Minguante

Prólogo.

Contaremos um trajeto peculiar que se deu ao anoitecer, em uma cidade fictícia e comum. O nosso protagonista fez parte de todo o esforço desta história, que acrescenta uma cuidadosa indiferença que o ambiente fictício teve com os fatos narrados. Talvez ninguém se lembre deste nosso moço rapaz, ou deste singelo pároco ao qual fez importante papel na vida fictícia do nosso amigo. Talvez nem se lembrem de uma garota tranquila e feliz que acendeu a chama da vida no peito deste rapaz. Algumas palavras talvez tenham sido omitidas, mas não lembremos de tudo. O trajeto se deu entre um esquecido local e um inadequado destino. Não importa também para onde foi e de onde veio. Na verdade nada disso importa tanto, a saber, os pensamentos relatados a seguir foram todos esquecidos rapidamente. Dito isto, relatemos as veredas traçadas.

Capítulo um.

O que contava para si mesmo era só o que queria ouvir. O trajeto curto cabia em delongadas descrições a respeito das pedrinhas que deixava para trás, e enquanto as amassava na terra ou em outras camadas de pedras menores ou maiores, o vento balbuciava algo parecido com a súplica de Requiem; assistira Amadeus na noite anterior.

Imitava o vento. Seus lábios conduziam os sopros dos clarinetes e fagotes e tenores em alto e baixo tom, combinados com as cordas em simultânea dúvida, frente aos cantos que reverberavam nas folhas, em resposta ao contrato de Salieri, assinado pelo mal.

Confutatis maledictis

Flamis acribus addictis

O que cantava para si mesmo era só o que sua alma se recusava aceitar. Por isso nunca acreditou nessa farsa do inconsciente. Se o que se fala sobre qualquer que seja o diagnóstico veio a tona no momento mesmo da sentença, já é consciente ao que experimenta o contato entre as moradas psíquicas. Nem o subconsciente ele tomava como possível. Freud apenas percebeu que não se pode imaginar absolutamente todas as coisas ao mesmo tempo, e que há lembranças difíceis de lembrar, e algumas outras que se perdem no caminho, como as pedrinhas abaixo das solas e folhas acima da orelha, que ao som de Mozart cuidam de si mesmas e dos bichos; talvez o Dr. Sigmund exagerasse em transpor certos traumas em um aglomerado de simbolismos que saltam aos olhos do tolo. Seria o contrário? Ao menor transe, culpe o inconsciente. Falácia. O subconsciente era só o inútil que tornamos útil após o terapeuta atribuir sentido ao que deixamos em segundo plano, mas os planos não eram camadas. Eram receitas de bolo de abacaxi, que explicavam o por quê do barulhento tique-taque do relógio que causava arrepios e ansiedade desde menino. Ou a cena de Rosebud, devotada a uma vida perdida de Kane, em meados de cidadania forçada.

Ao que tudo indica, as veredas estreitaram-se onde as pedras davam lugar a um ralo capim e seguiam por um campo aberto e calmo. Nosso amigo refletia sobre o estado de sua alma. A lua minguante tornava os trejeitos do rapaz imperceptíveis aos lobos-guarás. Seus ombros se destacavam na sombra, que ora se precipita, ora persegue e torna a encolher ou engrandecer a si mesma, imitando ou zombando de seu prisioneiro. O cuidado que tinha com sua alma era formidável. Melhor dizendo, exemplar.

Nosso rapaz respeitava a continuidade apostólica, cuidava dos preceitos e entendia os seus grilhões. Era um facínora de sua própria piedade, buscando, assim, um meio termo entre a corda e a corrente que o prendia ao coração eucarístico. Gostava mais da quinta-feira. Dizíamos a respeito da tradição apostólica que ele devotava fiel atenção.

Mas por que ele se dirigia calmamente ao desconhecido ou não dito? Sente-se, minha senhora. Ele não sai do lugar por ora. As suas pernas se movem acima de um chão que faz o caminho contrário. Ele nem percebe.

Com efeito, tributa à consciência a realidade eucarística. Era o que vínhamos dizendo, antes de a senhora se escandalizar. Ele buscava o Pão da Vida. A noite se assemelhava àquela em que o mesmo foi partido e transformado em corpo, e corpo salvífico e erguido; e o vinho em sangue, e sangue derramado e salvífico. Nosso querido rapaz sabia os caminhos de seu dia. E seu dia eterno.

