Anos de chumbo

Tudo começou com aquele comício da Central do Brasil, no dia 13 de março de 1964, quando uma grande multidão - mais de 200 mil pessoas - se reuniram para o comício e exigir as reformas de base, medidas nacionalistas e populares e a ampliação das liberdades democráticas.

Após três horas de acalorados discursos, onde João Goulart afirmara que era hora das reformas e que nenhuma força seria capaz de impedir o governo de continuar a assegurar absoluta liberdade ao povo brasileiro.

Mas veio o golpe de 31 de março de 1964 e estava instaurado o Regime Militar, com a implantação do autoritarismo e supressão dos direitos constitucionais, iniciando-se o terrível período da perseguição política, prisão e tortura dos opositores.

A nossa turma era formada de jovens, recém entrados na adolescência, conhecíamos pouca coisa de política, mas mesmo assim, não éramos tão desinformados. Em nossa casa era comum assistirmos aos noticiários da televisão e também ouvirmos os comentários dos adultos com relação a tudo que ocorria em nosso redor. Assim, sabíamos que vivíamos um período de repressão e proibição de expressão política imposto ao povo. E hoje posso olhar com mais clareza para aqueles momentos vividos e constatar que atravessávamos amargos dias de total falta de liberdade, pois o golpe militar fora seguido pela ditadura. As notícias da repressão chegavam-nos como se fossem referentes a fatos de um mundo à parte, muito distante de nós, e não era bem assim. Os sinais da repressão a cada dia iam se insinuando mais e mais e chegavam bem perto, ameaçando também nos atingir em cheio.

Em 1968 estudantes reuniram-se no Calabouço para protestar contra as precárias condições de higiene do seu restaurante, quando foram surpreendidos com a invasão policial, provocando confronto entre policiais e estudantes, resultando na morte do secundarista Édson Luiz Lima Santo.

Ao constatarem a morte do estudante, seus colegas levaram seu corpo para o saguão da Assembléia Legislativa, onde se formou uma fila de populares para velar o corpo, em meio a violentos discursos de vários políticos. Estava iniciado um dos primeiros protestos contra o regime opressor.

Os detalhes do ocorrido nos chegaram através de um primo que também era aluno do Instituto Cooperativo de Ensino, que funcionava no Calabouço, colega de turma do Edson Luiz e de outro jovens pobres que almoçavam no “bandejão” e que, na verdade, nem eram ativistas da luta contra a ditadura, simplesmente lutavam pela preservação do restaurante.

O relato feito pelo meu primo me despertou a curiosidade de querer ver de perto o que se passava. Foi assim que consegui convencê-lo a ir com ele na missa de sétimo dia da morte de Edson Luiz celebrada na Candelária. Chegamos bem cedo e nos posicionamos bem próximo do altar e dali observamos a nave da igreja ir se abarrotando gradativamente. Os que chegavam informavam-nos às quantas andavam as ruas e proximidade da Candelária. Pelotões de choque, agentes do Dops e fuzileiros navais haviam cercado a Praça Pio X. Até mesmo aviões da FAB sobrevoavam o local.

Já no final da missa podíamos sentir o efeito do gás lacrimogêneo. O pânico começou a tomar conta da cerimônia mal terminada. Como estávamos próximos a uma porta lateral conseguimos atingir a rua sem passar pela entrada principal, totalmente ocupada pelas forças da repressão, mas mesmo assim fomos perseguidos por soldados montados que nos amedrontavam com palavras de ordem e com o ruído das patas dos cavalos. Em desabalada corrida chegamos a um local seguro, pegamos a condução que nos levaria de novo à segurança de nossas casas.

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Foi uma noite difícil de ser dormida. Os fatos ocorridos durante aquele dia não me deixaram conciliar o sono. Fiquei repassando os acontecimentos do dia e nada de dormir. Lá fora uma chuva miúda cismava em cair sem trégua. Aproximei-me da janela do meu quarto, que dava para a rua iluminada por um único lampião pendurado no poste da esquina próxima e constatei que realmente não havia viva alma, os moradores vizinhos se refugiavam em suas casas, desestimulados pela chuva e céu sombrio, cheio de nuvens escuras.

