UM RECOMEÇO DIFERENTE

Inteligente, tímido, pouco dado a interagir, socialmente desajustado, embora não num sentido maléfico, preferia a solidão, e por tal motivo nunca se acertou com alguém, nunca compartilhou companhia afetuosa. Quando não trabalhava para seu sustento, enfurnava-se na casinhola simples, e, trancado em escritório abarrotado de livros, estudava, pesquisava o que se referisse ao que, supostamente, encontrava-se além da vida e deste mundo físico.

Quem nada soubesse de suas reais intenções, imaginaria ser religioso, espiritualista ou que quisesse se antecipar ao que o poderia espera-lo após a morte, mas nada disso fazia parte de seus objetivos. Interessava-se, mesmo, nos segredos da configuração do tempo e espaço, e na possibilidade de manipular esses elementos de construção da realidade. Para quê?

Queria voltar ao passado, não como o quase cinquentão que era. Queria reviver o que já experimentara, recomeçar, a partir da adolescência, resguardando o conteúdo da sua mente presente. Acreditava poder, assim, com informações privilegiadas e experiente, tomar decisões acertadas, posicionar-se na sociedade com bases sólidas, permitindo-lhe ter a independência com que sempre sonhou, invertendo o mecanismo de socialização. Queria que as pessoas o procurassem, sentissem vontade de conhecê-lo, desfrutar de sua presença e ouvi-lo, pois não tinha coragem de ir ao encontro delas, e muito menos de falar-lhes sobre o que pensava ou de que gostava. Temia ser rejeitado e zombado.

Certo dia voltou do sebo com mini alfarrábio, capa dura dourada e cadeado numérico. O segredo para a abertura foi revelado, aos sussurros, por um velho que lá encontrou, e que lhe disse conter o livro um segredo maravilhoso. Enquanto, cético, tentava abri-lo, perdeu de vista o idoso. Em casa, viu que as páginas amarelecidas exibiam hieróglifos, e tentou decifrá-los como pôde. Atravessou a noite no tentame, sonolento ao extremo.

Quando acordou, com a luz do sol nos olhos, lembrou que antes de cair desmaiado no sofá, repetira, exaustivamente, série de mantras que traduzira, cujo poder de realização parecia ser tremendo. Ao levantar sentiu algo diferente. O ambiente, modificado, não lhe era estranho. Espantou-se! Estava na casa de seus pais. Olhou-se no primeiro espelho que achou, e assustou-se mais ainda. Estava jovem! Vinte anos ou menos, talvez. Beleza!

Nem se preocupou com detalhes, como rever entes queridos, mas, com tanta coisa pra fazer e realizar, nem via o tempo passar. Registrou canções, que iriam se tornar famosas, como suas, antes que os reais autores as elaborassem, arranjou um jeito de investir no que sabia que iria virar moda ou ser bem absorvido pelo mercado. Queria rechear o bolso rápido.

Porém, tudo que fazia parecia dar errado. Canções, inventos, comidas, informações de todo tipo eram recebidas com indiferença, e nada se encaminhava. Inconformado, viu um sujeito apresentar um produto, pouco tempo depois que ele próprio o havia feito, sem sucesso. O outro, não só foi vitorioso com sua iniciativa, mas também foi aclamado como inovador.

Foi desesperador ver aquilo ocorrer. De nada adiantara o milagre do retorno, e agora o malogro de uma vida insossa, solitária, repetir-se-ia. Sentiu um mal estar, as pernas bambearem, recostou-se numa poltrona e chorou, até não mais poder.

Sentiu lhe sacudirem, e ao abrir os olhos, encarou o olhar assustado de uma colega de serviço, a quem achava linda e distante, chamando-o, insistentemente. Olhou em redor e logo percebeu que estava de volta ao presente inicial, e que sonhara demais. Lágrimas rolaram, mas a moça sentou-se ao seu lado, enxugava-as com a manga da malha e, com carinho, abraçava-o, perguntando por que não aparecera no serviço nos últimos dois dias. No momento em que ele pretendeu se explicar, ela tascou-lhe um beijo, confessando estar aliviada em encontrá-lo sadio, pois não podia mais esconder o quanto lhe queria bem. Outro espanto!

Acertaram-se e viveram contentes, em comunhão. As sombras se dissiparam, junto com o pó acumulado do escritório bagunçado, quando ela chegou, iluminando sua casa e vida.

Lembrei-me de quando, pateticamente, tentei contar uma piada a um grupo de pessoas, em certa ocasião, e, ao final, constrangidos, alguns ensaiavam uma risadinha amarela, frouxa. Horas após, em meio ao mesmo grupo, um elemento recém chegado contou a mesma piada, sem tirar nem por, e as risadas perduraram por minutos, com gente chorando de tanto rir.

Assim é a vida! Como dizia Tim Maia, é preciso entender que um nasce pra sofrer, enquanto um outro ri. Mas no fim tudo dá certo, né? Como muitos sempre repetem, se não deu certo ainda é porque não chegou ao fim. Se ciò non è vero, almeno è ben detto.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 06/10/2019
Código do texto: T6762809
Classificação de conteúdo: seguro