Cessado o caminho contrário que o capim teimava em tomar, tornemos à nossa história.

O prezado nosso rapaz teria uma idade singela, olhos difíceis de colorir em palavras, por se tratar de misturas, mãos que suavam ocasionalmente, como as de sua mãe, e uma nuca perfeita. Era um belo rapaz. Descrevemos o que importa num belo rapaz. Nada mais importa às moças de saia lisa e neutra, saia geralmente preta. Com efeito, sempre se sai bem nos olhares oblíquos e continuados dirigidos a uma mocinha em especial. Sempre na saída de certos grupos singelos e devotos que não queremos falar por ora. Era fiel ao que ainda estava por vir. Eis o mistério da fé.

Capítulo dois.

Assim seguia um passo leve e cuidadoso, olhando para frente ou para os pés, atravessando o campo observado por astros de outrora, num céu compartilhado, trespassado por muitos tempos, em desconformidade com outras eras. Mas seriam as estrelas lembranças de Deus? Nosso assíduo rapaz cuidava desses preceitos celestes e transcendentes, encontrando semelhanças entre seus iluminados passos e o escorpião em pontos de ligação luminosa acima, assim como outras constelações. Descobriu sua predestinação na música dos grilos, enquanto o saudavam pela sua humanidade desenfreada.

Não, senhores, senhoras e estrelas. Nós somos uma lembrança de Deus. Uma intuitiva resposta às dádivas galácticas.

Contudo, não passamos despercebidos. Somos imagens intelectivas das nossas circunstâncias. Mesmo esquecidas por nós mesmos, permanecemos na constância divina, sendo pensados pelo que nos Criou. A mente do nosso sincero amigo se contorcia entre impressões aceitáveis pelo momento, transpondo-as verbalmente em algo perdido pelo trajeto mental. O caminho minguante poderia inspirá-lo frases soltas e desconexas, mas estas palavras não faziam parte de seu núcleo essencial, assim, facilmente as desindentificava de suas terminações, e as descartava pela culatra.

Sua alma trabalhava em torno de frases amáveis e curtas, como os panegíricos distribuídos ao fim da missa na sua paróquia. Eram apologéticos agostinianos. Deste santo a paróquia levava o nome. Era uma paróquia calma e pacata, como devem ser as casas de Deus: pacata e devota. Nem sempre e tanto pacata, mas devidamente devota. As conversas que mantinha ocasionalmente com o recém ordenado pároco eram avivadoras e edificantes. Conversavam sobre as flutuações em êxtase de Santa Teresa, e o cárcere santificante de São João da Cruz. O jovem padre dizia piedosamente que o rapaz ganhara uma cor nova desde a última confissão, e que parecia mais jovem, na flor da idade. Dizia ele ser difícil encontrar aparente pecado no garoto.—Nosso rapaz sabia que os pecados não aparentes eram o que degradavam mais intensamente a alma—. Suas palavras arrependidas e contritas causavam nostalgia ao confessor.

Confessava.

—É como uma confusão, uma negligência permissiva e descuidada do meu estado interior. Deixo o que importa em segundo plano, isto é, a parte de mim que tem certeza da salvação, e isso me parece crescente e duvidoso. Vai contra o primeiro mandamento...— o rapaz estacava no banco, com os olhos a frente, em direção ao altar, e acima deste, logo atrás, o Crucificado.

Isto causava certa nostalgia ao jovem padre, por ter calçado uma destas sandálias, outrora. Talvez não o par, pois remoía apenas o necessário.

Não é preciso dizer que nosso fino rapaz admirava o seu confessor. Noutra ocasião, meses antes, em uma das missas, o jovem pároco tratou de enfileirar os fiéis e aplicá-los a extrema unção. Claro que entre eles não havia nenhum moribundo, ao que se sabe pela boca das senhoras fiéis ao apostolado. Curiosa foi esta ocasião. Em sua homilía, aludiu ao fato de estarem todos mortos na fé, o que requeria imediata ressureição, absolvição e restabelecimento dos votos. "Eu recebi o último dos sacramentos antes mesmo do matrimônio", se orgulhava o moço rapaz. "Pois bem, purifica-nos, Mestre, ainda por cima da vida que hoje recebemos...". Que os mortos enterrem seus mortos, e que ninguém morra por falta de aviso.

