A Fome na BR 316

O ônibus deslizava pela planície extensa na BR 316. Passaram por Picos e contavam o tempo, ansiosos, para chegar em Teresina. De lá, todo o Maranhão e, depois, o Pará, até Belém. Embarcaram em Salvador. Ao redor, a caatinga crestada. “Só pau pelado”, comentou uma passageira, espantada com aquela desolação. Mesmo assim, aqui ou ali, um bode esguio insinuava-se na vegetação espinhosa, vivaz, aventurando alimento.

Quase meio-dia. Era dezembro, o sol a pino. As plantas, frágeis, não projetavam nenhuma sombra. A interminável faixa de asfalto tremulava logo adiante. O calor produzia efeitos irreais no horizonte incandescente. Lá atrás, um passageiro saiu do banheiro. Avançou dois passos e desabou no corredor.

– O homem desmaiou – Gritaram algumas mulheres, espantadas. Braços masculinos reconduziram o sujeito à poltrona. Voltava a si, gaguejava, evasivo, muito pálido.

– Temos que parar num hospital – alertaram.

O ônibus mergulhou manso nas ruas silenciosas de Valença do Piauí. Procuravam um posto médico. Moradores diligentes explicavam, hospitaleiros, o rumo a seguir.

Enquanto o sujeito recebia atendimento, alguns passageiros zanzavam em volta, exercitavam as pernas. Árvores frondosas no canteiro central da rua calçada que abrigava o posto. Àquela hora, o silêncio era impressionante. Ouvia-se até o zumbido dos insetos. Numa casa, uma adolescente e a empregada esconderam-se, acanhadas, quando um dos viajantes passou por ali na caminhada curta.

– Podemos seguir viagem – anunciou alguém.

O sujeito desmaiou porque estava com fome. Foi o que diagnosticaram no posto de saúde. Aquilo impressionou os viajantes: muita gente estendeu trocados para o cidadão, que enfrentava aquela jornada de 38 horas sem dinheiro para bancar refeição nos restaurantes modestos à beira da estrada.

– Também já passei fome. Sei como é.

Era o motorista. Impressionado, tentava entabular conversa com a passageira de cabelos oxigenados que, às vezes, deixava a poltrona no corredor e sentava nos degraus da cabine para apreciar a paisagem agreste. Ele falava e espichava os olhos gulosos para as pernas curtas e bem torneadas.

– Fui tentar a vida em São Paulo. Fiquei desempregado. Quando era meio-dia, andando pelas ruas, via todo mundo comendo nos restaurantes. E eu não tinha dinheiro para almoçar. Era difícil...

Filosofava sobre a fome. Discurso fluido, mas o vocabulário curto atravancava a prosa, que emperrava. Garimpava imagens que traduzissem aquela sensação amarga, irreprimível. Avançava pelas ruas e avenidas – com calçadas largas, bem-cuidadas – e, nas esquinas, enxergava restaurantes, bares e padarias com varandas espaçosas aonde espalhavam-se mesas. Às vezes, os fregueses aboletavam-se em mesas numa faixa da calçada.

- Sabe o que é ver todo mundo comendo e você não poder comer?

Nas churrascarias, aqueles espetos atulhados, lustrosos, fumegantes, causando vertigem quando espichava o olhar. Sempre via os garçons, solenes, oferecendo-os à clientela saciada.

Uns rejeitavam com um gesto de enfado; outros, entorpecidos, recusavam, molemente. E ele circulando ali, com aquela fome primitiva, irascível, arrebatadora, irrevogável.

Nem com aqueles pratos-feitos vendidos nos botequins flertava: ali comiam os trabalhadores, com uma voracidade que lhe era familiar. Às vezes, se permitiam bebericar uma cerveja.

Mesmo as padarias eram um martírio. Os produtos, expostos sem pudor nas vitrines, eram uma afronta ao seu olhar ávido, famélico. E tinha gente que largava sobras, às vezes mal beliscavam o pedido, esquecido no prato no meio de uma conversa banal. E ele circulando, catando emprego naquela selva de pedra, inextrincável, de concreto acinzentado, sob o céu cinza. “A fome, pra mim, é cinza”, definiu, enquanto manobrava o volante para tornar a curva mais suave.

Lá mesmo virou chofer:

– Depois vim de volta pro Piauí. Sou filho daqui – explicou.

Agora fazia refeições nos restaurantes à margem das estradas, dormia pelos alojamentos nas garagens da empresa, voltava para casa toda semana. O duro eram as jornadas intermináveis.

– Peguei o ônibus lá em Petrolina. Vou deixar em Teresina. Mas já soube que, de lá, vou direto pra Parnaíba, levando outro ônibus. Nem vou parar para descansar – informou. “Cansativo”, ponderou ela.

– Mas eu vou sem reclamar. Eu sou lá maluco de perder o emprego e voltar a passar fome? Indagou, enquanto manobrava o veículo no acanhado ponto de apoio de Estaca Zero. Iam almoçar ali.

O passageiro que desmaiou, lívido, desceu com ar de alívio. Ali ia matar a fome. Logo atrás foi o motorista, impaciente, apressado para espantar o fantasma que acossava o passageiro desgraçado que ia à sua frente.