Remanescentes

O ano é 2050. O planeta já não é mais como antes. Realmente, não sabemos de nada. Nada. Faz 33 anos desde que ocorreu o eclipse solar. Não houve previsão. Foi totalmente inesperado. Depois que acabou, a Terra...bem...ela mudou. Mudou para pior. Ela parece ter ficado mais árida e frequentemente saem noticiários de safras de grãos em queda, por causa de erosão. A fome tem se alastrado bastante. O planeta está bem mais quente. Agora, os países de primeiro mundo estão passando sede. Mas eu já imaginava o que iria acontecer: os “poderosos” ficariam de prontidão tomando para si o pouco para sobreviverem, deixando necessitados à própria sorte. Muitas espécies de animais também morreram. Me chamo Helena. Sou professora e bióloga na cidade de São Paulo, mais especificamente na Praia Grande. Trabalho com grupos de pessoas que sobreviveram a esta fase ruim do planeta. Provemos alimento, água, comida e armas. Sim, armas. O governo não nos impede mais de andar com elas. Numa conferência da ONU, o presidente disse que todo cuidado é pouco e não impedirá que os cidadãos de seu país se defendam do que vier. Aquilo surpreendeu a União Européia, que apelidara o Brasil de “nação bagunceira”. É um termo muito informal, eu sei. Mas a “fama” do país sempre foi grande lá fora. Eu e Jorge, que é um cientista, lideramos grupos que chamei de Remanescentes. Batizei assim porque os instruo sobre como preservar o pouco que resta para que possamos sobreviver. Somos 20. Há historiadores, cientistas, biólogos, ambientalistas. Exatamente o que as pessoas precisam nestes tempos tão difíceis. Somos nômades e precisamos nos deslocar de vez em quando. Jorge ainda não sabe dizer o motivo, mas dependendo da inclinação do Sol e do local em que estivermos, fica mais quente e muitos começam a passarmos mal. Daí temos de nos deslocar. Há regiões que ficaram desérticas e irreconhecíveis. O centro da cidade, por exemplo, em nada se parece com o de antes: a Rua 25 de março, que outrora foi de intenso comércio, agora só abriga prédios velhos e muita areia. A ventania nos obrigava a cobrir o rosto com um lenço, de vez em quando. Preciso lembrar que os Remanescentes não existiam apenas no Brasil, mas em outros países também. Há florestas que se tornaram desertos e, dependendo da região, animais selvagens acabavam cruzando o caminho das pessoas. O resultado você já deve saber.

Mas há quem ainda preferia ser guiado pelo orgulho e frieza. O novo ditador norte-coreano, Fa Zu, já mencionou que não estava interessado em ajudar ninguém e vai continuar com seu regime rígido como seus antecessores. Esse ditador fez algo que chocou totalmente a ONU e o resto do mundo: um grupo de pessoas tentou um ataque surpresa contra ele, mas seus agentes descobriram. Para a surpresa de quem o apoiava, ele não condenou o grupo à morte, mas planejou uma alternativa que, creio eu, fez com que outra tivesse sido bem melhor. Através de um telão, ele anunciou a inauguração do Jogo Sangrento, para ensinar aos rebeldes, segundo ele, qual era seu lugar. Dez participantes seriam escolhidos aleatoriamente, através de uma votação mensal, para participar do Jogo. Podiam ser homens, mulheres, adolescentes e até crianças. Todos eram treinados para se prepararem aos desafios. Cada um tinha que vencer armadilhas mortais. Fa Zu e seus seguidores assistiam por televisores, enquanto o resto da cidade assistia pelo telão. Ele disse que aquilo era para ensinarem a nunc amais se levantarem contra seu líder. Quem me contou tudo isso foi um rapaz de 24 anos que fugiu da China, uns tempos atrás. Não sei o que aconteceu com ele. A maioria não sobrevive sozinho. Eu pelo menos não conheci ninguém que tenha conseguido. Outro problema era quando anoitecia. Alguns do nosso grupo já foram picados por cobras e escorpiões. Não tínhamos remédios para este tipo de emergência. Mas, por incrível que pareça, alguns conseguiam sobreviver. Isso me fez pensar: será que a natureza estava reforçando o organismo de alguns para que se adaptassem ao novo meio?

