DENUNCIAR (ou não) O QUÊ?

1---A dois meses de ir fazer 16 anos, a GAROTA saiu de um bairro bem central para um subúrbio um tanto distante. Entre revoltada e curiosa pela desastrosa novidade /a rua reta ia da linha do trem a uma estrada comprida, a tal de Avenida Brasil, na época já extensa (extensão hoje - 58,5 km), mas a parte final teve outra nomenclatura até 1961/, bem antes de chegar (agora moradora, tadinha...) passou a falar "minha agora incivilização"... ----- Pouco diálogo inicial. ----- Entre gente jovem e mais velha, raríssimo encontrar quem conhecesse, tivesse visitado os lugares que ELA percorrera desde bem pequena. Não sabiam sobre bairros históricos, locais de franco turismo, cinemas, hipódromo, museus, praias, parques... ilhas... Muitos passeios tinham sido gratuitos - pai dizia que "mulher, criança e cachorro entram de graça!" e nem assim tinham estado lá. ----- Um garotote um pouco mais velho, casa em frente, se apaixonou e chegava pertinho dela em todas as oportunidades - ELA entrava no botequim-tendinha, comprar pão ou leite, ELE surgia de repente e até ganhou o apelido de "fan...tasma quase mudo", vagamente corcunda e caladão. ELE arrumou emprego, mesma agonia aos sábados e domingos. Anos de perseguição, o cara nunca visto com namorada alguma (ou namorava em outro bairro), custou a desistir. Quatorze ou dezesseis anos depois, não dá mais para certeza, muito tempo, mudaram... família toda... e não se soube para onde foi o Fantasma-Não-Inglês-da-África, qual caverna, ainda solteiro. Assume hoje que sentiu falta dele.

2---A casa ficou vazia. Na entrada, jardinzinho secou.

3---Sem este reprodutor da narrativa questionar política ou politicagem, foi uma época muito pesada a partir de abril/1964. ELA tivera alguns variados empregos desde os 17 anos e iniciou um curso superior em 1970. De repente, num tempo entre 1969 e 1971, quatro sequestros "políticos", digamos assim... As cidades mais importantes, Rio de Janeiro e São Paulo, viviam em polvorosa, num grande e interrogativo agito. Em todas as vezes, autoridades esperavam (em vão!) que a população denunciasse possível esconderijo onde poderia estar, ora um ora outro diplomata (embaixador ou cônsul, Brasília já composta?) - metade das pessoas a favor de olho na gratificação, metade contra, indiferençada-desinteressada.

4---Na varanda da casa vazia, apareceu um quarentão pintoso e sério - muito bem trajado /jeans ainda raro/, sapato brilhoso de graxa e polimento /tênis idem/: temperatura alta naqueles dias. Sem aliança na mão esquerda. Pontual às 9 horas. Trazia sempre visibilíssimo embrulho retangular (antes da "era" mochila feminina, mochilão de macho). Metia a chave no portãozinho da calçada, entrava na casa, demorava poucos minutos, saía sem o pacotinho, o terno e a gravata; arrastava uma velha e desbotada chaise longue (cadeira meio deitada) para a varanda e se refastelava com um jornal que as pessoas mais espertas observaram publicação intelectual de elite, de 1925, não 'olho-sujo', imprensa marrom sensacionalista. Não abria janela alguma da casa. De longe em longe, dias, surgia outro homem - muito calor, óculos de sol - e os dois entravam sem demorarem muito. Vizinhança atenta e simultaneamente assustada. "Logo na nossa rua?!" Patrulhinhas passavam em vapt-vupt... Mais raramente um casal, mulher decotada (minha AMIGA diz que Rio de Janeiro é eterno verão!) escancarava a porta e abria janela para refrescar, apenas era vista a sala sem móvel algum. Autoridades insistiam que denunciassem casa suspeita, possível esconderijo. Qual o impetuoso e corajoso "dedo-duro"? Aquilo durou um bom tempo. O cidadão calado, de segunda a domingo, sem um bom dia para quem quer que fosse. Às 14 horas picava a mula, isto é, ia embora, desaparecia.

5---Numa tarde de calor maior ainda, não resistiu (ou planejou?), entrou no botequim ao lado e comprou dois (dois?!) sanduíches de pernil, tamanho médio, pão francês cortado em viés), e dois (dois?!) refrigerantes de cola. "Bem gelados, por favor!" No mínimo, educado. /Seria para ele e o possível sequestrado?/ Há muito tempo já percebera a curiosidade geral... Puxou assunto com a portuguesa, disse ter até então tomado água de um filtro na parede, trouxera no bolso da camisa (mostrou!) um copo de armar que possuía desde criança, tinha sido escoteiro na "Irmã Paula" da rua Mem de Sá porque família carente ganhava todo mês uma caixa de alimentos. Ahn!... Por sorte, a família mutante deixara na casa um fogão velho, surpreendentemente ainda com algum gás no bujão e ELE pudera aquecer todos os dias a marmita de almoço, alumínio também de armar, dieta especial que a mulher preparava saborosa, sem precisar pedir favor e naquele local não deveria existir refeição comercial de acordo com /segunda curiosidade/ sua orientação médica. "Hoje eu não trouxe comida de casa." Saiu sem dizer o motivo da estada já de quase um mês.

6---Brevemente mistério desvendado. Antes da "era" Internet, onde tudo se propaga e todo mundo descobre tudo. Num jornaleco popular, preço baixo por notícias de menor importância, alguém leu na seção de classificados o anúncio de VENDE-SE OU ALUGA-SE, com o endereço explícito da casa.

7---Em tempo recorde, o corretor de imóveis sumiu e novos moradores chegaram. Ora, bolas! Nenhum sequestrado ali? Que sem gracice! Suspense acabou.

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NOTA DO AUTOR:

FANTASMA - Tira de jornal, gênero aventura, criação de LEE FALK, mesmo autor de MANDRAKE: combatente do crime, mascarado, roupa colante característica. Acompanhantes: cavalo Herói e lobo treinado Capeto. Atuação em Bangalla, fictício país africano. HQ começou a ser publicada diariamente em jornais, fevereiro/1936, depois em cores aos domingos, maio/1939, continuando até 2006. Na HQ, este era o vigésimo primeiro Fantasma, desde quando o pai do marinheiro britânico Christopher Walker foi morto num combate com piratas - jurou sobre o crânio do assassino (olha um inverso de HAMLET aí, pessoal!) a luta contra o mal, daí o legado foi passando de pai a filho. Como os Fantasmas anteriores, vive na antiga caverna do crânio.

F I M

Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 11/05/2019
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