mãe verdadeira, e gracejando ele concluiu assim: eu acho que nasci de um toco de árvore ou de um bicho qualquer do mato.

Juntos sorrimos um pouco.

Conversa vai, conversa vem, e antes mesmo de descermos do ônibus descobri que íamos ser vizinhos, pois iríamos construir nossas casas bem próximas uma da outra. Achei legal tê-lo conhecido, pois prosas infindáveis não me faltariam doravante.

Pouco a pouco fomos construindo nossas casas e ficamos familiarmente mais próximos. Nossos filhos fizeram boas amizades e consequentemente se divertiam bastante.

O distinto bacharel-cobrador ou cobrador-bacharel, logo se mostrou ser um individuo de pouco afeto com a sua família, pois as brigas e xingamentos eram frequentes e muitas de suas divergências saiam porta afora. Dia sim dia não meus ouvidos eram invadidos com fortes falatórios oriundos das desinteligências entre ele e sua mulher Dalila, e o principal motivo era a pobreza somada com a imperdoável capacidade dele não querer fazer nada para aumentar o espaço da casa, e nem de se dispor a dar o mínimo de conforto no lar. Nem mesmo um tanque para lavar a sua própria roupa lá existia. Lembro-me de que certo dia fui por ele convidado a tomar um cafezinho da tarde na sua casa e lá eu flagrei o nosso alegre contador de histórias praticando uma cena surreal: ele, ao lado de pratos, panelas e talheres, lavava sua cueca com sabão de côco na torneira da pia da cozinha. Foi a visão mais estúpida que já registrei na vida. Nesse instante iniciou-se um ferrenho bate-boca entre o casal. Ai eu disfarcei, sai de fininho e deixei o café para ser tomado na tarde do dia de São Nunca.

Para Mesquita a Dalila se mostrava ser o que não era, e para ter certeza de suas desconfianças tudo lhe seria uma questão de tempo.

Certo dia o prezado contador de histórias me disse que estava cansado de ser cobrador de ônibus e queria mudar de vida. Dias depois ele se propôs procurar nos classificados de jornais alguma profissão que lhe desse a oportunidade de ter fama e ganhar muito dinheiro. Ele dizia que quando tivesse muito dinheiro e fama teria a possibilidade de voltar para sua terra natal e lá se candidataria a algum cargo político.

Em suas buscas nas páginas de jornal ele encontrou um curso com o título de “prático protético” aonde aprenderia a arte de fazer dentaduras. Visto isso os seus olhos se esbugalharam e um sorriso de felicidade se abriu. E não é que ele se matriculou? Dias depois Mesquita me disse que o chinês estava lhe ensinando, direitinho, todos os truques e macetes de como se fazer uma boa dentadura e que estava muito feliz em por em prática seus ideais de ir para sua terra natal e colocar dentadura na boca de muita gente pobre, e dessa forma ganharia a confiança de todos e terminaria sendo, no mínimo, um vereador. Ao término do dispendioso curso, que lhe durou quatro semanas, o agora distinto bacharel-cobrador-protético e futuro político, tirou férias do trabalho e viajou sozinho para o norte a fim de testar sua habilidade protética. E por lá ficou um mês. Quando voltou do longo passeio ele me visitou somente para contar as recentes novidades. Disse-me que ao receber o certificado de “prático protético” não pensou duas vezes e logo viajou para sua terra na esperança de encher a boca de desdentados, criar fama e ganhar muito dinheiro. Mas o primeiro cliente odontológico que lá ele conseguiu foi um velho que morava numa casinha de sapé ladeada de árvores e galinhas no meio da roça, e vigiada por um vira-lata triste e velho. Lá o prezado protético faria a sua primeira dentadura num ser humano.

Para moldar a tal prótese o Mesquita pediu duas cadeira, sendo que uma seria para o paciente e a outra lhe serviria como mesa para manipular os materiais e as ferramentas. E lá se vão eles para a sombra das árvores. Lá seria o seu primeiro laboratório de prótese.

Numa manipulação, profissionalmente rápida, ele preparou o gesso odontológico e tão logo o inseriu no moldador e dali foi para a boca do velho. Só que nessa delicada operação o Mesquita se descuidou do tempo - ele não tinha relógio - e demorou muito para retirar o moldador da boca do infeliz, de forma que o gesso endureceu muito rápido. A labuta durou por mais de duas horas para que o “prático protético” com a ajuda de uma chave de fendas e um martelinho, conseguisse quebrar todo o gesso e retirar o moldador da boca do coitado.

O Mesquita me disse que por pouco não lhe mataram e que, de tanto pavor, até hoje ele continua correndo da mira de uma espingarda que a mulher do velho cliente lhe apontou e que, por causa disso, ele desistiu de duas desejadas profissões: a de prático protético e a de político.

Continuou sendo cobrador de ônibus até o dia em que por motivos aqui inenarráveis, ele se estapeou com Dalila e desapareceu no mundo.

José Pedreira da Cruz
Enviado por José Pedreira da Cruz em 18/01/2019
Reeditado em 26/01/2024
Código do texto: T6553955
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