O Presente

O PRESENTE

- “Quem não tem nada, quer um pouco; quem tem um pouco, quer mais; quem tem mais, quer muito; quem tem muito, quer tudo. E quem tudo quer, tudo perde”.

Eram tiradas deste gênero que faziam a glória do Juiz Salomão e a satisfação dos seus ouvintes, meia dúzia de tabaréus, quando, nas tardes abafadiças e estagnadas do verão sertanejo, reuniam-se à porta da venda do Chico Cascudo, para tomar fresco e conversar fiado.

Doutor Salomão ingressara na magistratura com a idade um pouco avançada. Fora um advogado atuante na Capital, mas com o passar do tempo, o simples ato de pleitear justiça já não o satisfazia, almejava então fazer carreira, o que o levou a prestar concurso e, efetivamente, ser aprovado.

Ao ser designado a atuar em uma comarca no interior do Estado, hesitou em tomar posse, pois temia em não se adaptar aos costumes e simplicidade do povo do interior. Mesmo assim tomou posse e logo se integrou aos hábitos do município simples a que fora indicado. Logo percebeu que as pessoas humildes lhe devotavam uma grande admiração e leal amizade. Em sua carreira não só demonstrou ser um grande magistrado, com suas decisões equilibradas e justas, como também se revelou um grande orador; tinha um talento todo especial para o conto, o que fazia com que os problemas do cotidiano jurídico se tornassem em eternos ensinamentos para a vida da comunidade local.

E mesmo após sua aposentadoria compulsória, continuou a residir naquele município de poucos recursos, porém com pessoas tão acolhedoras.

E naquela tarde, como de costume, lá estavam “seu” Juiz, o Hamed, do armarinho, dois ou três dos habituais comparsas e o Chico, que não tendo nada a fazer no interior da venda, viera também para fora, espairecer.

Acabava justamente o Juiz Salomão de fazer o enunciado acima, que, aliás, era o fecho de ouro de uma longa dissertação jurídica-política-social, quando surgiu, no outro lado da rua, um tipo como vêm-se muitos, nas grandes como nas pequenas cidades.

Descalço, com a roupa em farrapos, cabelos e barba crescidos e enlameados e, na fisionomia amorfa, os estigmas da insanidade mental.

- Vejam, disse o Juiz apontando o infeliz, ali vai um exemplo do que acabei de dizer. Quem, de vocês, sabe a sua história?

Como a resposta geral fosse negativa, o magistrado sentou-se na cadeira que o Chico lhe trouxera, assoou-se e deu início à narração.

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Peço licença ao leitor, para, nesta altura, tomar a palavra ao digno magistrado, e fazer, em seu lugar, a narração prometida, com o único objetivo de torná-la simples e mais breve, expurgando-a das extensas considerações jurídicas, morais e inevitáveis citações latinas, que ele não dispensava nas suas palestras.

Vamos, pois, ao caso.

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- Quando Pedro Quintão entrou na tapera esburacada onde morava, atirou a enxada para um canto e foi, como sempre faziam, direto à tina cheia d’água. Sentou-se num caixote e mergulhou os pés na água fria. E, na verdade, seus pés bem mereciam aquele refrigério. Cortados pela tiririca, arranhados pelos espinhos, ralados pelos torrões endurecidos da terra ressecada, ardiam como fogo. E ali ficou longo tempo, fruindo aquele conforto primitivo, esfregando maquinalmente um pé no outro, enquanto enrolava um cigarro de palha.

Era sempre aquele o momento em que representava na mente, remoída, conforme dizia ele, sua vida de miséria. Viera para ali havia uns cinco anos, armado, unicamente, de coragem, esperando vencer na luta que iria travar com aquela terra agreste e calcinada. Reconhecia, porém, ultimamente, que a terra vencera.

Já não alimentava nenhuma esperança de recuperar, sequer, os mil réis que trouxera. Tudo lhe tomara aquele sertão seco, deserto, indomável: os parcos recursos, a saúde, a coragem. Aquela terra ávida por água, bebera-lhe as gotas de suor e, com elas, os sonhos. Água!.. A palavra mágica!.. A fada poderosa e benfazeja, que transformaria aquele carrascal num belo sítio, que faria com que as espigas não murchassem crestadas e o feijão não definhasse e morresse logo ao nascer.

