Autofagia (em algum lugar ao lado do autismo)

Doses diárias de despudor. Inalação rotineira etílica. A felicidade encontrada em atos de rebeldia. A produção artística gerada em êxtase momentâneo e demasiado inumano. A literatura desvairada utilizada como defesa contra o definhamento. Algumas inverdades incontestáveis. Miríades de verdades inverossímeis. Ser indecoroso em momentos decorosos. A doce transgressão incrustada na carne e no espírito. Irrealidades nítidas. Realidades distorcidas. O eu transmutado em disformes e sublimes corpos. O desejo aliciado em cópulas diversas.

Sim, menina, eu ainda contemplo a beleza, mas agora busco o vazio, o fora derradeiro.

Eu sei que tu dirias que essa é uma estranha busca, pois compor um movimento tão radical culminaria em um possível caos. Além disso, a idéia é ininteligível, pois a existência da satisfação em vida não realizaria o ato sem dor. Mas e daí, menina?

Permito me contradizer, com todo prazer. Aliás, o meu prazer é te contradizer. Não que eu queira provar o teu erro e a impossibilidade de tu seres coerente, o que não contesto, mas apenas te imponho minha egocêntrica personalidade que, para mim, está acima de teus tolos anseios. Desculpe meu tom de voz agressivo, mas é que agora posso abdicar do pudor.

Bem, digo-te que este desejo não é antigo; as grandes paixões são atuais e efêmeras, violentas e sublimes. Talvez por esse reconhecimento, atuarei em minutos, mas, mesmo não tendo muito a dizer, sinto-me obrigado a compartilhar contigo o pouco que sinto em tal momento.

Tento encontrar algo tão superior que nada significa. Algo tão inexplicável, que tentar explicá-lo em palavras seria impossível. Não busco plenitude, muito menos, preencher algum vazio existente. Busco apenas nada. Desejo do nada. Eliminação de canais e intensidades de tudo que existe.

Sei que tu dirias que estou desenvolvendo algum tipo de devaneio destrutivo, mas posso te afirmar que não há rancores, ressentimentos, revolta ou vontade de abolição de qualquer tipo de estrutura. Não há nada a ser apagado, assassinado ou extinguido. Não tenho ódio. Poucas coisas me assustam. Não detenho um niilismo a ser saciado. Não desejo eliminar e, muito menos, magoar alguém. Não tenho medo. Não estou aterrorizado. As peculiaridades ainda me excitam.

Há pouco, sorri ironicamente ao assistir o fog ser corrompido pelos ácidos urbanos. Extasiei-me com um diálogo anômalo. Aliás, te amei nesta manhã – o tesão explodiu-se em fagulhas instantâneas de loucura – o que chamamos, de forma herege, de transcendência. Tocar o céu ou ser virtuoso em alguns minutos, e após manter o sentimento sem torná-lo monótono.

Sim, eu te amo. Alegra-me ficar ao teu lado para-sempre-até-quando-durar (minha máxima intencional que tu odeias, mas que possibilita o grau de sarcasmo e fatalismo que necessito para manter-me vivo). Necessito manter-me vivo? Sim, necessito, mas não quero. Poderia enumerar diversas ambições realizáveis em uma vida interessante sem busca de utopia, uma vida que não quer o além do possível, mas que mesmo assim compartilha com o impossível.

Eu poderia me regozijar até o fim. Seguir a trilha da dita “felicidade”, trilha visualizada, testada, compreendida e reconhecida como provável. Loucura, então? Insanidade alojada em uma mente que há poucos gozava de uma sobriedade dura, implacável e aparentemente sana? Surto? Psicose?

Chame como quiser. Sempre te expus que o muito que conhecias de mim era pouco, sempre fui aberto quanto a isto. Eu sei irás chorar. Te imporei ódio. Tu irás me amaldiçoar, mas não me importa, pois nada mais importará. Entendeste? Nada mais importará.

Não quero mais nada, e não falo em preocupações, mas em tudo. Quero a possibilidade de não mais sentir e não mais existir. Quero o não-sentimento e a não-sensação – realidade intraduzível em minha deformada e falsa poesia.

Eu quero esse movimento. Eu busco esse grau de indiferença. Eu posso ter muito e me preencher até a exaustão, mas prefiro a inatividade. O obscurecimento de tudo por uma névoa fatal.

Bem, para os que ficam não deixo palavras. Muito menos um mínimo gesto de condescendência. Apenas compartilho contigo por ainda estar aqui e, estando aqui, ainda “sou nós”.

Todas as frestas estão bloqueadas. Imagino uma piada que apenas eu compreenderia. Sinto-me um colegial em busca de uma doce travessura. O gás ligado emite um eflúvio imperceptível. A música que toca em estéreo me alicia. Tenho vontade de dançar. O início da narcose, provocada pela super dose de barbitúricos, me alucina sensivelmente.

Ouço o barulho dos carros percorrendo a rua frontal, na chuva. Estou conectado de tal forma ao meu corpo, que ereções formam-se na derme. Minha carne espiritual nunca esteve tão plena. Uma estranha felicidade me abate. Sorrio. Meus dedos formigam nas pontas. Não mais sinto o teclado.

Tento curtir o momento, como um gesto saudosista de algo que nunca mais irá se repetir. Deveria dizer mais uma vez que te amo. Mas as imagens de nossa existência não mais existem. Toda beleza e terror se dissipam. Não te peço desculpas. A nada peço desculpas, pois o sentimento de que nada mais importa apodera-se de meu organismo. Nada mais importa. Nada.

Diego de Carvalho
Enviado por Diego de Carvalho em 16/11/2005
Código do texto: T72351