Casa comigo? - Um amor diferente

Baseado em fatos reais...

“Feche sua mente...” É a última coisa que me lembro de ouvir. “Respire fundo. Deixe o ar entrar e sair de seu corpo. Você agora está se sentindo adormecido... Deixe seu corpo relaxar... Deixe-se entrar na escuridão...” Meu corpo não respondia aos meus comandos. Eu adormecia profundamente. Fui sentindo minha alma se desprender deste mundo, mas permanecer aqui, mergulhando num profundo breu. Um misto de angustia, tristeza, desolação. Aos poucos, fui percebendo o que me rodeava. Do mais puro preto, aos poucos foi se clareando, e fui vendo que estava no mesmo lugar, uma sala, vazia, somente eu ali, sentado, observando aquela escuridão azulada e esfumaçada. Vozes ecoavam como sussurros. Inaudíveis. Muitas delas falavam ao mesmo tempo. Algumas gemiam friamente. Outras riam em desespero. Naquele lugar frio, não era possível sentir nada além de horror.

Me levantei devagar. Minhas pernas cambalearam por um momento. Meu peso era diferente naquela dimensão. Parecia mais leve. Porém, ainda não me recordava o que exatamente eu fazia ali. Fui me distanciando da cadeira a qual estava sentado. Fui caminhando, quase levitando até a cozinha. Não havia ninguém. As vozes continuavam a sussurrar. Até que um gemido fino, frio e agonizante me fez parar e olhar para trás. Não havia ninguém. Mas vinha dos quartos. Pensei duas vezes se poderia ir ou não até lá. Os pelos dos braços já estavam arrepiados. Novamente o gemido, um pouco mais forte, ecoou pela sala. Meus passos se apressaram um pouco até o corredor que levava aos quartos. Eram três quartos. Todos com as portas fechadas. O corredor era mais escuro que o ambiente anterior. Procurei pelo interruptor na parede, apertei-o mais não havia energia.

Lembro-me de perguntar “Tem alguém aí?”. A resposta foi um profundo silêncio. Tudo ficou em silêncio. Sem gemidos, sem sussurros, sem qualquer barulho. Continuei a caminhar pelo corredor até o primeiro quarto. Coloquei a mão na maçaneta da porta e puxei para abrir. A porta estrava trancada. Fui até o segundo quarto. Uma pequena brisa fria passou pelo corredor, fez minha nuca arrepiar. Segurei a maçaneta da porta do segundo quarto e puxei. Também trancada. Naquele silêncio absoluto, era quase possível ouvir meus pensamentos, bagunçados, pensando várias coisas ao mesmo tempo. Fui até a terceira porta. A única que estava entreaberta. Uma forte luz branca vinha lá de dentro. Me aproximei, posicionei a mão na maçaneta e quando empurrei a porta para abrir, diante de mim, no corredor, se materializou a imagem translúcida e opaca de uma mulher alta, com cabelos negros, pálida, olhos fundos e negros, lábios vermelhos, usava um vestido branco que ia até os pés. Ela me olhava com ódio.

Eu saltei pra trás. Ela abriu a boca e gritou. Um grito frio, triste. Suas mãos ossudas se levantaram na minha direção, como quem queria me agarrar. Um novo grito e ela se aproximou de mim rapidamente. Suas mãos frias rodearam meu pescoço e me levantou, meus pés não tocavam o chão. Seu rosto se aproximou do meu. Sua boca se transformou em presas afiadas e se aproximavam do meu pescoço. Eu comecei a me debater sem ar. Tentei afastá-la de mim, em vão. Minhas mãos passavam por dentro dela. Ela soltou novamente um grito aterrorizante. Ouvi então uma voz: “Você não pertence a este mundo. Você não está morto.” Se eu não estava morto, então poderia lutar para sobreviver. A falta de ar começava a me desfalecer. Com todas as forças que consegui juntar, gritei e consegui jogá-la para longe. Eu caí no momento em que ela desapareceu. Tudo a minha volta começou a tremer. Todas as portas dos quartos se abriram. Todas tinham uma luz branca muito intensa. Entrei na porta do terceiro quarto e me deparei com várias pessoas murmurando alguma coisa, rodeando-me, como se quisessem me possuir. Elas vinham em minha direção, estendiam a mão para me pegar. A porta foi ficando distante. As almas penadas começaram a me cercar. Não tinha pra onde correr. Todas elas sedentas de algo. Os rostos desfigurados, a boca dava lugar a presas. As mãos eram só ossos. As roupas que usavam eram podres. O cheiro naquele lugar começou a ficar podre. A luz branca daquele lugar agora começava a se apagar. Eu não sabia o que fazer. Uma das mãos passou em meu braço, me arranhando. Gritei desesperado. Minha voz se projetou no nada e ecoou. Os sussurros começaram mais fortes. Aquelas almas se amontoaram por cima de mim tentando a todo custo me tirar algo. Então gritei novamente e tudo desapareceu.

