Valete

Eu tinha as minhas cartas na mão e sabia que a derrota era inevitável, salvo por um golpe de sorte. Ela me encarava, do outro lado da mesa. Olhos acinzentados, pendurados em um rosto fino, sem defeitos e sem muitos detalhes. Tinha o cabelo escuro como café preto... Mas o que me chamava mais atenção era a sua boca. Os lábios se destacavam do resto da face, como um batom vermelho em uma foto em preto em branco.

Ela abriu um sorriso e deu para ver que tinha dentes deformados, alguns podres e um buraco onde deveria estar um de seus caninos. Juntou as cartas e as deitou viradas pra cima, na mesa, a exceção de uma, que manteve coberta.

Percebendo que o golpe de sorte não viria, entreguei as minhas cartas e acendi um cigarro.

- Aceito a derrota.

- Pra que prolongar o inevitável, não é?

- Exato

Ela escancarou os dentes e me encarou com o seu olhar cinza e frio.

- Posso te dizer como vai ser o seu fim, se você acertar a carta que está nas minhas mãos.

- E se eu errar?

- Se você errar, eu te levo agora mesmo.

Fiquei observando enquanto ela brincava com a carta nas mãos, como se fosse um divertimento observar a minha indecisão.

- É um valete de paus. – Eu falei, quase como se tivesse a certeza de que acertaria.

O sorriso dela morreu no momento que as palavras saíram da minha boca. Então ela revelou a carta e era de fato um valete de paus.

Mas o engraçado é que naquela carta, o valete era eu.

2

Acordei com uma dor de cabeça insuportável. A imagem do meu rosto gravado na carta não saía da minha mente.

Fui até o banheiro e escovei os dentes. Andei até a cozinha, tomei um analgésico e voltei pra a cama.

Fechei os olhos, mas não consegui dormir. Talvez por medo de voltar para o mesmo lugar. Ou por não conseguir parar de pensar no buraco que tinha se tornado a minha vida. Eu já não via superfície, mas continuava a cavar, tentando me esconder do resto do mundo.

Pelo menos havia encontrado um lugar silencioso onde ninguém viria me incomodar.

A dor de cabeça foi cedendo com o tempo e eu já me sentia um pouco melhor quando a minha campainha tocou.

Achei estranho, mas me levantei para atender.

Dei de cara com uma mulher que devia ter seus vinte e poucos anos. Olhos verdes, ruiva dos cabelos cor de ferrugem. Provavelmente pintados, pois destoavam um pouco das sobrancelhas. Ela sorriu e estendeu a mão para me cumprimentar.

- Bom dia, vizinho.

Percebi que ela estava se instalando no apartamento do lado. E trazia consigo uma mochila nas costas.

- Bom dia. – Respondi laconicamente.

- Você saberia dizer onde fica o registro de água externo? Cheguei hoje aqui e vi que não tem água no meu apartamento.

- Fica ali, junto do extintor de incêndio. – Falei apontando.

Fui andando com ela até o local, abri a pequena portinhola que abrigava os registros. Dava pra ver que o que levava água para o apartamento dela estava fechado.

- O dono deve ter fechado pra evitar vazamento. Como esse apartamento é usado muito por aluguel de temporada, as vezes quem usa não se preocupa em fechar bem as torneiras – Comentei.

- É verdade. Obrigada. – Ela falou, depois de abrir o Registro.

- Não foi nada.

- Meu nome é Lua... Luana. E o seu?

- Cícero.

- Você mora aqui há muito tempo?

- Não. Estou aqui tem uns meses apenas.

- Vou ficar aqui por umas semanas.

- Veio à estudo? Trabalho?

- Vim dar um tempo... tirar um tempo pra mim.

- Entendi. Às vezes é bom.

- Te vejo por aí, então.

Luana me deu um abraço, entrou no seu apartamento deixando um perfume doce para trás.

Assim que ela desapareceu por trás da porta, voltei pra o quarto com a impressão de que já a tinha visto em algum lugar.

3

Luana bateu na minha porta novamente naquela noite. Trazia consigo uma garrafa de martini.

- Boa noite. – Ela falou com um sorriso aberto.