Se ao menos ele tivesse um burrinho ou um cavalo para carregar água lá de baixo, do brejo, onde ia apanhá-la com tanto e inútil sacrifício!.. Então ainda haveria uma esperança, a última, pois era aquele transporte de água para a rega, verdadeiro suplício para o seu corpo enfraquecido, que acabava com o resto da sua resistência.

Pensando bem, preferia um burro. É um animal mais forte que o cavalo e menos sestroso. E se fosse todo branco, limpo, roliço, com uma linda cabeçada nova, taxeada com cravos amarelos que, quando bem esfregados, brilham como ouro, igual a uma que ele vira na feira de... ..Ah! Isso seria o cúmulo da felicidade! E, nesse caminho, a imaginação passou-lhe à frente, cresceu, voou. Viu-se trazendo água do brejo em dois barris que bamboleavam nas ilhargas do burrinho.

Viu-se, em dias de festa na vila, todo pimpão, montando o burrico e causando inveja à matutada. Viu-se..... bolas! Um barulho na porta da frente veio interromper tão doce devaneio.

Voltou-se para ver o que era e, de fato, ali estava uma pessoa, um homem. Mas... não era possível; devia ser engano. Que iria fazer na sua tapera, um sujeito como aquele? Era um homem alto, rosado, forte, não muito velho, com uma barbicha engraçada e uns óculos mais engraçados ainda, pois só tinham um vidro, preso num dos olhos. E a roupa? Que lindo terno branco, sem rugas e nem um pouquinho de poeira! E que bela gravata!... E luvas brancas!... E sapatos que brilham!... E uma bengala com castão de ouro!....

Pedro Quintão ficou ali, olhando para ele, apalermado. O desconhecido olhava-o, também, com ar bondoso e afável. Por fim o sujeito sentou-se. Como pudera ele fazer aquilo, se Pedro Quintão sabia muito bem que ali não havia cadeiras?!

Pairava, porém, tanta irrealidade em tudo, que Pedro Quintão não deu muita importância a tal fato. O sujeito cruzou as mãos sobre o castão da bengala e pôs-se a falar. Falou muito e bonito e, quando ia repetir uma coisa que dissera, uma dor esquisita nos dedos trouxe Pedro Quintão à realidade. O cigarro, ardendo até o fim, queimara-o, acordando-o. Eis em que dera estar imaginando coisas impossíveis! Tudo fora apenas um sonho, mas de tal forma “real”, que Pedro Quintão julgava sentir ainda a presença daquele homem extraordinário. E que dissera mesmo, ele? Impossível lembrar-se com clareza. Era tão confuso.... De uma coisa, porém, ele se recordava. Sim. O homem falara no burro. E que admirava? Pois ele, Pedro Quintão, não pensara em outra coisa antes de adormecer!... De qualquer forma sentia-se inquieto, impressionado. Sua alma simples de roceiro inculto, ressentia-se de tudo aquilo. Tirou os pés de dentro da tina e, lançando um olhar suspeitoso em torno, saiu para o quintal pela porta da frente e, aí parou, tremendo, como se estivesse atacado de febre maligna. Junto à parede, olhando para ele com os seus olhos inteligentes, lá estava, não o homem da barbicha, mas o burro, um lindo burrinho branco, com cabeçada nova e tudo!.. Não. Não estava mais sonhando; o ardor no dedo queimado bem o provava.

Deu alguns passos acercando-se do burrico e ergueu a mão para acariciá-lo. Mas, instintivamente, parou. Um temor repentino de que o animal se evaporasse, ao tocá-lo, assaltou-o. Finalmente, fazendo um violento esforço sobre si mesmo, tocou-o. Nada aconteceu. Correu a mão pelo dorso luzidio, macio, veludoso, e sentiu que o animal gostara. Tornou a alisá-lo uma e muitas vezes; jamais afagara uma mulher com tanto prazer como fazia, agora, ao lindo animal. Ele sabia, sentia, adivinhava que algo de maravilhoso sucedera em sua vida, algo que ocorre somente nos sonhos ou nos domínios da imaginação. Mas, sabia também, que não estava sonhando e aquilo que ali estava era verdadeiro, real. Que fazer, agora? Custava-lhe acostumar-se à idéia de que aquele lindo animalzinho, com sua cabeçada de luxo, lhe pertencesse.

