Contradições

As férias chegaram depois de um ano trabalhando no projeto de digitalização dos livros e revistas da biblioteca do colégio onde estudei e hoje sou um dos professores mais dedicados a seus alunos.

Entre scanners e computadores, fiquei pensando no meu avô e em sua coleção de livros e revistas antigas que abarrotam um dos quartos da casa onde mora.

Estou preocupado com ele. Ouvi dizer sobre os acumuladores que tem a tendência de isolar-se de todos e temem ficar longe das coisas que acumulam. Pode ser lixo, papel, latas de comida ou algo assim.

No caso dele, é esta coleção.

Até compreendo este amor que meu avô tem por estes alfarrábios. Eu mesmo aprendi muito com eles.

Quantos trabalhos escolares fiz usando as Barsas e Britânicas que ele coleciona, quantas vezes usei os seus livros de Matemática, Química e Física pro vestibular sem falar nos contos das Mil e Uma Noites, nos romances de capa-e-espada e das histórias de Stephen King e de tantos outros escritores que povoavam minha imaginação e também a de meu pai.

No entanto, era hora dele entender que a tecnologia nem sempre é ruim e no meu íntimo, tinha medo de meu avô ter o mesmo destino de meu pai que não conseguiu adaptar-se aos tempos modernos.

E de certa forma provoquei a morte dele. Discuti com ele a contradição de manter os livros físicos numa época que a digitalização é a forma mais fácil de conseguir a informação que tanto procurava.

Na discussão, ele sofreu uma síncope e morreu na hora.

Foi com esse pensamento que decidi visitar meu avô nas férias.

Assim que entrei no quarto, horrorizei-me com o que vi.

Havia baratas e traças espalhadas por todo o quarto destruindo aos poucos as coleções de livros e revistas de meu avô e ali percebi que era hora de tomar uma atitude.

Ele já estava esperando-me no sofá da sala com um semblante carrancudo e notei que seria ainda mais difícil convencê-lo de que a digitalização era o melhor caminho para sua coleção.

- Vô, pense nas vantagens que terá com sua coleção escaneada. Não precisa mais se preocupar com insetos destruindo todo esse conhecimento que adquiriu.

- Mas, Carlos, não quero desfazer-me assim de uma coleção que teu bisavô começou e passou pra mim. Queria que meu filho ficasse com eles, mas a desgraça não deixou que isso ocorresse. Não quer ficar com eles? Com uma coleção dessas, quantas pessoas poderiam aprender em sua escola?

- Não posso, vô. Mesmo que doasse pra biblioteca do colégio, pouca coisa seria aproveitada. Com o scanner, as coisas seriam mais fáceis pro senhor. Mas pra isso, precisa de um computador.

- Pra quê tudo isso? Já disse que não preciso dessas coisas. Estou feliz com o que tenho aqui, mas se precisar dar esta coleção pra ti, eu a cederei de bom grado.

As coisas ficaram mais complicadas. Eu tinha que fazer meu avô entender que não se pode parar o progresso com as mãos e mais do que isso, compreender que o acúmulo de coisas é um vício tão grave quanto drogas ou álcool.

E também pelo anacronismo de manter livros físicos sabendo que um dia isso provavelmente desapareceria com o advento das digitalizações.

Só depois de muito custo, consegui convencer meu avô a adquirir um computador para guardar toda a coleção dele e quem sabe, fazê-lo inserir nesse mundo moderno que vivemos.

Bem como tentar curá-lo desse vício da acumulação.

Como prova de minha sinceridade, peguei alguns livros e revistas e fui começar a escanea-las para repassar ao meu avô.

Demorei mais alguns dias para terminar o trabalho e fiquei muito satisfeito com o resultado.

Era como se o livro ganhasse vida nova. Tinha esperança de que assim meu avô se adaptaria aos novos tempos e imediatamente reuni-os em DVDs.

Assim que voltei para revê-lo com a curiosidade de ver como estava se saindo com o computador, tive a estranha sensação que algo de ruim tinha acontecido.

Bati a porta e não tive resposta. O desespero tomou conta de mim e precisei arrebentar a fechadura para poder entrar.

Quando entrei no quarto dos livros, testemunhei algo horrível.

Meu avô estava caído de bruços e os livros encharcados de sangue.

Notei que na mão esquerda tinha um velho 38 que ele guardava e sua cabeça estava toda arrebentada.

Ali percebi que não tinha mais nada que pudesse fazer.

Ele havia se matado pra não ter que testemunhar sua amada coleção ser tirada dele e levada provavelmente para reciclagem.

No lado do corpo, havia um bilhete com estas palavras:

“Querido Carlos, sei que suas intenções eram boas. Queria me ajudar com essas coleções, mas jamais conseguiria adaptar-me aos novos tempos. Sou de uma outra época em que tudo era mais simples e os livros eram o símbolo disso. Havia tecnologia, mas as histórias eram contadas por nós mesmos. Não conseguiria ficar longe de meus amados livros porque eles são um pedaço de mim. Cada um deles traz uma lembrança do meu filho, de ti, meu neto e de cada acontecimento da minha vida. Sei que não poderei parar o mar com as mãos, mas também sei que você não pode impor uma pessoa a fazer seus caprichos. Não está caindo em contradição ao confiar demais nessa modernidade atual negando seu lado humano? Cuide-se, meu bom rapaz e obrigado por tentar compreender minha dor.”

Fiquei sem palavras. Sentei-me no sofá com os olhos mareados e chorei muito até ficar sem forças.

Estava tão abalado que mal consegui responder as perguntas do policial nem do legista que levou o corpo pro necrotério.

Voltei pra casa e sentei-me no meu gabinete me perguntando se meu avô não estava certo com relação as contradições que enfrento.

De querer impor a modernidade a pessoas que não querem viver dessa forma e que estão felizes do jeito que são.

Será que sou tão cego assim a ponto de não ver o óbvio? Ou no fim das contas sou tão doente quanto meu pai e meu avô?

Uma coisa era certa.

Precisava tratar-me para não ter o mesmo destino deles.

MarioGayer
Enviado por MarioGayer em 22/01/2021
Código do texto: T7165752
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