Como eram diferentes os dias quentes de verão! Não perdíamos tempo em assistir televisão ou ir cedo para cama, ficávamos até tarde brincando de pique, bandeirinha, jogos em que todos, meninos e meninas, participavam, sem discriminação. Eram verdadeiras batalhas para ver quem era o melhor. Ou, ainda, simplesmente conversávamos, os mais ousados tentavam uma paquera, principalmente quando surgia uma priminha de um de nós, moradora de outra cidade, em férias.

Voltei a deitar. Revirei-me na cama em busca de uma posição adequada ao sono. Finalmente consegui dormir.

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Despertei num pulo, sobressaltado pelo toque da campainha da porta da frente. Não era para estranhar: no subúrbio era quase comum aparecer um cobrador, alguém que simplesmente se equivocara no endereço, ou quem sabe, algum mendigo em busca de esmolas.

Um burburinho no corredor! Agucei os ouvidos. Ouvi a voz de minha mãe que conversava com alguém na sala. Pelas vozes, pude então perceber que eram pelo menos uns três homens dentro de casa, a constatação da realidade me trouxe mais preocupação e questionamento - porque minha mãe teria aberto a porta a estranhos? Seriam conhecidos?

A voz de um deles, de repente, passou a soar mais alto, agressiva. Minha mãe, porém, não se deixava intimidar.

- É um absurdo sem cabimento! Não posso acreditar! Dizia ela com bastante clareza.

Um dos homens insistia, com a voz mais branda.

- Não, minha senhora, não se trata de absurdo, trata-se, sim, de ordens, e a senhora pode ficar ciente que não estou fazendo isto por prazer. É nosso dever, cumprimos ordens.

- E não temos muito tempo para perder! - falou com raiva o outro, o que tinha a voz mais agressiva, que parecia comandar os demais.

Eu, do meu quarto, passei do susto para raiva, pois percebia que alguma coisa não ia bem e precisava ficar ao lado de minha mãe.

A minha entrada na sala basicamente nada alterou na situação. Pude então constatar que realmente se tratava de três homens, bem vestidos, paletó, gravata e cara de poucos amigos, ou melhor, nada amigos.

- Que está havendo aqui? - Perguntei e me dirigi para minha mãe, que estava sentada numa poltrona. A cabeça baixa apoiada pelas mãos, em lamentável desamparo.

Não obtive qualquer resposta. Os intrusos me olharam, pareciam surpreendidos.

- Quem é este garoto? - perguntou um deles.

- É meu filho. - Respondeu minha mãe, mais do que depressa e, nervosa começou a chorar tentando me explicar o que estava ocorrendo, ainda que resumidamente.

- Calma, meu filho, muita calma, estes senhores estão querendo falar com seu tio Mazinho... - disse ela, sendo bruscamente interrompida por aquele que parecia ser o comandante dos invasores.

- Bem, minha senhora, não queremos perder mais tempo, temos que começar. - Saindo em direção aos quartos, sumindo no corredor, nos recomendando ainda que permanecêssemos na sala, sem mexer em nada, o que me deixou mais revoltado, pois afinal de contas estávamos em nossa casa, eles sim, eram os intrusos.

Sentei-me ao lado de minha mãe, tentando tranqüilizá-la e desejando saber o que estava havendo.

- Afinal, quem são estes caras, que invadem nossa casa, sem mais nem menos? Que direito têm para fazerem essa bagunça toda? - Pelo barulho que faziam pude observar que abriam armários e reviravam gavetas.

- Eles se apresentaram como policiais e vieram em busca do seu tio. - Disse ela, sem conseguir controlar o choro.

- Mas o que é isso?!! Meu tio não é ladrão nem assassino! - Explodi sem me conter. - Tio Mazinho é uma pessoa digna e merece todo respeito, esses homens não percebem que estão enganados, cometendo uma injustiça... - Dizendo isso aos berros, sem conseguir me controlar, dirigi-me ao corredor. Estava disposto a enfrentar os tais intrusos. Dei um salto, concentrando toda minha indignação disposto a por um basta àquela situação absurda, dirigi-me ao corredor que dava acesso aos quartos. Um dos homens me interpelou.