- Boa noite Luana.

- Tá ocupado?

- Não exatamente.

- Quer tomar alguma coisa? Estou cozinhando. Ia abrir essa garrafa, mas não gosto de beber sozinha.

- Pode ser.

- Ah. Que bom.

- Vou só tomar um banho e bato lá.

- Tudo bem. Vou deixar a porta aberta.

Luana virou de costas e voltou para o seu apartamento.

Fechei a porta e fui para o quarto. Tomei um banho rápido e me vesti sem muita pressa.

A sensação de familiaridade com Luana persistia e chegava a incomodar. No fim, aceitei que devesse ser apenas uma impressão minha.

Depois de pronto, andei até o apartamento dela.

A porta estava aberta como ela tinha dito que deixaria.

Entrei e a vi à beira do fogão, com um avental ao redor da cintura.

- Cheiro bom. – Murmurei.

- Está quase pronto. – Ela falou.

- Posso ajudar?

- Não precisa. Quer Martini ou cerveja?

- Cerveja.

- Pega na geladeira e bota uma dose de martini pra mim, por favor.

Fui até a geladeira e peguei uma lata. Depois peguei gelo no congelador, e botei num copo junto com o martini.

Luana apagou o fogo e se virou pra mim. Entreguei o copo a ela e fomos até a sala.

Ela tomou um gole antes de se sentar no sofá e eu fiquei em pé, na parede ao lado da janela, olhando para o lado de fora. O apartamento dela tinha uma visão para a rua que o meu não tinha. Vi lá de cima, a confusão da rua. Pessoas e carros competindo pelo espaço, flashes de luz e buzinas. Tudo misturado.

Incomodado, voltei minha atenção pra dentro novamente.

- Você trabalha com o que? – Luana perguntou, assim que me voltei a atenção para ela.

- Eu costumava ser jornalista. Hoje sou escritor.

- Isso dá dinheiro?

- Não muito.

- É uma pena. O que seria da humanidade sem os escritores?

- As histórias são mais importantes que os escritores. As histórias continuariam sendo contadas de um jeito ou de outro. Como eram muito antes da escrita ser inventada.

- Nunca tinha pensado nisso.

- E você. Trabalha com o que?

- Bancos... Trabalhei em alguns bancos... mas agora estou tirando um ano sabático.

- Entendo. Dar uma parada pode ser bom.

- É. Quando o capitalismo nos permite, pelo menos. Nem todo mundo pode se dar a esse luxo.

- É verdade. – Murmurei, tomando mais um gole da minha bebida.

- Você é casado? Tem namorada?

- Não. Fui casado... mas já faz um tempo que me separei.

- O que aconteceu? Você parece um cara legal demais pra estar sozinho.

- Acho que tínhamos filosofias de vida diferente. Ela dava valor demais às coisas que podia comprar. E eu prefiro as que não tem preço.

- Complicado né? Pessoas são difíceis. Relacionamentos também.

- Sim. Por isso ultimamente tenho preferido ficar só.

- Tem quase quatro meses que não fico com ninguém.

- Por opção? É difícil uma mulher bonita como você ficar sozinha... a não ser que queira.

- Sim. Eu tenho fugido de certos tipos de problemas.

- Entendo...

- Mas obrigada, viu?

- Pelo que?

- Pelo bonita... Não sou muito acostumada a receber elogios.

Eu não sabia o que dizer em relação aquilo, apesar de parecer algo absurdo, eu tive certeza de que não se tratava de falsa modéstia.

Luana deixou o copo de lado e veio andando até mim. Parou bem ao meu lado e murmurou.

- Eu gostaria que você ficasse aqui comigo hoje, se quiser.

- Estou aqui, não estou?

Ela sorriu e encostou o corpo contra o meu.

- Estou cansada de me esconder... de ficar só.

- Mas você mal me conhece.

- Eu não preciso conhecer pra ter vontade...

- Vontade?

Ela se afastou um pouco e tirou a blusa que estava usando, expondo os seios com a maior naturalidade do mundo.

Fiquei com o olhar perdido no corpo dela, sem saber como reagir. Não era algo que acontecia todo dia comigo, afinal.