Tínhamos contato através de sinais de fumaça. Sim, pode acreditar. Num determinado dia, o grupo quis passear na praia. Jorge não acreditou no que ouviu, mas eu lhe disse que um pouco de diversão não faz mal a ninguém, ainda mais nas circunstâncias horríveis que o mundo estava. Ele acabou cedendo e instruí ao grupo de que iríamos até uma, mas que ficassem todos atentos, pois não sabíamos o que poderia acontecer à noite no litoral. Os remanescentes evitavam lugares abertos e eu nunca ouvi falar do que acontecia quando um grupo andava por aí, depois que o sol se punha. Para nossa sorte, eu consegui contato com amigos distantes, através de sinal de fumaça. Por causa das alterações drásticas do clima, na maioria das vezes o dia era ensolarado, mas era comum dos sobreviventes terem um binóculo. Apesar de estarmos no litoral do Estado, o calor não era como antes. A cidade era mais deserta. Apesar de terrível, era comum os prédios desabarem por causa do acúmulo de areia que invadiu os centros urbanos. Enquanto andávamos, eu ergui meu binóculo e avistei o sinal de fumaça. Jorge também ergueu o seu para observar. Instruímos ao grupo que armássemos tendas bem ali, perto da praia mesmo. Ao amanhecer, continuaríamos o caminho. Durante a tarde, eu parei de ler o livro que tinha e saí da minha tenda. Queria observar o mar ao longe. Essa era outra incógnita: como o mar teria sobrevivido ao desequilíbrio ambiental e a dessalinização que os governantes faziam aos poucos, após a escassez de água?