Quando, porém, aos poucos, o sentimento de posse afirmou-se em seu espírito, uma alegria imensa invadiu-o. Sim, aquilo era seu, muito seu. Era um presente divino, em resposta às suas súplicas, seus desejos, suas necessidades. Anoitecia. Ele não podia deixar o burrinho ao relento. Com infinita precaução puxou-o para dentro de casa. Com um cuidado e uma leveza que não usaria com um recém-nascido, desafivelou-lhe a cabeçada e pendurou-a na parede. Pôs, em seguida, à sua frente, no chão, dentro de uma pequena peneira, um pouco de milho e, ao lado, a tina com água limpa. Como nada mais lhe ocorresse fazer, deitou-se na rede, armada a um canto e ficou a olhar, embevecido, o animal comer. Escusado será dizer que Pedro Quintão não pegou olho toda noite. Além de ter perdido o sono, levantava-se de vez em quanto, para ver ser o burrinho precisava de alguma coisa ou, se os mosquitos incomodavam-no.

Enfim o dia despontou. Era a hora da rega e, ao lembrar-se disso, lembrou-se também dos dois barris, complementos indispensáveis, agora que possuía tão bom animal. Não tinha, porém, os barris, e, além disso, o burrinho não estava ferrado, Era, aliás, a única coisa que lhe faltava. Pois ele não ia regar nada, hoje. Iria, sim, à vila, levar o bicho ao ferrador e, de caminho, procurar os barris. Comeu um punhado de farinha de mandioca e um pedaço de rapadura, sua primeira refeição de todos os dias. Colocou a cabeçada no burro e puxou-o para fora. Diga-se de passagem, que a idéia de montá-lo, mesmo a pelo, não ocorreu, absolutamente. Amarrou um pedaço de corda à cabeçada e saiu puxando-o estrada à fora.

Vinte minutos depois entravam na vila. Apesar de quase deserta, devido a hora matinal, foi um sucesso. Teve que parar várias vezes para responder às mesmas perguntas.

- “Seu” Pedro, que burro bonito!... É seu?...

- É.

- Quanto custou?

- Nada. Foi um presente.

- Um presente?!... “Quá”...

E mais adiante, a mesma coisa, as mesmas perguntas, os mesmos “quás” duvidosos. Ao passar em frente à farmácia, o “coronel” Fragoso, que estava à porta, fê-lo parar também.

- Então, “seu” Pedro; está negociando, agora, em animais?

- Não, “seu” coronel; vim só para lhe pôr os “sapatos”.

- Bonito animal. É para sela?

- Não senhor; para a lavoura.

- Para a lavoura?!.. Que pena.... É seu?

- É sim senhor.

- Pois eu compro. Oito contos, agora mesmo.

- Não senhor. Obrigado.

- Se resolver passe lá em casa.

- Sim senhor. Até logo.

E lá se foi Pedro Quintão em demanda do Manoel ferrador.

Na volta, a hora estando mais adiantada, as perguntas redobraram. Mas Pedro já não lhes dava atenção.

As palavras do “coronel” Fragoso haviam deixado em seu espírito o germe de uma dúvida. Será que ele estava certo usando aquele belo animal em trabalhos que, dentro de pouco tempo, o transformariam num miserável sendeiro? Seria inteligente empregá-lo em tarefas cujos resultados eram mais que incertos? Fez todo o caminho de volta imerso em reflexões contraditórias, e, já perto de casa, viu que esquecera de procurar os barris. Não ligou. Ficou matutando longo tempo, sentado numa pedra, vendo o burro a roer o capim escasso que crescia em torno da tapera, junto às paredes. Oito contos.... Tinha certeza que o “coronel” Fragoso daria facilmente mais dois contos, inteirando os dez.