Luana grudou o corpo ao meu novamente e colocou as mãos debaixo da minha camisa. Nesse momento eu não conseguia pensar em mais nada. Cedi e nos beijamos longamente.

Eu nunca tinha me deixado levar por uma relação puramente carnal como aquela. Mas ao mesmo tempo, eu sentia que tínhamos algo em comum nas nossas fugas do mundo. Talvez por isso eu me sentisse tão conectado, apesar de toda a improbabilidade daquela situação.

Luana arrancou a minha camisa e caímos no chão, presos um ao outro.

Ela transparecia um certo desespero e ansiedade. Como matasse algum tipo de sede, ou de vício.

Foi descendo pelo meu corpo e me colocou inteiro na sua boca. Subiu, desceu, chupou e me lambeu até que eu quase não consegui mais me segurar. Parou de súbito, como se tivesse recobrado a consciência depois de um delírio. Havia um sorriso desvairado nos seus lábios quando ela se levantou e me olhou de cima, pouco antes de começar a cavalgar. O olhar dela era quente, ácido, inflamado... Não sei dizer. Era doentio e carregado de loucura. Ela espalmou as mãos no meu peito com força e curvou as ancas, me apertando com força.

Quase já não havia mais nada de mim para segurar, quando percebi que ela estava perdendo o fôlego. Virei bruscamente e a coloquei por baixo de mim. Segui uma intensidade e força que não era comum a mim nesses momentos. Estoquei como se tentasse matar alguma coisa. Como se estivesse em uma luta, ou espancando um saco de areia. Ela pareceu gostar, pelos gemidos que jogou no ar.

Quando terminei, caí de lado, sem fôlego com a vista escura. Ela sorria satisfeita, com as mãos agarradas aos próprios cabelos.

- Puta merda. – Ela gritou, quando eu ainda não tinha recuperado a respiração.

- O que foi? – Perguntei abrindo os olhos.

Havia um homem, que tinha quase dois metros, encostado na porta, nos olhando.

- Foi pra isso que você fugiu? – Ele perguntou, acendendo um cigarro.

- Não te interessa. – Ela respondeu.

- Claro que me interessa.

- Eu não te devo nada.

Ele riu.

- Se levante e vá se vestir que eu quero ter uma conversinha com o seu amigo.

- Olha, cara, não tenho nada pra falar com você – Respondi, enquanto catava as minhas roupas.

- Não é você que decide isso. – Ele falou, mostrando uma pistola na cintura.

Entendendo a gravidade da situação, me levantei e me vesti rapidamente. Luana se levantou também e correu para o banheiro.

- Ok. O que você quer? – Perguntei.

- Você sabe com o que está se metendo, rapaz?

- Só estava tomando umas cervejas com minha vizinha. Ou pelo menos essa era a ideia inicial.

- Pelo jeito você só é mais um que ela iria fazer de besta.

Fiquei parado, avaliando a situação, sem saber o que dizer.

- Quer um cigarro? – Ele perguntou.

- Pode ser.

Ele me passou um cigarro e um isqueiro. Eu acendi e fiquei encarando a janela, como se fosse uma rota de fuga possível, apesar de estarmos no décimo andar.

- Você parece um cara legal, mas esse tipo de coisa não pode passar impune.

- Estou entendendo. – Falei, sabendo que estava realmente fodido.

Antes que eu pudesse reagir, o homem avançou na minha direção e me acertou com força no estômago. Depois sacou a arma e deu uma coronhada na minha cabeça. Caí imediatamente no chão e percebi o sangue escorrendo sobre os meus olhos, sem que eu pudesse fazer nada.

Nesse momento, Luana saiu do banheiro com uma maleta.

- Tá aqui o resto do dinheiro. Pode levar. Mas deixa ele vivo.

- Pra que? Pra ele me entregar?

- Ele não vai falar nada.

- Quem me garante? A polícia está atrás de mim depois do último banco. Não posso brincar com a sorte.

- Tá. Tudo bem.

- Você vem comigo?

- Claro que vou. Ou acha que ia deixar você gastar minha parte?

Ele riu. Ela também.

- Quer uma cerveja? – Ela perguntou.

