A VACA E O PERNILONGO

Eleonora e Eleutério cresceram juntos.

Como vizinhos, colegas de escola, amigos de aventuras e gazetas, e, lá pelos idos da adolescência, descobriram-se enamorados, um pelo outro. E assim estão até hoje, acreditem!

Mais diferentes, entre si, não poderiam ser. Fisicamente, ele sempre foi um estinguelo, compridão, magérrimo, pálido, loiro e pernalta. Ela, baixinha, atarracada, morena, ancuda, com cabeleira negra vasta e perna grossa. No jeito, a coisa era mais oposta ainda, sendo ele bem prazenteiro, sorridente, conversador, ágil, saltitante, e ela mais taciturna, compenetrada, alheia a muita coisa que acontecia em volta, ensimesmada e retraída. Ambos, porém, eram afáveis, cordatos, do tipo de gente que dá gosto de ter por companhia.

Casaram-se, no tempo em que os pretendentes não costumavam fazer pé de meia ou adquirir patrimônio antes de enfrentar o matrimônio. Não tinham carro, tv, máquina de lavar e muitos outros badulaques “importantes”, sem os quais não dá para morar junto (será?). Para falar a verdade, nem casa tinham. Foram morar, de favor, numa cabeça de porco, também conhecida como cortiço, em que tinham a privacidade de um quartinho e meia cozinha, mas o banheiro e lavanderia eram coletivos. Dormiam num colchão velho, no chão, e se viravam com alguns talheres e louças de quinta categoria, comendo o que era possível, quando dava.

Nunca reclamaram ou discutiram. Tratavam-se com muito carinho, brincando todo o tempo, e fazendo troça da pobreza ou carência. Naquela dificuldade, formaram-se, à custa de bolsas de estudo e financiamento, ele administrador, e ela professora.

Uma semana depois da segunda formatura, nasceu Tiana, e o sufoco foi maior. Para driblar os primeiros tempos difíceis, ele fazia bicos como apontador de jogo de bicho, pintor, faxineiro e jardineiro. Pouco depois, ela conseguiu um razoável emprego, e como estava bem mais difícil para o maridão, combinaram que ele ficaria de babá e dono de casa, por um tempo.

Quando conseguiram uma creche, Eleutério fez amizade com o diretor, ajudando-o nas contas da entidade. Foi convidado a se empregar como assistente, e como se mostrasse muito eficiente, assumiu a direção da casa. Foi então que puderam alugar uma casa só deles, com sala, dois quartos, cozinha decente e até quintal. Sua gestão chamou a atenção de muitos pais de crianças, e não demoraram convites para assumir a administração de empresas. Após longo tempo de reflexão, o rapaz optou por aceitar um encargo, que de grande desafio, logo se transformou em sua ponte para a prosperidade. Tornou-se, em alguns anos, sócio do patrão.

Quando Eleonora engravidou pela segunda vez, foi advertida pela escola, que quando retornasse do período legal de inatividade, seria demitida. Eleutério, que tinha pequena parte na sociedade de sua empresa, pediu ao sócio que comprasse suas cotas, para usar o dinheiro na montagem de uma escola para sua esposa. Emocionado com sua dedicação, o homem lhe forneceu o dinheiro necessário, entrou como sócio no empreendimento e ajudou muito em toda a fase que precedeu o nascimento de Isaurinha, tornando-se seu padrinho.

O casal prosperou e envelheceu feliz. Suas filhas, após um tempo, assumiram a escola, que também se tornou creche, semi-internato e hotelzinho pedagógico. Como o terreno era enorme, atrás da escola havia a casa dos pais, a horta, o pomar, o galinheiro, e duas casas geminadas, numa das quais moravam Tiana e seu marido Lúcio (pedagogo), e na outra Isaurinha e sua esposa Maura (contadora).

Eleô e Eleu, como costumavam se tratar os velhos, curtiam a maturidade cuidando da criação, da plantação e passeando. Era bonito vê-los vindo pela rua. Ele à frente, gesticulando muito, ao cumprimentar passantes, naquele passo saltitante e desengonçado, e ela atrás, meio cansada, mas perseverante na caminhada, oscilando em seu andar lento e silencioso. Foram, em pouco tempo, apelidados de a vaca e o pernilongo. De início, alguns apenas sussurravam esses epítetos, mas não demorou a que eles próprios tomassem conhecimento da coisa.

Os amigos e conhecidos estavam receosos de que o casal recebesse mal a brincadeira, mas ao comparecerem num jantar comemorativo da comunidade, todos ficaram surpresos, pois Eleutério foi o primeiro a tirar a companheira para dançar, e em alto e bom som, chegou-se a ela e lhe disse: - Dá-me a honra Vavá? Ao que ela respondeu: - Com prazer, Pepê!

Após segundos de estupefação, o riso geral. A Vaca e o Pernilongo dançavam felizes.

Os dois já se mudaram, novamente, para o hotel de Papai do Céu, há alguns anos, mas a lembrança desses momentos alegres e de sua história exemplar, eternizou-se em mim.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 20/01/2019
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