Quando eu ia retornar, aconteceu o que eu menos queria: um dos que estava no nosso grupo correu para a cidade. Mas que droga! Pensei. Avisei ao Jorge mostrando-lhe o caminho em que a pessoa foi. Houve uma pequena agitação no grupo, mas eu consegui acalmar todos. Deixei Bárbara, outra bióloga, cuidando de todos e corri com Jorge pela cidade em ruínas. Com certeza, quem correu para lá foi um ou uma adolescente. Já tivemos problemas assim antes. Andamos devagar e olhamos para os lados. O vento soprava de modo ameno. Nem nos damos conta de que chegava o fim da tarde e comecei a me preocupar. Jorge, temos de encontrar ele ou ela o mais rápido possível, sussurrei. Eu sei! Respondeu meu amigo. Num determinado ponto, tive a impressão de ver uma sombra se movendo por um prédio espelhado. Parei no caminho e estreitei os olhos. Jorge também parou, um pouco depois de mim e andou para trás até ficar ao meu lado. Acompanhou meu olhar. O que foi? Indagou. Acho que vi alguma coisa lá, Respondi apontando para frente. Jorge olhou para onde apontei. Vamos encontrar quem correu e dar o fora daqui, antes que escureça! Disse meu parceiro de jornada. Olhei para ele e concordei com um aceno de cabeça. Seguimos em frente. Naquele momento, tínhamos a opção de ir para o lado esquerdo ou direito. Eu sugeri o esquerdo. Jorge aceitou sem questionar. Ficávamos atentos o tempo todo. Olhávamos para o céu mais atentamente porque já estava escurecendo. A intenção era sair antes que isso acontece, mas já não dava mais tempo. Pegue sua lanterna, disse Jorge para mim. Ele já estava com uma nas mãos. Tirei a minha do bolso. Andávamos mais devagar e direcionando a luz da lanterna para os lados. Num determinado local, cheio do que antes deve ter tido um comércio, Jorge tocou no meu braço e fez uma leve pressão. Olhei de lado para ele e depois para frente. Mais a frente, havia uma pessoa de costas para nós e encostada num prédio. Reconheci que era um dos nossos por causa das roupas. Nos aproximamos mais rapidamente. Assim que cheguei perto o suficiente, ergui a luz na pessoa. Ela virou-se para nós. Era uma adolescente de uns treze anos com os cabelos ondulados. Reconheci a jovem. Beatriz, por que saiu correndo? O que eu falei sobre lugares abertos? Sussurrei a ela. Beatriz deu um sorriso torto para mim e depois para Jorge. Me desculpem, é que sou curiosa. Mas foi por um bom motivo, respondeu ela. Em seguida, apontou para frente. Eu e Jorge acompanhamos o dedo dela, mas com as lanternas abaixadas. Eu abri um pouco a boca ficando apreensiva, enquanto meu parceiro endureceu o maxilar. Mais ao longe, embaixo de um poste cuja luz funcionava fracamente, tinha um...ser quadrúpede. O corpo era azulado e quase esquelético. Havia garras nas patas traseiras e dianteiras. Nas costas, algum tipo de espinhos. Desses que os dinossauros tinham. Ele estava comendo alguém. Logo, veio mais uma criatura. Helena, pegue a menina e vamos dar o fora daqui, Disse Jorge vagarosa e cautelosamente. Vamos, rebeldizinha, Disse eu em voz baixa e olhando para ela. Ah, me deixe ver mais um pouco! Implorou a menina para mim. Jorge olhou duramente para ela convencendo-a de que era melhor obedecer. Contudo, no mesmo instante em que ela se aproximou de mim, aconteceu o eco de um guizo. Jorge e eu olhamos para ela de olhos arregalados. Ah, é a pulseira que tenho da minha mãe, respondeu Beatriz erguendo o pulso esquerdo para nós. Jorge olhou para trás em seguida. Droga! Disse. Olhei para ele e depois para trás. As três criaturas estavam paradas e olhavam na nossa direção. Temos que correr! Falou Jorge para nós duas. Segurei na mão de Beatriz. Escutamos o eco de um respirar profundo e irregular, o qual fez os cabelos da minha nuca arrepiar. Começamos a correr. Beatriz segurava na minha mão com firmeza, às vezes ela olhava para trás, mas eu a fazia olhar para frente. Escutamos gritos agudos e anormais que com certeza vinham das criaturas. Houve sons de vidro quebrando do meu lado esquerdo. Olhei para o lado e me assustei quando vi a criatura correndo pelo vidro. Jorge! O que vamos fazer? Indaguei com a voz alta e ofegante. Tenho uma idéia! Respondeu meu parceiro. De forma extremamente habilidosa, ele direcionou a luz da lanterna, enquanto corria, na direção da criatura que corria pelo prédio espelhado, ao lado dele. Ela guinchou como se estivesse com dor e caiu. Entendi o ponto fraco delas e fiz o mesmo na outra. Aconteceu o mesmo. A nossa sorte é que estávamos perto de onde vínhamos. Assim que chegamos ali, eu, meu amigo e Beatriz apoiamos nossas mãos nos joelhos, até recuperarmos o fôlego. Depois de alguns segundos, virei-me para trás e vi as duas criaturas se aproximarem lentamente. Os olhos brilhavam na nossa direção enquanto rosnavam baixinho. Assim que apontei a lanterna para elas, correram para a escuridão. Assim que virei-me para frente, vi que Jorge acompanhou minha ação, enquanto Beatriz olhava para mim ansiosamente, como se esperasse alguma coisa. Vamos voltar, falei. Assim que retornamos ao grupo, que já estava de pé e nos observava, uma mulher se colocou mais a frente com os olhos arregalados. Assim que viu a adolescente, os olhos dela se encheram de lágrimas e correu até a menina abraçando-a com emoção. Beatriz, por que se afastou assim? Nunca mais faça isso de novo! Disse a mulher ainda abraçada a ela. Em seguida, ela nos agradeceu e juntou-se aos outros. Será que aquelas coisas irão voltar? Indaguei ao meu parceiro. Jorge observou o nosso grupo antes de responder. Eu aguardei pacientemente pela resposta dele. Depois de alguns segundos, ele voltou-se para mim. Pode ser que sim, respondeu meu amigo, mas agora sabemos como combatê-los, completou com um sorriso depois. Eu retribuí com outro e fomos para nossas tendas. Na manhã seguinte, notamos que o sinal de fumaça continuava lá. Dessa vez, deixamos que o grupo relaxasse um pouco na praia. Eu e Jorge não nos juntamos a eles, mas nos sentamos na praia para observar todo mundo. A brisa do mar e o som das ondas sempre me acalmaram. Eu fechava os olhos e respirava fundo. Era bom descansar a mente da realidade arrasadora em que vivíamos. Depois de algum tempo, eu e Jorge reunimos todos e partimos, ainda pela areia da praia, em direção ao outro grupo que nos dera sinal. Durante o caminho, eu refletia. Tínhamos que fazer alguma coisa para derrubar aquele governo autoritário que, influenciando outros países, fez com que eles pensassem igual. O Brasil, de certa forma, tinha voltado ao seu passado de ditadura. O trabalho será árduo. Tudo o que podemos ter agora é a esperança.

Marcão Ferreira
Enviado por Marcão Ferreira em 15/06/2019
Código do texto: T6673592
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