Na confissão referida anteriormente, em que se achavam ambos, o rapaz e o pároco na última das fileiras e no último dos bancos da igreja vazia, a princípios do início da celebração das 19 horas — momento em que o singelo padre dedicava a ouvir algumas confissões —, enquanto antes de receber a absolvição e o pároco o recomendava buscar um emprego, nosso rapaz meditava determinados milagres. Ao lado direito do altar havia a imagem do padroeiro do local, Santo Agostinho. Lembrou-se o jovem de certo jardim, onde, em meio aos prantos, Agostinho encontrava-se pela primeira vez com a força suprema do universo, ao som de vozes infantis.

Era de seu costume se deitar, tarde da noite, em seu jardim, olhar as estrelas, contemplar as constelações e sentir o mundo abaixo de si, o núcleo que o atrai e o universo que o sustenta. Isso, sem dúvida, o localizava em um mundo. Mundo conjunto e individual, indizível e contrário ao ambiente. Buscava estar bem onde estava, sobre a grama e abaixo do céu, centrado em si mesmo, respirando os ares do planeta no qual Deus escolheu se encarnar. Era um homúnculo, entre átomos e ondas quânticas. Cuidava de se diminuir, deixando Cristo crescer em seu peito. Esse simples exercício o limpava de pretensões.

A dupla face da lua condizia com o seu antagonismo interior. Era o que achava nosso amigo rapaz. Os grilos e sapos concordavam, em sintonia, e ele não entendia muito sobre os bichos.

Capítulo três.

É sempre um sofrimento que nos gera. Evidente que seja assim. Quando entregamos a nossa dor pela salvação de alguma alma, um elo acontece entre nós e nosso propósito; uma corrente que nos liga à nossa casa.

Não é terrível que seja este o único caminho? Porém, dele estamos sempre à margem, ladeando-nos à nossa própria esperança, mornos, na beira de uma água viva e quente.

São essas as impressões oníricas da mata.

Esta floresta crua e funda, tragada pelas cigarras em seus colóquios, no distante princípio das eras, onde o mundo não vira e não deita, mantendo, assim, o verde em vista clara e precisa, refletido pelos raios amarelos. É sempre infinita a miragem, fechada em torno, na variedade da flora. Perifericamente, nada que vale muito gasto ocular, visto que o propósito do lugar é este majestoso templo, antigo como o barro paterno. Trazidos até aqui pelo ruído que corre, vindo de longe, longe... Até os dias de ontem. Quase esquecemo-nos de seu aspecto arrebatador: o templo parece consumido por fatores não ainda vigentes, pois é o princípio de antes do barro. A escadaria frontal nos leva até um altar de pedra. Tudo é pedra e mármore. Neste altar foi partido o tal princípio que, livre de mancha, jorrou na rocha a límpida polpa, esvaziada do fruto que carregava o peso dos séculos.

E pelo lado direito, logo atrás, uma fenda se infinitezimava, pelos litros e litros que dela corria, formando uma torrente que só aumentava, floresta adentro. Na fonte, apenas fios líquidos traçados na pedra. Mas a cada pedaço aumentava de largura e de fundura, passando de regato à torrente, de riacho à oceano, por dentro de tudo que se pode calcular do mundo dos começos. Só se podia saber do que se constituía o tal arroio, chegando-se bem perto, até dentro. Ao mínimo contato, a vida se revelava. Era a única verdade, o tato e a revelação. Agachava-se, experimentava da água, depois vivia-se. O melhor era deixar-se levar pelas águas, vendo que todo o percurso que fazia reconstituía sentido à mata dos tempos até hoje.

Levado pelas águas em seus devaneios santificados, entre as duas margens, que de cada lado se enchiam de espécies nativas e estrangeiras, de árvores que davam frutos sem fim, lavadas pelo sacrifício jorrado do santuário, onde foi consumada a elevação do suplício eterno, prorrogado pelas mãos calejadas de Abel; devaneio esse sob o luar minguado entre pontos de encontro dos anjos, nas estrelinhas e nuvens, no céu e além do mesmo... céu que caía ao se cansar da sujeira.

