Linhas tortas

Esther ligou o aquecimento e entrou debaixo do chuveiro. Parecia que algo havia espatifado dentro dela. A água lavou os seus cabelos e as manchas de sangue em seu rosto. Fiquei olhando, até que cansei de esperar que ela falasse algo.

Voltei para a sala e me sentei à beira da janela, numa posição onde alguns pingos de chuva caíam sobre mim depois de quebrar no parapeito.

Esther saiu do banheiro, aparentemente mais calma. Enrolada numa toalha, ela foi até a cozinha e voltou com uma caneca de café fumaçando. Não trocamos nenhuma palavra.

Ela foi até o quarto e eu a segui depois de alguns minutos.

Esther estava com um corte acima da sobrancelha e vários arranhões ao redor do pescoço. Mas parecia que aquilo não significava nada para ela.

- Você poderia finalmente me explicar o que aconteceu?

- Por que você tanto quer saber? – Ela respondeu depois de um curto período de silêncio.

- Porque não é todo dia que eu tenho que sair de casa pra te buscar numa delegacia.

- Se o problema é o dinheiro do advogado, não se preocupe, te devolvo segunda feira.

- O problema não é o dinheiro, você sabe.

- E qual é?

- Eu só quero entender a situação.

- Eu passei do ponto, ok? Mas não me arrependo.

- Tô percebendo.

- O que você faria no meu lugar?

- Não sei. Não sei dos seus motivos.

- Ela espancou a menina... O que você queria que fizesse?

- Quem?

- A própria filha, cacete. Quem é que consegue fazer um negocio daqueles com a própria filha?

Dava pra ver a raiva transbordando no olhar dela. Como se Esther fosse capaz de fazer tudo de novo se tivesse a chance.

- Você pode começar pelo começo? – Murmurei.

- Ok.

- Então.

- Quarta feira fui na casa de Elis e percebi que tinha algo de errado por lá. Júlia estava trancada no quarto e dava pra ouvir que ela estava chorando. Confrontei Elis, e ela disse que não era nada. Coisa de adolescente. Eu fingi que acreditei, por que não estava afim de discutir, afinal eu não tenho nada a ver com a forma que ela cria a minha sobrinha.

- Certo. E aí?

- Elis saiu pra ir no mercado, e eu fiquei na sala assistindo TV. Júlia saiu do quarto assim que percebeu que a mãe não estava em casa. Ela correu e me abraçou. Ficou uns dez minutos sem conseguir falar uma palavra sequer. Quando se acalmou, nós conversamos e só aí entendi a raiz do problema.

- E qual era?

- Nada demais... coisa de adolescente realmente. Mas pra a mãe dela não era uma besteira qualquer.

- Não estou entendendo.

- Júlia está apaixonada... Por uma colega de escola. As duas estavam se descobrindo, e por aí vai. Nada demais. As duas tem a mesma idade, 14 anos. Só deram uns beijos. Mas Elis descobriu e fez uma tempestade num copo de água. Ameaçou bater na menina. Disse que aquilo era pecado. Que ela iria pro inferno... essas coisas.

- Não sabia que sua irmã era tão religiosa assim.

- Pois é. Não sai de dentro da igreja... Mas pelo jeito a mensagem não entrou corretamente na cabeça dela. Por que o amor ao próximo que ela tanto arrota na igreja virou ameaça de bater na própria filha.

- E ela bateu mesmo?

- Bateu sim. Quando viu uma foto das duas juntas no celular de Júlia. Bateu com o cinto a ponto de deixar a menina toda roxa.

- Como você soube disso tudo?

- Por azar dela, eu resolvi passar lá justamente na hora. Ouvi a gritaria e o discurso moralista que ela estava jogando na cara da menina.

- E aí?

- E aí que eu mostrei a ela uma passagem bíblica.

- Sério? – Perguntei sem entender.

- Mateus 26:53...

Poucas vezes eu tinha parado pra ler a bíblia, então não fazia ideia de qual passagem ela estava se referindo. No fundo eu sabia que Esther sabia disso, então esperei que ela explicasse.

- Quem com o ferro fere, com o ferro será ferido... Não é exatamente assim que está no livro, mas essa é a ideia. – Ela concluiu

- Entendi. Mas onde Júlia está agora?

- Com o pai. Ele é uma pessoa um pouco mais razoável. Talvez por isso tenha se divorciado de Elis.

- Então vai ficar tudo bem no fim das contas.

- Acredito que sim.

Esther tomou mais um gole do caneca de café e deixou na mesa de cabeceira. Depois se deitou, abraçada a um travesseiro.

