Carteira assinada

O primeiro emprego que tive de carteira assinada foi num hotel quatro estrelas, o melhor da cidade até então. No primeiro dia de trabalho, fiquei deslumbrada com o requinte do ambiente. Todas as salas e salões eram climatizados; o chão de madeira de lei sobre o piso de concreto brilhava tanto que poderia servir de espelho; a decoração era inteligente, nada dos exageros que via em casa. Isso faz muito tempo. Minha função era receber e passar ligação no PABX e sorrir para os hóspedes que ao balcão da recepção se dirigissem _ como estava recente, não era segura para dar informações, os colegas mais antigos é que cuidavam disso.

Os funcionários e chefes pareciam muito bem educados e gentis. Um mês depois, o quadro pintado do ambiente continuava o mesmo, mas alguns chefes é que se tinham mostrado outros. Quando se aborreciam com os funcionários, não mediam as palavras e intimidavam os barnabés privados com promessas descabidas _ eram grosseiros e falavam palavrões. Quanto mais cara de bobo tivesse o empregado, mais era humilhado.

Uma das reuniões para resolver questões pendentes nunca mais me saiu da memória. Nessa reunião, o mandachuva _ este falava meio enrolado o português, era enorme e não sabíamos, ao certo, sua verdadeira nacionalidade _ chegou a fazer ameaças inacreditáveis:

_ Si aliguén aqui dzissêr lá fuera lo que se passa nuesta ronion, el promieto que mandzo capar lo surreito i, se fuer murrê, irá coniecier quin és lo Mendzonza. E fiquen vociês sabiendzo quiele tene mar dze viente centíemetrós.

Ameaçou literalmente estuprar, ele mesmo, as mulheres linguarudas. Eu, aos dezoito anos, ainda encoberta pelo véu da inocência, fiquei apavorada. Não sabia discernir se aquilo era piada ou se o homem era um nazista remanescente, ou somente um desequilibrado que acreditava na cega obediência de seus subordinados via opressão. O curioso foi que percebi algumas colegas, mais idosas, assanhadas para conhecer o Mendzonza, o que, segundo as mesmas, não seria um castigo tão mau.

Lembro que certa ocasião sumiu dinheiro do cofre que ficava na saleta junto à recepção. Ainda bem que eu não tinha acesso à chave. Na verdade, até aquele episódio, nem sabia que havia por ali um cofre. Poupada fui do incômodo da inquirição. Mas sei que dois ou três colegas foram julgados responsáveis pela evaporação de alguns cruzeiros _ nem se pensava em real _, sendo de imediato lançados na fogueira da demissão sumária por justa causa. Alguns funcionários, cansados das pressões _ estas aumentaram após o caso do cofre _, saíram. Assim, via-me muitas vezes sozinha na recepção.

Numa dessas vezes, o gerente, já por volta das dezoito horas, mandou-me acender as luzes do pátio interno, na verdade uma ampla e segura garagem, onde ele agasalhava e exibia seu carrinho luxuoso _ comecei a trabalhar sem experiência e até aquele momento só sabia mexer no PABX, escutar conversa alheia e sorrir para os hóspedes _, entrei numa outra sala onde ficavam os interruptores e danei a puxar um para cá, outro para lá, ora apagando indevidamente as luzes de um setor, ora acendendo o que deveria ficar no escuro, ora apagando tudo; só não consegui acender as luzes do pátio interno. O homem, irritadíssimo, ligou para o quarto do meu chefe-imediato:

_ Herculánó, come quê mê dzerras la reciepcion una menina que non sabie fassê nata? Dzerra jhá aqui!

Fiquei pedindo a Deus que seu Herculano descesse logo, pois não aguentava mais aquele homem soberbo me olhando como se eu fosse um quadrúpede tentando andar sobre dois pés apenas. Nesse momento senti tanta inveja de meus colegas que já haviam abandonado o navio!

Como se não bastassem esses inconvenientes, lá para o sul do país inventaram um tal horário de verão, que a eles beneficiava muitíssimo, porém, para nós, do norte, complicava a vida. Algumas empresas aqui o adotavam, por motivos que ignorava.