- Você é surdo, não ouviu que a ordem era permanecer na sala? Olha aqui, o pirralho, não estou gostando de ser contrariado, não tente bancar o engraçadinho! Quer complicar as coisas? - Agarrando o meu braço com brutal força me fez retroceder em meus passos e em toda minha indignação sem, no entanto, me impedir de visualizar o interior do quarto do meu tio, totalmente bagunçado, tudo revirado, gavetas jogadas no chão, um verdadeiro pandemônio. Diante de tal brutalidade, apesar da palavra ofensiva ter atingido em cheio meu ego, pirralho eu?! Afinal, já me considerava adulto e responsável, não tive alternativa, voltei para sala e sentei-me ao lado de minha mãe.

- Você está louco, meu filho? Esses homens são da polícia, representam autoridade! - disse minha mãe.

Bastante contrariado com aquela situação, contra-argumentei. - Ainda não consigo entender como pode alguém ser autorizado a invadir a casa alheia e provocar tanta confusão.

Trêmula e soluçando, minha mãe tentou explicar o que estava acontecendo.

- É meu filho. Já não é a primeira vez que passamos por este constrangimento. Sempre foi assim, quando há um movimento de repressão nos governos autoritários de ditadura, os filiados do Partidão são sempre os escolhidos pelas autoridades governamentais a assumirem as responsabilidades daquilo que lhes parece ser crime. Assim, se há algum aglomerado de pessoas na porta de uma fábrica, reivindicando seus direitos e entre eles algum filiado do Partidão, não há dúvida este é logo apontado como agitador, desordeiro e portando, o responsável pela indisciplina, ou seja, é declarado como inimigo do governo.

O desabafo de minha mãe, em partilhar comigo o que era então segredo de família, fez com que ela se sentisse mais aliviada, já não soluçava e as palavras já saiam com mais facilidade. E eu, apesar da perplexidade dos fatos, ouvia com toda atenção, cada vez mais interessado pelo assunto.

Quando já estava no auge de entender melhor a figura do tio Mazinho, seus dramas, seus ideais, suas aventuras políticas, fomos interrompidos pelos invasores que retornavam de sua incursão no quarto do meu tio e toda casa, quem sabe em busca de alguma prova que incriminasse aquele que, para eles, parecia ser um perigoso subversivo. E, aos berros manifestaram suas contrariedades de verem frustradas suas pretensões.

- Então, onde está o grande covarde que não se apresenta para melhor esclarecer os fatos? - vociferou aquele que fazia questão de se mostrar como líder do grupo. Eu de minha parte, também manifestei minha indignidade pela ofensa ao meu tio. - Covardes são vocês que invadem a casa de pessoas honestas em busca de uma pessoa trabalhadora e cumpridora de seus deveres! - O homem avançou ameaçadoramente contra mim. - Olha aqui o moleque, não tende bancar o herói engraçadinho... - Nesse momento sua atenção se voltou de imediato para a porta da rua que começava a ser aberta, de pronto sacou sua arma, sendo imitado pelos demais, apontando as armas para a porta.

Para espanto geral, era tio Mazinho que voltava do trabalho. Tomado pelo susto, mas já entendendo o que se passava, tentou apaziguar a situação. Não teve a menor chance de sequer abrir a boca, foi logo interpelado pelo chefe dos invasores. - O senhor está preso! Por favor, não tente dificultar as coisas. - E sempre com a arma em punho, dirigiu-se ao telefone sem pedir licença e pôs-se a discar. - Alô! Quero falar com o Delegado Amílcar. - Aguardando um breve momento. - Pronto chefe. Já temos o homem em nossas mãos! Sim chefe, não se preocupe ele não escapa. Até logo, estamos a caminho. - Mal largou o telefone dirigiu-se ao meu tio prontamente e, com tamanha brutalidade colocou-lhe um par de algemas. Meu tio não esboçou a menor reação, resignado, parecia já estar acostumado com aquelas surpresas.

Sim, os sinais da repressão chegaram bem perto, atingindo-nos em cheio. Nunca mais tivemos notícias do nosso querido tio.

Laerte Creder Lopes
Enviado por Laerte Creder Lopes em 01/04/2008
Código do texto: T927135
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