Conto de Uma menina só

Ela era só uma menininha esquecida, uma menininha que ficava num canto na casa, num canto na escola , num canto na vida.

A última da casa .

A que ouvia incansáveis vezes que não conseguia fazer nada direito.

Que esbarrava em tudo.

Que derramava a comida.

Que era relaxada.

Que era suja.

Sua letra era a que ninguém entendia.

Sua voz era desafinada , então para não atrapalhar o coral era melhor só fingir que cantava.

A menina com óculos fundo de garrafa.

A menina de cabelos curtos porque eram crespos e eles armavam quando compridos.

A menina que caia sempre.

A menina estranha, que não gostava de brincar com outras crianças, que se escondia embaixo da cama e só conversava com amigos que moravam na sua imaginação.

Uma menina que andava com livros para todo lado.

Mas um dia aos 11 anos alguém percebeu ela num canto observando um jogo de futebol. Um rapaz de 22 anos enxergou a menina tímida que ficava fascinada olhando o jogo.

Esse homem fez amizade com a menina, a fez sentir-se importante.

Ajudava nas lições de casa, conversa,ria junto com ela

Para a menina ele era seu mundo.

A menina tornou-se moça, ele explicou as transformações de seu corpo, fazia também algumas coisas que a menina não tinha certeza se eram certas, porém ela sentir-se especial .

As mãos do rapaz passeavam pelo seu corpo e ele lhe dizia que era bom mas que ninguém deveria saber porque ele seria afastado dela.

Pensar em perder o único que estava próximo a ela deixava apavorada e a menina nunca contou nada. Era seu segredo mais bem guardado.

O rapaz dizia que um dia seriam só os dois e a menina acreditou.

A medida que a menina cresceu, os interesses do rapaz aumentaram e a devoção da menina também.

Tudo isso acontecia dentro da casa da menina já que ele era noivo de sua irmã mais velha.

O pai da menina morreu e o rapaz começou a buscá-la na escola, disse que cuidaria dela. E foi então que ele a beijou, disse que a amava e que deixaria a noiva assim que fosse possível.

A menina vivia num conflito intenso.

Ela gostava da irmã mais velha, não queria ferir ninguém , apesar do medo que sentia ela ainda não conseguia se afastar , não podia perder a pessoa que a protegia, defendia, a fazia sentir-se bonita, que não implicava com a mania que a menina tinha de ler. Ele perguntava das histórias dos livros, depois dizia rindo que não tinha entendido nada mas que se ela gostava de livros ele lhe daria livros.

Eles jogavam bola, passeavam com a cachorra Diana, grande companheira da menina.

Os sábados de chuva eram os favoritos da menina porque ele não ia jogar bola e eles passavam o dia juntos. Ele ajudava a menina nos serviços de casa que era responsabilidade dela, assistiam filmes, jogam jogos de tabuleiro, baralho . Eram dias felizes para a menina.

Nos natais eles montavam a árvore juntos e comiam chocolates que ele trazia.

Nunca , em nenhum momento alguém da casa interferiu nesse relacionamento . A mãe da menina apenas lhe lançava um olhar de desaprovação , o mesmo olhar que lançava para tudo e a menina estava acostumada com ele. Ela sentia culpada, tinha dúvidas mas não tinha ninguém com quem pudesse dividir seus medos, dúvidas .

Também sentia- se feliz, aceita por ele e menos sozinha. Ele era alguém além dos personagens dos livros.

Às vezes a menina ouvia conversas entrecortada de que ela era vagabunda, sem vergonha, suja, relaxada.

As vezes ela perguntava para ele porque se ele a amava, não poderia ficar com ela e ele dizia que um dia isso ia acontecer, que ele amava mais que tudo . Quando ela dizia que sentia que era errado estar com ele , contava sobre as conversas ouvidas ele a abraçava e dizia que ela não era nada daquilo.

Um dia a irmã avisou que iria se casar,a menina ficou triste pois sabia que seria tudo mais difícil mas ele falou que era preciso casar mas que assim que ela fosse maior ele iria ficar com ela.

Eles ouviam músicas do Roberto Carlos, ele dizia que todas eram pra ela.

