ELE ERA QUASE UM SANTO

Apesar de estar distante por muitas décadas, ainda me lembro, com muita clareza, da visita que o eminente cardeal primaz do Brasil dom Augusto Álvares da Silva fez à minha terra natal.

Foi ele o visitante mais ilustre - de todos os tempos -, que pisou e se empoeirou no árido solo daquele lugar.

Na época eu era, sem dúvida, um menino que tinha seus olhos registrando os movimentos que se passavam ao redor de tudo e de todos daquele vilarejo chamado de Junco, o qual era um Distrito do Município de Inhambupe, ambos situados no agreste baiano.

A população do Junco, que na ocasião era totalmente católica, não mediu esforços promovendo leilões de bois, de ovelhas, cavalos, galinhas e porcos; além de doarem dinheiro para pintar a igreja e confortavelmente receber o excelentíssimo senhor visitante que apareceu junto com a imagem de Nossa Senhora Aparecida, a qual na ocasião peregrinava de lugar em lugar por grande parte do território brasileiro.

A chegada do cardeal causou uma comoção popular (dentro do possível comparável ao que se viu com a visita do papa João de Deus) que estimulou, em muitos, uma fervorosa fé religiosa seguida de idolatria ao eminentíssimo senhor como se ele fôsse um santo de carne e osso. Acho que ele foi mais admirado do que a imagem da santa.

Do lado de fora da casa paroquial formou-se uma imensa fila para se receber a bênção cardinalística e em meio ao povo da fila havia uma mulher que se comportava fora da normalidade. Ela se debatia, esperniava, xingava, chutava e gritava assustadoramente enquanto que dois homens a seguravam com muita dificuldade. Sua eminência, ao ver tal situação, pediu que a trouxessem e deu-lhe uma bênção aquosa, mas um dos homens, não satisfeito, pediu que a exorcizasse, e foi ai que o religioso lhe disse:

- Isto não é um demônio! Levem-na a um psiquiatra!

E o benzimento continuou até que todos da fila fôssem contemplados com água benta. Ao término da fila o cardeal se banhou, comeu e foi dormir roncando.

No dia seguinte o visitante iria embora e para sua despedida foi feita uma homenagem com a presença de toda a população do Junco rezando e cantando belos benditos. E foi naquele triste momento da despedida que eu, juntamente com mais três meninos, nos sentamos na calçada e ficamos lamentando que nunca mais iríamos ver o cardeal, porque ele já estava muito velho. Isso ocorreu enquanto olhávamos para ele entrando num jeep. Nesse momento ficamos em silêncio até que um dos meninos falou:

- Deram nele um banho de creolina pra matar as pulgas!

Outro menino, admirado com o que ouviu, lhe perguntou:

- Deram banho de creolina em quem, Gilberto???

Ao que ele explicou.

- Naquele cachorrinho que ta passando ali na frente. Veja, ele está todo lambuzado de creolina, coitado!

- A gente pensou que você estava falando do cardeal.

José Pedreira da Cruz
Enviado por José Pedreira da Cruz em 07/05/2019
Reeditado em 21/08/2019
Código do texto: T6641359
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