O Depoimento - Parte 1 - Garota Perdida

O relógio marcava nove e quarenta e cinco da noite e tudo que Santiago Berniote queria era ir embora.

Com seus olhos tão escuros como a iluminação do escritório em que estava, o escrivão da Delegacia Civil da cidade de Tradimento encarava uma pilha de um metro de papéis repletos de ocorrências que ele precisava documentar e arquivar até o fim da semana. "Nunca esperei que fosse assim" pensou Santiago quando lembranças da promoção do cargo surgiram em sua mente. Desde que era um simples policial, Berniote se destacava com seu raciocínio lógico, mas nem mesmo sua inteligência conseguia aguentar aquela rotina. Por dia, era no mínimo cem ocorrências que precisavam ser registradas no sistema, além de mais cem autos de prisões, sem contar os outros cem inquéritos policiais. As vezes Santiago desejava voltar ao seu posto mais simples, mesmo arriscando sua vida e tendo a chance de deixar sua filha sem um pai. Mas sabia muito bem que aquele cargo era o ideal para ele, e para sua família também.

O superior de Santiago, delegado Paulo, pediu uma atenção especial para um caso que ocorreu em um dos colégios mais renomados da região, Giovanni Boccaccio. As informações que Santiago recebeu foram que um funcionário do local tinha sido assassinado durante o horário de aula. O caso tinha acontecido há três semanas. A princípio, foi relatado que o indivíduo sofreu um ataque cardíaco. Porém, foi feito uma autópsia. "Um pouco atrasada" pensou Santiago ironicamente. Nessa pesquisa, descobriram que a vítima fora envenenada.

Quando Santiago terminou o relatório do caso, sentiu que poderia ir embora. Poderia chegar a tempo em casa para pelo menos ver sua esposa lendo uma história para sua filha. Mas foi quando o relógio marcava dez horas da noite, que ele ouviu alguém bater na sua porta três vezes:

- Entre - disse Santiago.

Um homem de estatura baixa, trajando um fardo policial, entrou rapidamente no escritório. Seus cabelos castanhos foram iluminados pela luz do corredor, assim como a maior parte da sala.

- Precisamos de sua ajuda. Agora - disse o policial.

- O que foi? Aconteceu alguma coisa? - perguntou Santiago

- Uma adolescente. Ela chegou aqui meio cabisbaixa. Perguntamos qual era o problema e ela disse que só iria falar com o escrivão e com o detetive da delegacia. Falamos que só iríamos chamá-los se ela explicasse o que aconteceu, mas ela se recusou. Está lá faz meia hora, sentada, com a mesma cara de merda.

- E por que vocês não ligam para os pais dela e resolvem logo isso? - Santiago resmungou e se encostou na cadeira.

- Primeiro que nós todos aqui estamos com a mesma paciência que a sua. Segundo que a garota não diz absolutamente nada. As únicas duas informações que recebemos dela foram que ela já tem dezoito anos e que estuda no Colégio Giovanni Boccaccio.

Santiago automaticamente voltou sua atenção para o policial. "De novo essa maldita escola", pensou. Enfim disse:

- Me leve até ela, logo.

Ambos saíram do escritório e começaram a percorrer os corredores da delegacia. Eles eram brancos como neve e estreitos demais para a altura de Santiago e a largura do policial. A maioria das salas da delegacia seguiam um padrão de tamanho, e isso deixava Santiago um pouco incomodado, considerando que cada setor deveria ter o espaço necessário de trabalho. Quando chegaram na recepcão, Santiago conseguiu ver a noite lá fora, atrás da porta de vidro. A única coisa que conseguia identificar eram alguns poucos carros que passavam pela avenida. Ao se aproximarem do balcão, o recepcionista disse:

- Ela pelo menos aceitou um copo de água, mas ainda não fala nada.

A garota era a única pessoa além dos funcionários que estava dentro da delegacia. Sentada na cadeira do lado da porta, a adolescente continuava com o rosto cabisbaixo que o policial descrevera anteriormente. "Ela é bonita" pensou Santiago. Lembrava das garotas que se apaixonou durante o seu tempo no ensino médio. E, curiosamente, ela também lembrava sua esposa. Todas tinham olhos claros, cabelos longos e o nariz e boca pequenos. Mas a diferença daquela garota, Santiago percebeu, é que sua pele era tão clara quanto seus olhos. Aquilo não era comum, a menina parecia assustada e com frio, apesar de estar vestindo uma blusa azul acinzentada extremamente grossa e uma calça jeans preta. Quando Santiago se aproximou, a garota ergueu a cabeça e limpou o batom roxo que estava borrado no seu rosto:

- Você é quem? - perguntou ela.

- Sou Santiago - respondeu - Escrivão dessa delegacia. O policial ali me informou que você estava me procurando. Qual é o problema?

- Eu posso dizer muitos problemas, muitos mesmo. Mas eu vou esperar o detetive.

Santiago olhou para o corredor e viu ele vazio:

- Ela já deve estar vindo. disse

- Ela?

- Sim. Ela.

- Bom, tanto faz.

- Enquanto isso, você pode pelo menos dizer qual é o seu nome?