2

Acordei pouco depois de amanhecer, com o choro de Esther. Nunca tinha visto ela tão desesperada. Ofegante, com o rosto coberto de lágrimas, ela tentava recuperar o fôlego, enquanto murmurava palavras quase incompreensíveis.

- A culpa disso tudo é minha. – Ela falou, quando conseguiu se controlar.

- Como assim, meu amor? Você não tem culpa de nada – Falei tentando acalmá-la.

- Você fala isso por que não sabe das coisas que aconteceram... Eu pensei que essa história ia ter um fim... mas nunca acaba.

- Não estou entendendo, Esther. O que você quer dizer com isso?

Esther se afastou de mim e se levantou da cama. Abriu o armário, arrancou uma carteira de cigarros da bolsa e acendeu. Fazia um bom tempo que ela não fumava. Mas por toda a situação, achei que um cigarro talvez pudesse lhe acalmar. Depois de dar um trago, ela acendeu a luz, abaixou um pouco a calcinha e apontou para uma cicatriz.

- Você sabe o que é isso?

- Você me disse que era a cicatriz da laqueadura que você fez.

- Não. Não é.

- E então?

- Quando eu tinha 18 anos eu engravidei. Foi uma idiotice...

De um colega de faculdade. Algo não exatamente consentido. Eu estava bêbada, ele também. Sei lá, foi uma merda.

- Ele abusou de você?

- Olha. Por muito tempo eu tentei naturalizar e fingir que não. Mas a verdade é essa.

- Sinto muito, meu amor.

- Tudo bem. Já passou. Mas o problema foi que eu me vi grávida depois, e sinceramente não queria proximidade com o cara que me engravidou. Nem me sentia pronta pra ser mãe.

- E o que aconteceu?

- Bem. Elis tinha acabado de casar. Você sabe. Ela nunca se preocupou em fazer faculdade, como eu. Ela estava presa demais no delírio religioso que ela tinha se metido no fim da adolescência. Estava contente em ser dona de casa pro marido... Não sei como minha irmã gêmea poderia ser tão diferente de mim, mas posso dizer que os olhos dos meus pais sempre brilharam mais quando olhavam pra ela. Quando contei da gravidez, meus pais me culparam e não deixaram que eu procurasse uma saída pra aquela situação. No fim, o acordo foi que Elis iria adotar a criança.

Fiquei sem saber o que dizer, ou mesmo que pensar.

Só me levantei da cama e andei em direção a ela. Nos abraçamos e Esther chorou novamente, com a cabeça encostada no meu peito.

- Júlia sabe disso? – Perguntei.

- Não. E eu não sei como poderia encará-la se ela soubesse da verdade.

- Acho que ela entenderia.

- O que tem pra entender? Que eu abandonei minha própria filha?

- Você não abandonou ninguém, Esther.

- Talvez o ponto de vista dela seja outro.

Novamente, fiquei calado e me resumi a abraçá-la e esperar que tudo ficasse bem.

3

Esther estava no banho quando tocaram a campainha. Quando abri a porta, dei de cara com Júlia. Ela usava um casaco de manga comprida, provavelmente pra esconder as marcas das surras.

Ela tinha um sorriso amarelo no rosto e parecia ter chorado bastante.

- Minha tia está? – Ela perguntou depois de alguns instantes de silêncio.

- Está no banho.

- Posso entrar? – Perguntou.

- Claro meu bem.

Deixei que ela entrasse, e a menina andou até o sofá. Se deixou cair sentada e escondeu as mãos entre as pernas.

- Você está bem? – Perguntei depois que fechei a porta.

- Mais ou menos.

- Sinto muito pelo que aconteceu. Mas vai ficar tudo bem.

- Quero muito que fique. – Ela disse tentando segurar as lágrimas.

Esther saiu do banho, ainda enrolada na toalha e olhou assustada para a garota sentada no sofá. Júlia se levantou num pulo e correu até ela.

As duas se abraçaram, entre lágrimas. Então, Júlia se afastou e puxou um papel dobrado de um bolso do casaco.

Era uma certidão de nascimento.

- Eu não tô nem aí pra o que está escrito nesse papel, nem pras coisas que aconteceram. Eu só queria que você fosse minha mãe. Se você quiser, é claro.

Esther caiu sentada no chão e começou a chorar descontroladamente.

Júlia se abaixou e sentou do seu lado.

Enfim, Esther enxugou as lágrimas e a puxou pra o seu colo.

- Claro meu amor. Claro que eu quero.

Vendo aquilo eu tive certeza que o amor era maior do que tudo. Talvez até maior do que o deus que o homem inventou,

e do que todos os livros, e todas as suas linhas tortas.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 04/07/2022
Reeditado em 04/07/2022
Código do texto: T7552486
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