O homem me olhou caído no chão, me deu um chute nas costelas e respondeu com um sorriso no rosto.

- Claro.

- Tem algumas na geladeira. Pode pegar. Vou tomar um banho. – Luana falou.

Ele guardou a pistola na cintura e andou em direção a geladeira. Nesse momento Luana puxou uma arma que estava dentro da maleta e deu um tiro nas costas dele.

O homem caiu de uma vez só, como se fosse um saco de areia. Ela andou até ele e observou enquanto o sangue escorria.

Foi a última coisa que me lembro de ter visto antes de apagar.

4

Eu saí do consultório com a pior das certezas. Eu tinha menos de um ano de vida. As palavras do médico pareceram ter ficado gravadas na minha mente. “É terminal... intratável”

Ao mesmo tempo achava engraçado que eu só tivesse descoberto o câncer por causa de Luana e do seu “parceiro”. Foram os exames pela pancada na cabeça que acusaram o tumor que ia se entranhando no meu cérebro. Sorte e azar, foi a primeira coisa que pensei quando o médico disse que havia algo de errado no exame. Eu só não imaginava que era algo tão errado.

Saí de lá decidido a não fazer nenhum dos tratamentos que ele oferecera. Se era pra morrer, preferia morrer com alguma dignidade.

Enfim. Perdi muito tempo também tendo que prestar vários esclarecimentos sobre como eu estava na cena do assassinato de um assaltante de banco procurado em vários Estados.

Foi uma inconveniência, mas pude provar que não tinha nada a ver com o assassinato e com o dinheiro que eles haviam roubado de caixas eletrônicos. No fim, tive quase certeza que Luana tinha conseguido fugir.

Talvez eu nunca mais fosse vê-la...

Sorte e azar.

Não que eu tivesse muito tempo pela frente para esperar por um encontro desse tipo.

5

Não há glória nem romance na derrota, por mais que os livros e filmes insistam em tentar demonstrar o contrário. Para a maioria a vida só é uma luta sem sentido para se distrair do fim inevitável. São poucos os que aceitam a morte com naturalidade. Coisa só se adquire com muita filosofia ou na contemplação sincera da miséria e insignificância humana. No meu caso, eu nunca fui muito afeito à filosofia. E sinceramente, nunca consegui aceitar a inevitabilidade da aproximação da morte. Seja a minha, seja a de quem me era próximo.

Eu olhava para mim mesmo no espelho e via o valete de paus grudado na minha testa. Talvez o delírio tenha invadido a minha realidade desde que acordei daquele sonho. Talvez a loucura fosse chegar antes da morte. Como um tipo de ópio ou anestesia para afastar a dor do fim. Na minha situação, parecia até algo positivo.

Me sentei na cama, sem lágrimas pra chorar. Sem palavras para escrever. Só silêncio. Um silêncio doloroso e enlouquecedor.

Foi quando o meu telefone tocou. Havia uma mensagem sms.

Nela havia um endereço, e no fim um emoji de uma Lua.

Demorou alguns segundos para que eu entendesse do que se tratava.

Verifiquei onde ficava o endereço e vi que era uma casa à beira mar numa cidade vizinha.

Sem pensar, vesti uma roupa e peguei o carro. Apesar de já ter bebido naquela tarde. Dirigi até o endereço e dei de cara com a casa fechada. Parei o carro na frente e circulei a casa. Fui até a faixa de areia e vi uma mulher parada, em pé, olhando o mar.

Fui andando em sua direção e quando já estava perto, ela se virou, como se soubesse que eu estava ali.

Tinha os cabelos escuros. Tão pretos quanto café.

Reconheci imediatamente de quem se tratava. Apesar de que dessa vez os seus olhos eram verdes e faiscantes.

- Tive medo que você não viesse. – Ela falou.

- Mas eu estou aqui, não estou?

Meti a mão no bolso da minha calça e tirei uma carta de baralho, um valete de paus, e ofereci para ela.

Ela hesitou a princípio, depois pegou a carta.

Então sorriu o sorriso mais lindo e perfeito que eu já tinha visto na minha vida.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 10/06/2022
Reeditado em 10/06/2022
Código do texto: T7535002
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