Em Cena: Poesia & Assombro

Cheguei desarmada, coração esvaziado, datas comemorativas servem pra foder com a vida da gente, ser adulto é não ter um minuto de paz, via tanta graça até um tempo atrás, ia comprar presentes, agora um dia assim serve para fazer os olhos transbordarem, melhor ocupar as horas, levar meu corpo pra distrair meu cérebro, escolhi uma poltrona como quem não espera nada, o espetáculo tinha sido elogiado, li algo, mas prefiro (tentar) zerar minhas expectativas.

Pequena, magra, suave, ainda à paisana, a pessoa pisou tapete que estava no centro do cenário que se iluminou com uma luz azulada.

No palco aquele enorme, vestia branco, olhos profundos, alma exposta, boca que parecia uma caverna avermelhada, como uma falésia, grunhindo, e entendia cada gesto, cada urro, minha alma acesa vibrava com aquela pessoa a se desdobrar na minha frente, espichava, mudava de cor, quase alterava sua forma, parecia inumana, eu olhava em silêncio, intuo que carregamos vazios parecidos, apesar de sermos diferentes, não sei seu nome, nem idade, me disseram que ela vem de longe, Com figurino só um vestido de seda, dançando, performando butoh, o corpo quase todo à mostra, a pouca roupa transparente, uma cinta ajustada na cintura, pele pintada de branco, um delicado tapa sexo e mais nada. Durante o espetáculo fui sendo absorvida pelos sons que criavam disforme melodia, bem que um escritor me disse um vez: “música é feitiço”.

Os uivos do vento, o barulho do chacoalhar da terra, o canto de uma baleia que dançava mostrando suas cracas no azul do mar, brincando, como se fosse uma criança gigante, cheia de energia, me atravessam como que querendo comunicar o que não pode ser dito com palavras.

Meu fígado estava remoendo, eu precisava digerir algo, o que pode ser? Sentia uma ligação com aquela figura, talvez uma corda invisível nos conectasse.

Tenho sonhado tanto com fantasmas, durmo, acordo sorrindo, lembrando de quem há tempos está em outra dimensão, alimento a minha fé no sobrenatural, meus pais durante às noites conversam comigo, minha avó me abraça, minha irmã sorri, o cheiro forte do café passado, me vejo no quintal da casa da infância, o prédio da escola que parecia enorme para a criança ainda miúda, meu olhar curioso capaz de aprender com cada novo ano. Logo que deito durmo e sonho bastante, ultimamente vejo todos eles e todas elas vivos, eles alimentam uma faceta minha que desconheço e gosto, que cuido, anoto as cores, as sensações e falo na terapia. Talvez o ser com a pele toda branca se pareça com uma alma penada.

Levantei para bater palmas ainda entontecida. Nessa hora a artista magra, pequena, com traços delicados chegou na beira do palco me deixou intrigada, não parecia a mesma que instantes mexia flores secas, terra úmida, rosas vermelhas, ela tinha me mostrado suas vísceras, sem palavras, apenas com sons, com gestos, olhos revirados, rosto enrugado de dor, quase querendo ser parida de novo, grande, parecia ter dois metros, vingou como quem foi expulsa do útero, e precisou se enraizar para renascer nessa mesma vida.

Sai da plateia , chamei carro de aplicativo pelo celular, fui para casa, meio zonza. Não consigo avaliar o que vi ali, fui sozinha, olhos vidrados, permaneci imóvel durante quase duas horas.

Horas depois de tomar um banho demorado, dentro de mim tinha um quentinho de esperança, vontade de dançar, de desenhar no papel canson ouvindo música, querendo contar para alguém sem saber como de qual modo meu espírito tinha sido tocado por um tipo de atriz-pessoa-vulto-espírito, estranha, bonita, sem máscaras. Somente a magia teatro tem essa força pra provocar.

Manuh DaNorte
Enviado por Manuh DaNorte em 19/05/2025
Reeditado em 02/06/2025
Código do texto: T8336470
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