Por mais que pensasse tanto sobre o sangue, nosso amigo não traduzia tudo em palavras. Um suspiro, um deboche silencioso — um sorriso solene, que previa a desgraça da terra em que pisava. Esquecera seu nome. Coçava o ombro de quando em quando, seu corpo dizia longe de usar palavra. Passara apenas cinco minutos desde que seguia pelas veredas amplas e infinitas. Corria o pensamento com habilidade de quem não faz mais do que isso. Sua estranheza o levava a cumes inalcançáveis, a ponto de desviar lembranças e enredá-las umas nas outras, confundindo indivíduos à lugares, e animais às falas e ordens de seus pais. A garota a quem nos dirigimos no primeiro capítulo, agora era uma nuvem em suas diversas imagens, pairando sobre as orelhas do rapaz. Pelo o que nos lembramos, se chamava Amélia.

Um dia, ao final da catequese, indo a pé para casa, nosso rapaz deu de cara — ou de nuca — com Amélia. Diminuiu a velocidade, atrasou o passo quase mais do que necessário em situações românticas, e ladeou-se com Amélia e sua irmã mais nova que não tinha um nome memorável.

— Gostaram das falas do padre?, tencionando a voz, indagou o rapaz.

As duas garotas ocupavam a calçada toda. O guri ora descia para a rua e subia apenas uma das pernas no meio fio, ora andava no canto do asfalto, parecendo, assim, um coxo inconveniente ao lado das meninas, que soltaram um risinho ao vê-lo atrapalhado em suas andanças.

— Foi sobre o quê a aula hoje, mesmo?, replicou a irmã de Amélia, direcionando o olhar às pernas confusas do garoto.

— Sobre se os bebês sem batismo vão para o céu ou não, Amélia tomou a palavra.

— Isso mesmo, disse o rapaz, e decidindo-se a andar na rua logo de uma vez, desceu da calçada.

As nuvens carregavam-se ao norte, rapidamente cobrindo a claridade com seus braços negros e grossos, dando identidade ao domingo, prolongando a Ressurreição.

A paróquia da qual voltavam se localizava quase ruralmente, atraindo os fiéis dos bairros periféricos ao sul, e os indiferentes de algumas chácaras mais próximas. Assim, os garotos que frequentavam a catequese tinham um caminho curto em rua de terra e mais umas três quadras em bairro comum. Amélia, sua irmã e nosso amigo acabavam de virar a primeira esquina de chão. Moravam algumas quadras antes do rapaz, mas só ele sabia disso, ou era o único que dava importância. O assunto sobre as almas precocemente chamadas continuou por alguns minutos, enquanto eles ainda tinham passos para conversar sobre essas coisas teológicas.

— Não sei o quê fizeram elas para serem condenadas, se elas o são realmente, continuou o rapaz.

— Acho que não foi essa a conclusão do dia, disse Amélia, o padre disse que não se deve afirmar com certeza nem uma coisa nem a outra, isto é, se eles vão para o céu certamente, ou vão pra sei lá onde. É coisa de ver para crer...

— Eles certamente são salvos!, protestou a irmã de Amélia.

— Eu quero acreditar que sim, disse o garoto, e continuou, eloquentemente,— pois a Misericórdia os escolheu mais cedo, e Deus os torna anjos e arcanjos. Quem sabe se Miguel não foi um bebê abortado, ou Gabriel um natimorto infeliz?

— Ah. Isso é impossível! , rebateu Amélia, anjos são criaturas supra-humanas, muito maiores do que nós temos capacidade de imaginar. Além disso, Miguel estava no dia da Queda dos anjos, muito antes de existirmos e de abortarem-se pessoas.

— Exatamente!, concordou a irmã, bem no ponto onde eu ia tocar!

— Pois é, eu não tinha pensado nisso... admitiu o cabisbaixo garoto, olhando as pedras, perdido em suas falhas teológicas— , mas enfim... é um assunto interessante. Viver ou não viver, nascer e não ver o que hoje vemos. Compreender só um pouco em pouco tempo, ou não. Essa é a vida que essas criaturas não tem a oportunidade de viver. Não sei se é bom ou ruim. Mas acho que todos deveriam viver para ver tudo isso. Viver para crer, e crer até mesmo sem ver coisa alguma. Eis o mistério da fé...

— Profundo isso, né, Amélia?, a garota mais nova se impressionou e dirigia-se agora à irmã, que contemplava o horizonte, parecendo indiferente, porém sintonizava com as ideias de nosso amigo.

— Talvez..., respirou e expirou Amélia, com intensidade de pensadora, e vivacidade de poetiza.