Dez contos! Na sua situação era uma fortuna. Que não faria com dez contos? E, mais uma vez, a imaginação levou-o em suas asas. Fez e desfez negócios, regateou, comprou, vendeu e, por fim, viu-se dono de uma grande fazenda, longe daquele lugar de miséria e tristeza.

Ergueu-se num ímpeto. Estava resolvido. Iria levar o burro ao “coronel” Fragoso! E levou-o. Recebeu os dez contos e, para não nos estendermos muito em minúcias, diremos apenas, que aquele dinheiro parecia abençoado. Fez, sucessivamente, algumas pequenas transações que, em menos de um mês, duplicaram-lhe o capital. Continuando a maré da sorte que favorecia, vendeu o sítio a um inglês, por trinta e cinco contos.

Pedro Quintão exultava. Nunca, em toda a sua vida, vira tanto dinheiro. Mudou-se da vila para uma cidadezinha próxima que, embora pequena, pareceu-lhe colossal, em comparação ao lugarejo miserável de onde saíra. E continuou negociando e ganhando.

Possuía já mais de cem contos, que guardava consigo no quarto em que morava, no segundo andar de uma velha casa de pensão. Jamais lhe passou pela mente a idéia de depositar o dinheiro num banco. Gostava de tê-lo todo à mão e nunca chegava ao quarto sem que corresse logo a ver o seu tesouro, guardado numa linda caixinha de madeira, comprada especialmente para este fim. Dava-se, agora, a pequenos luxos. Comprava, de vez em quando, um charuto caro, e, vez por outra, ia ao teatro. Naquela noite, por exemplo, resolvera assistir uma peça que todos elogiavam muito. Saiu do teatro às dez horas, tomou uma cerveja, acendeu um charuto e, calmamente, seguiu rumo à casa.

Faltava vencer ainda algumas pequenas ruas quando, um rubor insólito no céu, chamou-lhe a atenção. Algum incêndio, pensou. À esta idéia procurou calcular onde seria e viu que era, exatamente, para os lados onde morava.

Apressou o passo, mas, dentro em poucos um pressentimento sinistro, fê-lo correr. Alcançou a rua da pensão e, do ponto em que estava, avistou, estarrecido, a velha casa transformada numa fogueira colossal. A rua formigava. Como louco, bramindo desesperado, lanço-se em direção ao prédio em chamas e quis entrar. Seguraram-no. Forcejou mas, nesse momento, o telhado ruiu com estrondo, mergulhando para dentro e erguendo às alturas um dilúvio de fagulhas e fumo, logo seguido de labaredas furiosas. Largaram-no. Ele recuou alguns passos e ficou imóvel, assombrado, olhando estupidamente, por muito tempo, o prédio que se consumia. E, de súbito, uma gargalhada ressoou. Pedro Quintão ria, ria e seu riso sinistro, lúgubre, inumano, enchia de horror os que o ouviam. Daquele momento em diante, com a fuga da razão, deixou de sofrer. Decaiu rapidamente. Tempos depois voltou à vila de onde saíra.

Não conheceu mais ninguém. Apenas, quando em seu perambular sem rumo, passava em frente ao sítio que fora seu, agora uma bela propriedade cercada de jardins floridos, parava um momento e olhava-o. Se reconhecia ou não, o lugar, ninguém sabia pois sua fisionomia nada indicava.

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Dou aqui, novamente, a palavra ao Dr. Salomão, embora ele nada mais tivesse a dizer. Escurecera. Chico Cascudo entrou para acender um lampião de querosene e servir um freguês. O Juiz despediu-se dos seus ouvintes e começou a caminhar em direção ao fim da rua, onde, numa pequena praça, residia em uma confortável casa em estilo colonial. Apenas, um dos que tinham ouvido a história, sem dúvida o mais simplório, ainda quis reter o palestrante, perguntando: - “Mas “seu” Juiz; e o homem de branco? Quem era?” O Juiz, porém, não ouviu. Ou teria ouvido? De qualquer forma não respondeu; continuou caminhando e, dentro em pouco, a sua silhueta miúda esbatia-se na noite.

Laerte Creder Lopes
Enviado por Laerte Creder Lopes em 05/11/2007
Código do texto: T725007
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