A expectativa da chegada

Durante a semana que antecede o regresso dos que estão por vir, a alegria é contagiante com o preparo de doces, quitutes, licores e biscoitos de goma, de milho e de nata. Estes últimos eram especiais; a nata, reservada durante meses, era cuidadosamente retirada do leite após fervura e resfriamento. Os biscoitos eram crocantes, explodiam no céu da boca e derretiam, rapidamente, nos obrigando a deglutir contra nossa vontade. “Dos deuses”, diziam os que tiveram oportunidade de experimentar.

Os biscoitos e bolos eram assados em forno de lenha com cúpula arredondada, tipo carvoeiro, que lhes imprimia um quê a mais. O cheiro que emanava do seu interior se espalhava no ar preenchendo todos os espaços da casa e ativando todos os sentidos - VISÃO: como era prazeroso ver como tudo era feito, desde a mistura da massa com colher de pau em uma grande tigela de louça, até a manipulação dos biscoitos em diversos formatos: coração, meia lua, bolinhas e tantos outros - OLFATO: como não se abalar com o cheiro dos ingredientes durante o preparo ou ainda quentes recém saídos do forno - PALADAR: como não surtar com aquela textura derretendo na boca nos permitindo uma sensação de prazer indescritível - AUDIÇÃO: era estimulante escutar o corre-corre das pessoas na cozinha e o baticum no fundo das assadeiras pipocando os biscoitos prontos para serem degustados e, por fim - TATO: como não ter prazer em segurar nas mãos aquelas delícias feitas em momento tão especial.

Aos meninos, era designado participar da faxina geral da casa e polimento do piso com escovão cuja base em ferro fundido era empurrada para cima e para baixo por um longo cabo de madeira. Tarefa cansativa, mas feita com prazer. Afinal o clima era festivo e os que chegariam eram esperados com grande ansiedade. A casa era muito grande e tinha lá seu charme. Cada cômodo era ocupado por um tipo de ladrilho e o forro construído com tiras de madeira estrategicamente espaçadas para melhorar a ventilação nos meses quentes. O bom mesmo era que por esses espaços passava uma fina névoa úmida durante as noites chuvosas de verão; um deleite para o sono após o mormaço do dia ensolarado. No inverso chuvoso, por outro lado, a névoa pesada e fria atravessava os espaços por entre as treliças acentuando o frio e gerando grande desconforto ao sono.

A fabricação de licores era outra atividade sempre presente e a preparação era sempre demorada levando vários dias até ficar no ponto. O licor de jenipapo era o mais comum e durante seu preparo os frutos cortados eram deixados por um bom tempo na infusão em álcool. Depois desse período a calda grossa que se formava era misturada a açúcar e água para fervura em fogão de carvão. Após a fervura despejava-se o álcool à calda para só então coar a bebida em um grande funil cheio de algodão. A filtração demorava dias e não poderia haver intercorrências pois a filtragem lenta e cheirosa tinha que acontecer no seu tempo. O cheiro adocicado se espalhava pela varanda, passava pelo quintal, atravessava as goiabeiras, os pés de fruta conde e se dispersava por toda a área no entorno da casa atraindo abelhas e beija-flores que se aproximavam desconfiados na sua dança peculiar e veloz.

Na véspera a noite era longa e já no alvorecer todos estavam de pé com a ansiedade em alto grau. No café da manhã a alegria já era visível e às 16:00, todos já estavam a postos na calçada de um grande prédio amarelo onde a marinete estacionava. Com ela viria o motivo dos biscoitos, dos bolos, dos licores, da limpeza da casa, das tiradas espirituosas, das risadas, da ausência de brigas ou de discussões, da alegria, enfim. 17:00 h, 18:00 h e nada de marinete. Anoitece e a marinete não chega.

Os adultos começam a se preocupar e já pensam em voltar para casa, não dava para permanecer no grande prédio amarelo pois a sombra fresca foi substituída pelo vento frio da entrada da noite. Mal a retirada tem início se escuta alguém aos brados – a marinete está chegando!! -. As faces se acalmam, o riso volta aos rostos e se consegue ver a marinete com sua luz fraca, envolta em poeira e com os passageiros em pé desejosos por se livrar daquela longa e cansativa jornada.

A marinete estaciona e logo os abraços se iniciam, os olhos marejam em profusão e acontece uma explosão de alegria se dissipando no ar. Um pouco distante, aguardando os abraços e afagos que estão prestes a chegar, as crianças já sentem saudade da expectativa da chegada.

FCintra
Enviado por FCintra em 12/11/2019
Reeditado em 02/05/2023
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