E a menina foi seguindo assim…

Um sábado à tarde ele levou a menina para sua casa, disse que faria ela se tornar mais ainda dele.

Nunca ninguém da casa tinha conversado sobre sexo com ela, quando a menina menstruou pela primeira vez a mãe só disse que todo mês ela ia sangrar e que ela não poderia lavar a cabeça naqueles dias porque se não iria morrer. E que não era pra contar pra ninguém quando estivesse naqueles dias.

A menina tinha pavor daqueles dias porque sempre algo ruim acontecia, um vazamento que ela teria que esconder, uma dor que poderia denunciá -la ou pior, esquecer e molhar a cabeça .

Em meio a essa família, ele era a verdade e o apoio .

Então numa tarde ele afastou sua calcinha, a colocou no colo, ela sentiu que ele enfiou algo nela não sabia exatamente o que , nunca tinha visto um homem nu e muito menos tocado num pênis, ele disse que a amava e precisava daquilo para ser dela. Ela sentiu dor mas ele estava feliz. Ela era capaz de qualquer coisa para fazê-lo feliz. Rapidamente ele a tirou do colo, disse que quando chegasse em casa fosse tomar banho e assim a menina sem entender direito o que aconteceu, aos 14 anos perdeu a virgindade .

Depois desse dia aos poucos a menina foi entendo o que acontecia, mas ela o amava .

Eles ficaram juntos até os 21 anos da menina.

Nessa época ela já tinha conhecimento suficiente pra entender que tipo de relação era aquela. Sentia-se mal mas tinha tanto amor por ele e mesmo o amando muito tomou uma decisão.

Seis meses antes de seu aniversário de 21 anos ela o pressionou e deu exatamente 6 meses para ele se separar e a assumir ou terminaria com ele. No dia 2 de julho de 1987 ele ainda estava casado e foi a última vez que a menina se encontrou com ele como amantes.

Ela se afastou dele mesmo com as ameaças de que ele se mataria, mesmo com os telefonemas onde ele bêbado implorava para voltarem.

Sentiu que todos na família respiraram aliviados ,pois ela tinha certeza que eles sabiam, que a culpavam .

Ela realmente cumpriu a promessa e mesmo sofrendo muito se afastou.

Para poder sobreviver a dor, entrou para uma igreja , casou-se rapidamente com alguém que ela mal conhecia e foi embora para Salvador.

Morou lá por 4 anos, recebia cartas das irmãs relatando como ele e a família estavam felizes. Isso doía tanto nela. Era como enfiar uma faca na ferida que nunca cicatrizou.

Ela voltou para sua cidade, ele a procurou e ela manteve a decisão de não tocar nele enquanto ele estivesse casado .

Ela separou do marido, teve outro relacionamento , separou outra vez nunca deixou de amá-lo.

Em dezembro de 2000 ele teve um AVC na véspera do natal, ela correu de para o hospital e antes dele entrar em coma ele ainda disse que a amava. 10 dias depois ele morreu.

Ela viveu 7 anos em luto, se afastou de tudo, engordou, ficou sozinha, até que um dia ao ver uma reportagem sobre abuso de vulnerável ela entendeu que ele nunca a amou.

Ele se aproveitou de uma menina carente, sozinha, indefesa e a usou para seu doentio prazer.

Ele nunca a amou, ele abusou dela, ele a violentou.

Ela nunca teve ninguém que a protegesse.

Ela sentiu a vida toda errada, suja, vagabunda e no entanto ela foi vitima do machismo social, do descaso familiar, da falta de amor, do julgamento da igreja.

A menina foi ao cemitério, desabafou, perguntou o porquê de tudo aquilo mesmo sabendo que não teria resposta, deixou uma última rosa vermelha e nunca mais voltou lá.

Hoje essa dor fica escondida, mas tem dias, em sábados de chuva, quando ouve sem querer o Roberto Carlos cantando Amor Perfeito, em épocas de natal , a dor emerge , a menina que é velha hoje se sente sozinha, chora escondido, mas ao entender o que aconteceu se sente forte, busca refúgio nos livros , acalenta a menina em suas lembranças e segue ...