Uma grande herança

Virginiana, reconhecidamente organizada, Mariana tinha como seu principal sonho construir uma casa do seu jeito. Ela poderia ser pequena, mas com espaço suficiente para guardar e organizar as suas coisas. Não era acumuladora, mas percebia em muitos objetos, de forma muito clara, a sua utilidade ou não. Não se ligava em roupas, joias ou qualquer coisa que demonstrasse sofisticação mas, em contrapartida, preenchia suas gavetas e paredes com objetos de muito valor para ela. Absolutamente todos esses objetos – a olhos estranhos de nenhum valor - mereciam uma atenção tão grande que nem a secretária da casa tinha liberdade para neles colocar as mãos. Eram, para ela, relíquias, peças raras, histórias que não se apagaram, carinhos em formas diversas que mereciam toda a sua atenção.

Mulher prática, sempre com os pés no chão, certa vez foi convidada para participar de um livro. Sem muita habilidade, sem criatividade naquele dia, resolveu enumerar esses objetos, com um único objetivo: que, como um testamento, servisse para orientar, após a sua partida, quem com eles ficasse, para que tivesse zelo e, se não houvesse essa intenção, que pelo menos juntasse todos eles e os colocasse numa grande caixa de papelão no local onde suas cinzas fossem espargidas. Poderiam ser “tralhas”, mas eram as coisas mais valiosas que ela ganhou no decorrer da sua vida.

Mariana, ao iniciar a escrita, pensativa, teve a impressão de que tudo o que vivera de realmente maravilhoso até alí, ainda era lembrado de forma física, e não somente jogado como lembrança. Ela não queria que esse “tudo” se transformasse em nada, e assim foi feito o “testamento”, sutilmente dentro de um conto, com algumas exceções de destino:

- um conjunto de bacia, jarra, saboneteira, pratinho, porta escova de roupa e penico de porcelana que pertencia à sua avó materna, presenteado por seu avô quando do casamento do casal.

- um caixinha de acrílico adornada com um fio dourado e uma rosinha vermelha artificial, contendo uma rolha de champagne, marcada pela data “significativa” do seu casamento, em reunião íntima somente com o seu marido. Essa é a data que eles, embora não casados formalmente, consideravam como a data oficial.

- um rosário de cor nude pendurado no seu criado-mudo, que pertencia à sua avó materna que, ao apagar as luzes do quarto, ficava fosforescente, como se um anjo a estivesse velando.

- uma forma de pudim presenteada à sua mãe por sua irmã já falecida. Dela não ficou com nada, somente com as boas lembranças e, por essa razão, a forma era tão importante.

- uma caixinha de madeira, toda pintada e escrita com pequenos trechos de poesias de Mario Quintana, recebida de suas irmãs quando do lançamento do primeiro livro do qual participou como coautora.

- um ralador de queijo um tanto retorcido, recebido como herança de uma avó de coração.

- um quadro simples, com um lord e uma dama, arrematado com a moldura do primeiro quadro da casa da sua mãe, totalmente restaurado por ela.

- a máquina de datilografar de seu pai, de marca Underwood, que deveria ser entregue para sua sobrinha-neta mais velha.

- o cuco que seus pais receberam como presente de casamento de um casal de padrinhos, que deveria ser entregue para sua segunda sobrinha-neta.

- a máquina de costura de sua avó materna.

- cinco xícaras de cor rosa antigo, lapidadas, de um conjunto de “bole”.

- uma pequena pirâmide de pedra recebida de um amigo querido, com desejos de boa sorte.

- um mini livro com poemas de Fernando Pessoa recebido de uma tia querida.

- um marcador de páginas recebido de sua ex-cunhada.

- o cheiro de sua mãe guardado em um vidro de perfume francês.

- uma manta de lã natural herdada de seu tio mais próximo.

- uma escultura recebida pelas mãos de sua prima, deixada pelo autor, o seu pai.

- um quadro em ponto-cruz que ela levou um ano para finalizá-lo, contendo uma cristaleira linda recheada com louças antigas.

- uma xícara com pires de cor verde, com arabescos em alto relevo, herdada de sua avó.

E mais inúmeros bilhetinhos de pessoas queridas, um bilhete escrito dentro de um recorte de coração recebido do filho de uma amiga paulista e uma caneca adquirida em uma viagem inesquecível.

Ao finalizar a lista pensou: “como identificarão tudo isso, se alguns objetos não estão expostos?” Não seria melhor deixar tudo sem destinação e viver intensamente como vem vivendo nos últimos anos, de forma tão simples? Por que preocupar-se com os objetos que mais a deixam feliz se a felicidade está justamente no apreço e reconhecimento que tem por eles e pelas pessoas que os doaram?

Pensou, finalizou alí a digitação do conto, salvou o arquivo e foi dormir.

Publicado no livro PROSA NA VARANDA 5, lançado em 17/08/2019

Rosalva
Enviado por Rosalva em 20/08/2019
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