O nosso garoto se mostrava feliz com aquele primeiro contato verdadeiro que teve com Amélia, a menina amada. Talvez suas ideias o colocassem em um plano menos medíocre aos olhos dela.

— Digo..., continuou, apaixonado, — viver e ser criança! Que coisa, não? Que presente que todos recebemos que é o de sermos crianças! — ele parecia tomado de emoção e angústia verdadeiras, transpirando poesia e absurdos —, o que assustou as meninas.— Digo para vocês que essa é a fase onde mais se vive de verdade. As peripécias infantis nos tornam pessoas maduras. Meu tio foi criança e não o foi ao mesmo tempo. Ele conta que quando tinha cinco ou sete de idade, reuniu uns garotos da mesma idade, e todos eles viveram na mata por seis meses. Seis meses! É uma odisséia e tanto...

Agora ele tinha a atenção delas. Pararam num toco de árvore para respirarem e ouvirem a si próprios, enquanto a vida ainda permite a contemplação pela escuta, a concentração pela fala.

— Eles comiam o quê? E como? — perguntou concentrada Amélia.

— Bom... eles caçavam calangos e bichos desse gênero que têm pelo sertão... faziam armadilhas e lutavam com guaribas do mesmo porte que o deles; dormiam em cima das árvores em redes feitas de uma só corda.

O rapaz expunha isso gesticulando homéricamente, relatando feitos do começo do século, que pareciam tão antigos quanto a própria humanidade. De fato seu tio vivera algo parecido. Ele e mais uns primos e amigos, de cinco a oito anos, viveram pelas matas cearenses, se alimentando de animais e plantas providenciais, subindo em trens interestaduais, descendo em novas áreas rurais, coletando sementes e pedrinhas para fazerem artesanatos, terços e colares e venderem nas feiras e ruas. Tudo isso pelo mero instinto da idade, pela infância roubada por si mesmo; ou pelo proveito intenso que se pode ter sendo criança. Criança atemporal. Talvez fossem assim desde sempre as crianças. Quando retornou para casa, sua família nem falta tinha dado. Eis a infância de uns tempos atrás...

Tal eram os assuntos da primeira conversa que travara com Amélia. Certamente isso alavancou sua carreira.

As garotas escutavam boquiabertas, comprando cada palavra e gesto do nosso amigo. Estavam sentados em tocos na beira da calçada, e nem viam o tempo passar. A irmã mais nova era a mais impressionada, olhando ora para o garoto, ora voltando a cara esticada para a irmã, para checar se não era a única que estava de tal modo evoluindo sua imaginação, que acreditava ser este o momento mais importante de sua vida. Era alguns anos mais nova do que Amélia, talvez dois, talvez um; mas mais nova. Os olhos eram de um castanho madeira, quase da cor do toco na qual estava sentada. Sua face era repleta de sardas marrons, e usava uma tiara que separava os cabelos que desciam até a nuca, mais ou menos. Amélia era um pouco mais alta que a irmã, se preocupava com coisas mais urgentes e falava mais pausadamente em comparação com a outra. Olhos um pouco mais claros, mesmo assim castanhos. Seu nariz era mais fino do que o da irmã, mas sua face se comportava mais vastamente, sem sardas ou pontos de impressão instantânea. Isso é tudo que lembramos da aparência das duas meninas. Recordamos até muito mais do que as aparências descritas sobre nosso protagonista.

Dito isto, prossigamos nosso esquecimento fatídico.

Capítulo 4.

Em verdade vos digo: o que não nascer do Espírito, certamente não conhecerá a si mesmo. Da água, do sangue, da lua minguante, eis por quais meios nosso amado rapaz garante a si próprio a Morada Eterna. Volta e meia, incomodava-o mosquitos. "Nem poças ou humidade". Atento à água parada, perscrutava ao redor, até onde o breu permitia enxergar. Nossa história fala sobre a lua, mais do que fala sobre o Homem. Nada de astrologismos, porém, nota-se a estreita semelhança entre ambos. O homem não possui luz própria, algo o ilumina de fora para dentro, assim ele irradia uma chama crescente, e vê-se de longe o que se sente de perto: o amor de Deus. O homem influencia as marés das circunstâncias, ora inundando-as, ora agitando-as a tal ponto, que tomam conta de tudo. Em verdade, o homem sufoca-se. Não obstante, o homem muda muito, e muda tanto que no outro dia está absolutamente o mesmo do mês anterior. Dir-se-ia que é um ciclo, uma fase, mas é um impulso, uma vontade. É esse o gênero humano. Nosso amável rapaz era quase isso. Ele era o que podemos chamar de abstrato, e como nossa história está demasiada abstrata, ilustrála-emos.