Morava em um bairro distante do hotel e, com esse novo horário, teria de sair de casa às cinco da manhã para estar no trabalho às seis, ou seja, às sete horas, meu horário regular na escala para aquele período. Num dia chuvoso, eu e minha vizinha Rosa _ era ela faxineira no hotel e havia ganhado uma bicicleta como prêmio por ter sido eleita a funcionária padrão da empresa naquele ano _ saímos às cinco e meia, ainda estava escuro, e, como a chuva caíra havia poucos minutos, o asfalto estava molhado e escorregadio, e nós, por causa da hora, descíamos a ladeira na disparada _ eu pedalando e ela na garupa, porque era mais franzina, quase uma anã.

Já findando a ladeira, perdi o domínio do veículo e aterrissamos violentamente de costas no asfalto, ficando ambas entaladas, encurvadas e sem fôlego. Com muito esforço, consegui me erguer e meu pulmão, pouco a pouco, voltava a receber o gás vital. Fui socorrer a colega como podia:

_ Ai, meu Deus... me ajude! _ clamava eu, ainda meio sufocada.

_ Ai... ai... ai... minha Nossa Senhora! _ gemia a outra.

_ Calma... calma, Rosa... fica calma e respira devagar... devagar até pegar impulso... aí tu respiras fundo...

O choque foi terrível. Mesmo assim, dei graças a Deus, pois os males poderiam ter sido piores _ para mim principalmente, que até hoje não sei nadar _, já que, por pouco, não caímos direto num canal profundo que beirava a rua.

Logo que conseguimos ajeitar a coluna, voltando a ser homo erectus do século XX e respirar normalmente, ainda tremendo de nervoso, Rosa tomou a decisão, para ela, mais prudente.

_ Vamos voltar, Rosa _ dizia eu, já resoluta.

_ Negativo! vamo prosseguir! Não quero que me descontem o salário.

Não tive coragem de retornar, a pé, sozinha para casa _ era muito perigoso aquele trecho. Ao chegarmos ao hotel, nossos colegas, compadecidos, providenciaram um mertiolate e nos deram para fazer curativo. Manhosa como era, a cada pingada do líquido vermelho _ não havia incolor no local _ chorava pra danar. Em seguida, fui ver Rosa se pintando com o remédio e estranhei a frieza com que ela suportava a dor.

_ Eras, Rosa, tu não sentes dor, não?

_ Claro, Mirian, num su bicho!

_ E por que tu nem gemes?

_ Por acaso, vai deixar de doer se eu mê puser a chorar que nem tu?

_ Pelo menos passa mais rápido, eu acho!

Desse modo, nos tornamos as vanguardistas dos caras-pintadas que criaram fama na época do impeachment do Collor. Precisávamos apenas de paciência para explicar aos demais colegas e aos hóspedes curiosos o que havia acontecido. Mormente eu que fiquei como uma figura bizarra postada junto ao balcão, com pontos proeminentes no nariz, queixo, testa e na parte superior da face esquerda. Mesmo assim não deixava de sorrir para ninguém, nem para os chefes azedos. Dias depois, superamos a fatalidade.

Mas paciência tem limites, não é? Pois é! Fui ficando enfadada daquele marasmo. Passei a deixar meu posto em hora de serviço, quando deveria estar lá, à semelhança de cão fiel, latindo a intervalos regulares, e ficava vagando ao redor do prédio, tão necessitada que estava de mobilidade. Dia de Domingo, então, era o pior dia! O hotel virava um templo budista. Ouvia-se até o ruído de uma osga (lagartixa) engolindo mosquito. Mais um pouco e eu completaria os três meses de experiência.

Como havia falta de pessoal na recepção e eu tinha me mostrado assídua e pontual, além de demonstrar alguma capacidade mental ao aprender coisas novas _ achar, nas horas mais impróprias, agulha e absorvente para bem atender as madames desprevenidas; pôr cartão de crédito no trilho e passar rapidamente o carrinho em alta velocidade sem engatá-lo; fechar a conta de clientes; dizer good morning, yes para os gringos _ fui considerada apta para que meu contrato vigorasse por tempo indeterminado.

Todavia, eu, ao contrário, não estava indeterminada. Assim que completei os três meses, pedi a conta e sumi. Como, logo em seguida, perdi minha carteira de trabalho, nem posso colocar essa primeira experiência profissional de carteira assinada no meu currículo. Por falta de provas, nunca recebi meu FGTS referente aos três meses de desaforo que ali curti à beça.

SANTOS, J. S. Boa Esperança (crônicas e contos). 1ed. Rio de Janeiro: CBJE, 2002.