- Laura - respondeu de um jeito triste.- Laura Carinli

"Carinli" pensou Santiago. Ele tinha certeza que já escreveu esse sobrenome várias vezes em alguns relatórios, já não fazia muito tempo. Antes mesmo de Santiago perguntar outra coisa, tanto ele quanto a garota se assustaram com a chegada de Magna Schaerrer. A detetive era alta, loira, bonita e naquele momento expressava um semblante completamente carrancudo. Se aproximou lentamente dos dois e disse pacientemente com seu sotaque alemão:

- Estou morrendo de sono e quando fico assim, minha paciência não existe. Vocês podem me dizer, por favor, qual o problema?

- Eu vim aqui fazer um depoimento - respondeu finalmente Laura.

- Por qual crime? - perguntou Santiago.

- Olha... mais do que eu posso contar. Mas isso depende do que vocês consideram crime ou não.

- Fale - insistiu Magna

- Não agora. Eu preciso que tudo seja gravado.

- Gravado? - Magna perguntou - Por que? Você não pode falar pra gente agora?

- Deixa eu explicar. Eu já acho difícil vocês acreditarem em tudo o que eu vou falar. Tudo isso tem quem ser registrado, em áudio e em vídeo.

- Por que você não pega o seu celular e grava você mesma, poupando o nosso tempo e o seu? - Magna já estava com a paciência no negativo.

- Eu não vou usar nada que possa conectar a internet. Tem que ser algo antigo, uma câmera antiga. Eu vim aqui pensando que as duas únicas pessoas que podem me ajudar são alguém que já resolveu trocentos crimes e outro que sabe registrar tudo. Vocês dois.

- Você está certa, nós dois somos essas pessoas. - disse Santiago. - Mas uma dúvida aqui: por que não um aparelho conectado a internet?

- Porque eles podem descobrir antes de isso ser divulgado. E se for o caso, eu sou uma pessoa morta.

- Eles quem? - perguntou Magna.

- Meus amigos. Ou melhor...Bom...Eu vou dizer tudo isso se vocês me ouvirem e pegarem uma câmera daquelas velhas. Por favor - a garota parecia desesperada - Você deve ter isso, né? - ela se dirigiu a Santiago.

- Devo ter. - respondeu - Eu realmente espero que isso aqui não seja uma piada, se não quem vai sofrer as consequências será você.

- Uma das coisas que eu mais desejei nesse mundo era que isso fosse uma piada. Infelizmente não é.

- Leve ela para a sala de interrogatório - Magna disse para o policial que ainda estava na recepção. - Quero sair daqui antes da meia-noite.

Enquanto o policial escoltava Laura, Santiago voltou para o seu escritório para procurar a sua câmera velha. Enquanto procurava, Magna apareceu atrás dele e perguntou:

- Por que estamos fazendo isso?

- A garota parecia mesmo precisar de ajuda - Santiago disse - Afinal, esse é o nosso trabalho, né?

Magna deu um pequeno suspiro e saiu do escritório

Santiago achou sua câmera na última gaveta do último armário de seu escritório. A bateria ainda estava cheia, Santiago nunca a tinha usado. Era uma profissional, especial para filmagens, que pertencia ao irmão dele. Mas quando a tecnologia evoluiu, seu irmão comprou uma nova e deu a velha para ele. Pegou o tripé pequeno da câmera, trancou seu escritório e foi direto para a sala de interrogatório.

Magna e Laura já estavam lá, cada uma olhando para um canto da sala. O cômodo era pequeno e quente. Santiago sabia que ficariam lá por no mínimo duas horas e suas esperanças de ir embora naquele dia já acabaram. Ele sentou-se do lado de Magna e colocou a câmera entre os dois, em cima da mesa, apontando direto para a garota, que estava do outro lado.

- Como vai ser? Vou ligar a câmera e você vai começar a falar? - perguntou Santiago.

- Praticamente Sim. - respondeu Laura - Se vocês tiverem alguma pergunta, só me interromper.

- Que assim seja. - Santiago ligou a câmera. Na tela, já começou a transmitir a imagem de uma garota perdida e assustada, olhando diretamente para a luz vermelha. Também aparecia o horário e a data daquele momento: dez e meia da noite do dia vinte de outubro de dois mil e vinte. Enfim ela começou a falar:

- Meu nome é Laura Carinli. tenho dezoito anos, moro na cidade de Tradimento, São Paulo, Brasil, estudo no Cólégio Giovanni Boccacio e nunca na minha vida tive alguém que me amou.

Um silêncio constrangedor pairou sobre a sala. "O que diabos ela quis dizer?" pensou Santiago.

- Quais crimes você veio relatar aqui, Laura? - perguntou Magna enquanto a câmera continuava a gravar.

- Posso dizer os que são realmente crimes, como difamação, roubo de dados, criação de perfis falsos, abuso psicológico, bullying e plágio. E também posso dizer coisas que não são crimes mas deveriam ser, como traição, falsidade e coisas do tipo.

- Continue sua história, então. - disse Santiago

- Tudo começou de fato quando eu terminei meu namoro com Erick Monta...

- Pera um pouquinho aí, garota. - interrompeu Magna - Eu não quero perder meu tempo com romancezinhos adolescentes. É melhor você ir direto ao ponto ou eu vou ligar para os seus pais.

- Eu sei que parece idiota - disse Laura - mas você tem que colocar esse voto de confiança em mim.

- Magna, eu concordo com ela. - disse Santiago - Alguns problemas sérios realmente começam assim.

Magna deu o suspiro mais paciente que Santiago já ouvira em sua vida e enfim disse:

- Prossiga.