Eu estava novamente numa sala preta, sozinho. Nesta sala, ouvi novamente aquela voz me lembrando o que eu deveria fazer: “Não esqueça da sua busca. Procure por aquilo que te fez feliz. Não se deixe enganar. Você está vivo. Você tem poder sobre tudo neste lugar. Procure pelo quê te fez feliz...” A voz aos poucos foi se distanciando, me deixando no silêncio profundo. “Procure pelo quê te fez feliz...” Aquilo não fazia sentido. Eu não sabia o que era felicidade há muito tempo. Não sabia o que procurar. Sozinho, naquela escuridão, gritei “Procurar pelo quê?”. Minha voz ecoou e retornou como resposta a mesma pergunta que fiz. Mas ficar parado ali não me ajudaria muito. Comecei a andar. De um lado para outro. Tentando enxergar algo. Mas não conseguia tocar em nada, não enxergava nada.

À minha frente, muito longe, consegui ver uma luz. Comecei a correr em sua direção. A luz contornou a silhueta de uma porta. Fui chegando mais perto. A porta era toda desenhada, de madeira bruta, pintada de preto. A luz estava acima dela, mostrando tudo ao redor. Uma parede preta, com alguns detalhes em dourado. Próximo da porta, havia desenhos abstratos, como se fosse uma moldura onde a porta estava encaixada. Desenhos que não faziam o menor sentido. O único que me identifiquei foi a figura de um sol em dourado, o que poderia indicar que aquela porta me levaria à felicidade que me falavam para procurar. Mas a porta não tinha nenhuma maçaneta para abrir. Era lisa, e parecia estar grudada à parede.

“Não se deixe enganar...” Foi o que ouvi. Aquilo não era uma porta. Não tinha como aquilo ser uma porta. Estendi a mão diante daquilo, meus dedos tocaram aquela parede gelada, e aos poucos o que parecia ser uma porta foi se tornando um espelho. A partir do meio, foi se revelando o que era para ser encontrado.

A luz que estava na parede contrastou o preto no reflexo, delimitando sinuosamente um corpo masculino, definido, nu, que me olhava espantado. Eu encarei aquele olhar também espantado. Meu reflexo moveu os lábios dizendo algo que não consegui ouvir. Toquei novamente o espelho e foi como tocar água, como se não fosse um espelho físico, mas algo que eu pudesse passar por ele. E passei. Imediatamente, senti um peso sair de minhas costas. O meu reflexo me recebeu sorrindo. Me abraçou, senti novamente o calor de um corpo sobre o meu. Aquilo me fez sentir novamente o que não sentia há muito tempo. Minhas mãos puderam tocar aquele corpo... O meu corpo... Abraçando-o como sempre quis ser abraçado. O afeto que pude sentir naquele abraço fez me renovar as esperanças.

Enquanto nos abraçávamos, o calor foi ficando mais intenso. Tão intenso que começou a queimar. Meu reflexo ia se derretendo e se entranhando em mim. Me apertava muito forte. Enfiava os dedos em minhas costas e ia literalmente entrando em mim. A dor foi insuportável. Gritei. Me joguei no chão. E só o que consegui fazer foi deixar com que aquilo cada vez mais fizesse parte de mim.

