Para o baile (dezembro de 2018)

Na voz de Rod Stewart, ecoa no quarto a partir das caixinhas do computador uma regravação de Moonglow. É o YouTube fazendo a festa de adolescentes que, assim como eu, se encantam com canções que atravessam décadas sem dever qualquer coisa às suas últimas regravações disponíveis nas FM.

Só pensava em Luzia. Meu par romântico. Dentro de exatamente uma semana nos encontraríamos para dançar em um baile organizado pelo clube da associação esportiva. Enquanto isso, fazia as últimas provas de roupa, um terno – em casa mesmo – com a ajuda da costureira minha vizinha. É com ela que escutava Moonglow no computador.

Dona Lauristênia parecia animada, mesmo com um monte de pequenos alfinetes perfilando entre seus lábios. Confidenciou-me que em sua juventude havia dançado de rosto colado uma outra versão de Moonglow. A canção de sua época não vinha da boca de Rod Stewart. E sua história com a música teria sido outra.

Dona Lauristênia me confiava suas lembranças com muita satisfação: dizia que em sua época era educado caminhar na rua tendo sempre as senhoritas à parte de dentro da calçada, como se fosse para protege-las dos carros. Não importava se o homem fosse irmão ou namorado. A regra valia para todos os envolvidos em um passeio.

E isso não era tudo. Na lanchonete, o homem pagava a despesa da amiga ou namorada. O cavalheirismo o impedia até mesmo de sentar-se à mesa antes da companheira. Primeiro as damas. Eis o contrário do que acontece hoje. Primeiro senta-se quem chegar primeiro à mesa, e quanto ao pagamento das despesas, se tiver sorte, o casal divide.

Com seus olhos azuis grandes – o que me fez imaginar que um dia dona Lauristênia havia sido uma mulher muito bonita – ela me inquiriu: “você está apaixonado por uma gatinha, não estou certa? Vejo em seus olhos.” Não podendo fugir da curiosidade da costureira, disse: “Luzia é tudo para mim.”

Dona Lauristênia respondeu-me com uma gargalhada de louca, calando minha boca completamente. Coisa de cinema. Em sequência ao riso, imergimos em um silêncio de cemitério. Mas ela não parou de espetar meu traje de festa com suas dezenas de alfinetes que, estranhamente, não engolira quando deu a gargalhada.

Pois, a costureira tinha outras histórias para contar. Ela me confidenciou mais, e muito mais falaria se eu assim desejasse. Particularmente, não queria escutar nenhuma história dela. Mas seria extremamente indelicado recusar ouvi-la. Então calei-me e limitei-me a murmurar a cada detalhe da história de sua juventude: “hum, hum-hum...”

Em um momento pedi a Deus que tivesse a sorte de que os alfinetes perfurassem os lábios dela de tal forma que não conseguisse mais pronunciar uma palavra. Puro desejo furar a boca de dona Lauristênia, nada de realidade. E prosseguia a senhora: em sua juventude, lá pelos anos setenta do século XX, teve uma grande decepção amorosa.

Tudo nessa história era interessante para dona Lauristênia: o plano de fundo era a ditadura militar brasileira, que embora não a vitimasse diretamente compunha um cenário da maior dramaticidade para o romance daquela senhora. Assegurava-me (era importante para ela fazê-lo) que era virgem e além disso uma mulher encantadora!

Enquanto em minha opinião o ponto alto da vida de uma pessoa deveria ter visto o cometa Halley em sua última aparição nos idos de 1985 (quando eu sequer havia nascido), a costureira tinha como o ápice de sua vida o romance com Cláudio, um homem segundo a senhora extremamente bem-apresentável, muito antes do cometa.

Foram cinco anos muito marcados pelo respeito e o mais alto cavalheirismo. Namoravam no sofá de casa, tendo o pai e a mãe sempre no entorno, para vigiá-los e para lhes fazer companhia. Seus pais confiavam na filha e no namorado, mas de acordo com a tradição que herdaram dos avós, permaneciam vigilantes ao lado do casal.

“A ditadura comia solta” me dizia ela, “mas, apesar das restrições, conseguíamos viver como se nada parecesse nos dizer respeito.” Até que um dia ele lhe disse: “não posso viver indiferente ao meu tempo e, ao mesmo tempo, não quero te machucar.” E ela refletiu “nunca pude compreender qual a minha culpa na escolha de Cláudio...”

“Eu prontamente pus-me a chorar, antecipando o comunicado de nossa separação.” E o rapaz finalizou, não sem antes ter-lhe dado um beijo na testa: “entro para um seminário dentro de uma semana. É o tempo de arrumar algumas coisas, roupas, cartas que devo escrever a um punhado de pessoas, e depois vou para trás dos muros de um convento.”

Para dona Lauristênia o acontecido lhe teria doído menos se houvesse perdido Cláudio para uma outra garota. Com uma mulher, segundo ela, “seria possível competir, seria questão de usar de meus talentos de fêmea, sabe? Eu o teria segurado! Mas, como concorrer com um convento? Impossível.” Finalizou.

Cláudio havia terminado com dona Lauristênia no horto, lugar aprazível com um lago, e um espaço para muitas árvores e animais de fazenda. Seu instinto a fez correr para casa, sozinha, deixando o ex-noivo sentado no banquinho de cimento. Apressou-se para contar tudo aos pais, na esperança infantil de que o obrigassem a casar-se com ela.

Pai e mãe escutaram tudo com curiosidade e com aceitação. Para eles, ao menos Cláudio não era um aproveitador. Não era um canalha. Sua escolha de abrir mão da vida de homem comum não era por algum dia ter-se aproveitado de Lauristênia. Não. Retirava-se do mundo para dedicar-se a orações e obrigações religiosas.

Pois, retornando a narrativa ao meu terno: outras duas provas e estaria pronto para o baile. Nós dois acordamos de um sono, vindo de um outro tempo. As despesas do terno? Tudo acertado, meus pais pagariam por ele. Cabisbaixa, Lauristênia me deixou. Eu escutava outro hit no YouTube. E a história da vizinha já me havia impregnado a alma.