Havia, já a estas alturas, dois meses desde que Amália travara conhecimento com nosso jovem. Eram, desde então, ilustres amigos, dados à expansivas conversas, às vezes sobre questões interessantes, como às de estreia, e também sobre "árvores ou pássaros". Não exatamente sobre ÁRVORES E PÁSSAROS, entre tantos assuntos nos quais ambas criaturas são relevantes, mas especificamente ÁRVORES OU PÁSSAROS. A questão era sobre quais desses eram permitidos serem vítimas de suas pedras. Ora, veja bem, Amália e ele já não tinham lá idade para ambicionarem a tais veleidades, como à confecção e uso de estilingues. Porém, senhores, era lícito recorreeem eles aos modos arcaicos de diversão, considerando as opções disponíveis na região e na época aqui descritas. Trata-se, em suma, de tempos em que vivíamos as estações intensamente. No verão, e no calor em geral, era recorrente as tardes mergulhadas no rio. Já no inverno, faziam-se fogueiras e chocolate quente era servido. Cada dia deveria ser aproveitado verdadeiramente, até o último segundo. Se éramos moços, agíamos como à mocidade era bonito agir. E só depois de gastarmos nosso último de moços enervantemente, poderíamos progredir. Sendo assim, a juventude seguiria os mesmos preceitos, e decorreria com suas crises, como foi e como sempre será. Senhores, os moços o eram por muitos tempos. Amália e nosso amigo eram moços, porém considerar-se-iam jovens, se hoje o fossem.

Por costume, seguiam aos sábados para onde lhes era melhor caçarem, -- árvores ou pássaros -- fosse num terreno de tralhas, fosse no mato. Por 'unanimidade', estavam decididos sobre as vítimas: deveriam ser inanimadas. Foram por vias teológicas que o jovem a convencera:

-- São criaturas, como nós, referia-se aos passarinhos.

-- árvores não são menos do que isso, redarguia-o Amélia.

-- sendo assim, você menos ainda é gente, e posso caçar-te às pedras, como eu bem entender. -- e o rapaz, astuto, abaixava-se, tateando a terra ao encontro da primeira pedra, -- menor que sua palma -- logo a armava no cordão.

Amélia cedia.

Isso sucedeu-se por todos os sábados dedicados ao evento.

E era entre os verdes e marrons, que percorriam os sonhos primaveris. Quão ágeis eram os movimentos de Amélia, e quão apaixonadamente comemorava ao atingir com maestria em cheio algum tronco, ou mesmo um galho nas copas dali. O garoto deleitava-se ao ver suas preferências sendo levadas em conta, por pelomenos alguém. Alguém mais baixo, mais ponderado, alguém de sua idade e estatura moral. Era como se as árvores, os pássaros, os estilingues, as copas e galhos, tudo fosse nada, perto da satisfação em equivaler-se a ela.

Não o tomem por melancólico, era ele apenas sedento de normalidades, de não-clausuras, de ambições longe de extraordinárias. E se tão sutil era com sua amizade nova, quão sutil não era com o seu íntimo. Naquela face que o sol e os insetos disputavam superfície, ele via a busca pelo estático, pela tranquilidade que se move apenas à influência do vento. Via o quanto deveria ser perfeito parar, simplesmente parar e aproveitar a inércia, e tudo o que ela poderia oferecer aos minguantes. Via, porém, o quanto isso não valeria a pena, afinal, por ansiar o contínuo movimento pelo Espírito, que o levava de cima a baixo, ensinando-o a amar o ar. E nas pedras atiradas a esmo, não as contava mais, estava em plena concordância com sua parceira de caça, apenas ciente do que ela significava ou ainda poderia significar para sua alma flutuante.

Uma árvore ou um pássaro? Eis que pensava tanto em voar, no Espírito, quanto tencionava fixar-se, em si mesmo.

Marc Moret
Enviado por Marc Moret em 07/02/2019
Reeditado em 11/04/2019
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