Ao final, estava jogado ao chão. Os olhos cheios d’água. Ofegante. Mas por dentro, me senti mais eu, mais feliz, mais amado. Como se estivesse renovado.

Senti algo me puxar pela cintura. Comecei a levitar e a subir... Subir... Subir... Tudo foi ficando pequeno lá em baixo. A escuridão novamente me envolvendo. E subindo...

Em meio a palavras sussurradas em meus ouvidos, ele, com a mão em minha cabeça, implorava para que eu desse algum sinal de vida. Se debruçava sobre meu corpo cheio de tubos e chorava pedindo para não ir embora. Parecia que seu lado espiritual sentia que eu não estava longe e que poderia ouvi-lo, que poderia senti-lo, e que de certa forma, poderia me ajudar a sair daquela escuridão apenas com sua voz me dizendo “você está vivo”.

De repente, ele parou de chorar, ergueu a cabeça, limpou os olhos, e encarou a janela do quarto do hospital. Apertou minha mão, fechou os olhos, e senti que o que me puxava não era ele... E sim, uma criatura que estava pronta para agarrar meu pescoço com aquelas mãos esqueléticas, o corpo encoberto com um capuz preto. A mão estendida na minha direção e eu me aproximando cada vez mais. A única coisa que consegui dizer foi....

– Me... perdoe...

Ele abriu os olhos, olhou para mim e sorriu. Mas seu sorriso aos poucos foi indo embora. Uma lágrima rolou de seu olho azul brilhante. Ele viu meus olhos perder a vida aos poucos, viu meus olhos olhar o nada, viu a luz se apagar.

Ele gritou. Se levantou da cadeira empurrando-a longe. Segurou com delicadeza o rosto daquele corpo na maca e olhou profundamente nos olhos sem vida. Beijou-o demoradamente.

– Me desculpe... Me desculpe por tudo... Eu te amo.

Os bipes chamaram a atenção dos enfermeiros que logo apareceram no quarto e o afastaram. Tentaram de todas as formas trazê-lo de volta, mas foi em vão.

Vinte e quatro horas após o salto da janela para a morte, ela o acolheu. Vinte e quatro anos se sustentando em barrancos, lutando para ser feliz, e em um descuido, tudo se desfez.

A imunidade baixa e a descoberta tardia, fez com que o HIV se tornasse AIDS e uma pneumonia o matou. Na maca do hospital, estava quase irreconhecível, careca, magro, e sem ninguém, pois todos o abandonaram para morrer em casa. Exceto eu, que também estava internado fazendo meu tratamento, e que acompanhei sua luta, ajudei nas necessidades, o tratei como meu irmão. E acabei me apaixonando. E fiz de tudo para que ele sobrevivesse. Mas no fim... Fico com as lembranças boas.

– Nossa, Carlos... E você sabe o nome dele?

Abri um sorriso de canto de boca me lembrando do momento que ele conseguiu me dizer seu nome e de como aquele momento me fez ascender a esperança de fazê-lo ter esperança.

– Sim... – disse sorrindo com uma lágrima nos olhos. – Seu nome vai ficar eternamente no meu peito.

– Você realmente o amava?

– Sim... O amor mais puro e diferente que já tive o prazer de sentir.

– Ele foi muito especial pra você...

– Acredito que eu fui especial pra ele. E ele vai estar eternamente comigo. – disse olhando para o espelho e vendo-o sorrindo pra mim, com seus olhos verdes brilhando, totalmente nu, evidenciando as linhas de cada músculo de seu corpo. Com um aceno com a cabeça, ele desapareceu. Respirei fundo, recuperei meus ânimos – Sabe o que eu queria agora?

– Não faço ideia...

Segurei o rosto dele, beijei-o.

– Ficar o resto da minha vida com você... Casa comigo?

F I M !

Afonso Herrera e Raoni Sanfelicce
Enviado por Afonso Herrera em 18/11/2019
Reeditado em 18/11/2019
Código do texto: T6798130
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