Virada necessária

Acordou, olhou ao entorno e percebeu que estava fora de casa. Sim, chegara naquele hotel no final do dia anterior e, naquele momento, tomando ciência do fato, não conseguiu imaginar por quantas horas teria dormido. Certamente muito mais do que as 7 horas usuais. Levantou da cama, abriu a janela do apartamento e um ar gelado invadiu o seu corpo. Ao fundo viu a serração engolir os majestosos pinheiros. A umidade fazia-os chorar, assim como ela chorava naquele momento.

Estava sozinha, dilacerada por uma recente separação do homem que ainda amava. Uma separação sem grandes motivos e que ainda a deixava com inúmeras perguntas sem resposta.

Seu casamento durara 15 anos. Ela sabia que os seus propósitos nem sempre foram buscados nesse período, especialmente pela intolerância de Mario que, em função da visível ambição, cresceu muito profissionalmente, sempre buscando dissuadí-la de qualquer atividade que não fosse cuidar-se, cuidar da casa, dos jantares, das viagens e, de forma impecável, do exemplo de esposa. Sem sombra de qualquer dúvida fora uma mulher aquém do seu tempo, totalmente submissa. Mas ela o amava e era suficiente. E assim a relação foi se desvelando, sem que qualquer insatisfação de sua parte fosse demonstrada.

Mas agora ela estava em Canela com reserva para 5 dias e alí tentaria colocar as ideias em ordem, já que não podia contar com a família e amigos, que consideraram a sua separação extremamente providencial e sempre sugeriram que ela desse um novo rumo à sua vida, como se isso fosse possível de imediato. Sempre argumentaram que passaram a não reconhecê-la após o casamento.

Desceu para o café e, olhando ao seu redor, constatou que somente ela ocupava uma mesa. Provavelmente estava no limite do horário do serviço. Sensação de que aquele buffet era só dela. Quanta reverência! Sorriu.

Durante o dia caminhou pela cidade, visitou a Catedral de Pedra, encantou-se com uma lojinha de sourvenirs com preços bons e, por alguns minutos, chegou a reportar-se ao passado, quando solteira, consultora de recursos humanos de uma empresa multinacional, viajava a trabalho e aproveitava o pouco tempo que sobrava para multiplicá-lo com atividades produtivas. Como trabalhava na área de humanas, costumava visitar comércios das cidades para analisar o atendimento, o relacionamento e a sensação que o cliente de lá saia. Na época era soberana para trilhar o seu caminho e produzir. Pensou que, se retornasse ao tempo, já estaria com várias anotações no seu caderninho de bolso, para que fossem compiladas à noite para possivelmente virarem cases em seus projetos, treinamentos e palestras.

Na época trabalhava muito e buscava incansavelmente cumprir os seus objetivos, invariavelmente traçados nas viradas de ano, fato que nunca mais ocorreu após o seu casamento. Era movida por desafios e acreditava que só podia ser feliz se realizasse todo o dia. A sua vida era calcada em realizações, em projetos findos, em indicadores desafiadores.

À noite, bebendo uma taça de vinho tinto no saguão do hotel viu-se espelhada em um imenso enfeite de natal pendurado na árvore do ambiente. Um espelho e tanto. Gostou de sí e retornou o olhar por mais algumas vezes. Permitiu-se. Permitiu-se o que não mais permitira nos últimos anos. E passou a questionar-se: Como permitir-se se era o bastidor do ator mais importante da sua vida? Como permitir-se se quem deveria brilhar era ele, e que era ele quem a sustentava e abria o bolso para suas pequenas estravagâncias, especialmente criadas quando o acompanhava em seminários, simpósios e viagens de trabalho? Com permitir-se se nem ao menos ousou discordar quando ele decidiu que não teriam filhos e, para compensar, auxiliariam financeiramente um orfanato? Como permitir-se se uma das suas paixões, a escrita, havia sido banida da sua vida por ele ter alegado que não gostaria de vê-la envolvida em ambientes com “intelectuais de botequim” como ele costumava chamar os seus ex-colegas de oficinas literárias? Enfim, permitir-se foi uma das poucas coisas que não fez durante o casamento, pois do restante nada faltou.

A influência do marido na sua vida, suportada pelo amor que sentia, era grande demais.

E tudo acabou de repente, até mesmo o seu passado de tantas realizações. Como se realizaria se não se permitisse?

Ainda envolta em indagações tomou o elevador e, chegando no apartamento abriu o computador e buscou o seu Curriculim Vitae, pela última vez atualizado meses antes do seu casamento. Era o Curriculum de quem ela deixou de ser e esse fato a entristeceu demais, a ponto de jogar-se na cama em prantos.

Como ousara esquecer de toda a sua tenacidade por um amor? Não teria sido possível conciliar as suas habilidades e o companheirismo e apoio que o marido sempre determinhou?

Estranho, mas um tanto compreensível para uma mulher que cresceu em meio à dificuldades, tendo que batalhar por tudo o que sonhara e que, com grande humildade, admitia naquele momento que buscara, sobretudo, segurança financeira.

Serenou. Aos poucos começou a entender o que era fácil, mas completamente impenetrável em seus questionamentos pelo tempo em que esteve casada. Entendeu que ela própria colocou-se no lugar exato da mulher que o marido queria ter. Entendeu que sempre driblara as insatisfações com justificativas de uma vida atribulada por conta do envolvimento profissional do marido. Entendeu que não soube distinguir as várias facetas do amor e dosá-las a contento.

E naquele momento, vestindo um roupão impecavelmente branco, recém saída de uma ducha, sentiu-se uma adolescente ansiosa por um novo companheiro bem sucedido, mas sem deixar jamais de seguir os seus sonhos.

Percebendo uma fina chuva lá fora decidiu por um lanche no apartamento e, acomodando-se em uma poltrona confortável, começou a escrever … uma crônica com nomes fictícios, que bem poderia redesenhar a sua vida.

Jan.2020

Exercício Laboratório Escrita Criativa - Axiologia

PRAGMATHA

Rosalva
Enviado por Rosalva em 27/01/2020
Código do texto: T6852022
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