Galimatias

Aquela fila interminável, cabeças e mais cabeças apertadas, desencontrando-se, dando umas nas outras. Tem espaço nem pra respirar, melhor é evitar até de se mexer, caso estiver sufocando, no máximo é olhar pro alto, meio que de reza, afinal, pra melhora nenhum pedido é vão. Cheiro pesado, ar pesado, as grades pesam o clima. Um cubículo que não cabem seis, enfiam vinte, e ainda falam de direitos. De pensar na liberdade, muitos irmãos querem lembrar o que já esqueceram: voar, o ar correndo, ou só o pé no chão, o contato da terra mesmo. Como será que ninguém age pelo que acontece aqui meu Deus? Não somos todos criaturas suas?

Da infância lembro bem, a proximidade de Mamãe e a vida no campo. O calor de nosso ninho, simples, mas confortável.

Pára.

Não, eu não.

Mexeram tanto no meu entendimento, esse confinamento, efeito brabo que impede o raciocínio; eu lembro só do pouco espaço, difícil de acostumar e comida à vontade dia e noite pra gente engordar, meus irmãos separados e essa lembrança fosca, arranhando lá do fundo, como afogado se batendo, um carimbo e um anel de ferro na perna - são mágoas que tenho guardado. A gente cresce rápido, é um abrir e fechar de olhos e a gente é adulto. Vi vários irem e não voltarem, cada vez que saía outro, este ansiava nunca ter vez de ter de ir. Às vezes um rebuliço, gritaria, que de nada adiantava. Mas a gente seguia, numa toada triste por não se importar. Não é o caso de propagação da espécie, e sim questão de sobrevivência, pode não parecer mas o que há é além do que se vê, e brigar contra tal fluxo é luta perdida de antemão, pois, sabido é quem conhece o inimigo - neste caso, esperteza é não acabar depenado.

Ô angústia de forca, colarinho apertado de deixar roxo o pescoço mais grosso de milho que houver por aqui. Uma engorda falsa, de gás e água, como balão de festa estranha: triste. E cada vez que nova leva se faz, vem junto apressado fazendo a fila andar, ele, o pesar tão repelido na base da bicada, da esporada. De tão gordo, peito farto, coxas grossas, fica ruim de andar. Faz parte do plano deles, mas o que é dos tais, tá guardado, ninguém sai livre no fim das contas. Até remédio dão pra gente; creio que são ruins demais esses uns, que agradam e apedrejam com a mesma mão, mão suja de sangue e fezes, mão de assassinar. Será que nos falta pêlos meu Deus? É isso?

Depois de tanto sofrer, nos pegam, nos levam, nos deixam. Das grades estreitas pra outras maiores, pulando assim, sem parar. Do bate e rebate, muitos coitados não chegaram e, desta forma, devem estar melhor. Aí largam a gente por ali, um lugar novo, de cheiro diferente, mais entranhado de morte na serragem do chão. E ela de novo, a maldita da espera.

Eles nos pegam e nos carregam, um homem menor que os outros olha pra nossos irmãos que se foram e diz coisa entre os dentes, dá pra notar os olhos faiscando, os dentes triscando. Dá-se a calmaria. A natureza de meu Deus tem das suas peças, o silêncio confortador é artifício pra gente não se impressionar, mas nem ele pode se enganar. Pra meu azar minha grade é a última da pilha, por cima, com visão para o corredor.

Horror.

São máquinas e máquinas, cadáveres em fila, dependurados pelos pés, sem pele, sem cabeça. Posso ver já alguns dos companheiros de jornada e de vida indo de encontro ao criador. Penduram. Degolam. Colhem o sangue. Aí vem o caldeirão fervente, dúzias de uma tacada só. Num frenesi de barbárie ilimitada batem pinos de borracha pelo corpo, arranca-penas, um instrumento de dar calafrio em fantasma. Escapa. Só pra cair na mão de outro que, com destreza, abre a barriga e arranca as tripas desenrolando tudo por ali: memórias, idades, destinos. Não somos nós bípedes meu Deus? Que nos falta então?

Repete-se por longas horas a agonia. Até que cessa. O dia vira noite, assim, de hora pra outra, e eu achava que ele era eterno. Vem a comida, engodo que já não me faz, tamanha a desolação. Amontoam-nos todos juntos numa gaiola grande cheia de andares, lembra as de lá de casa. No dia seguinte, como a lua é lua, satisfações vão ser dadas. O céu, quem diria, é ser assado inteiro ou mutilado, com o sabor que ao freguês convier.

- Mãe, porque eles olham assim pra gente?

- Sei lá garoto! Você tem cada uma... Isso, esse gordinho aí mesmo, é.

* “Galimatias”. Segundo o Aurélio:

1. Discursos arrevesados, confusos, obscuros; babel de palavras cujo significado mal se pode entender.

2. Música. Composição híbrida, sem forma definida.

Douglas Evangelista
Enviado por Douglas Evangelista em 05/12/2005
Código do texto: T81078