O vitral vermelho

A jovem hesitou por um instante: será que aquele desejo já não se tornara patológico? Mesmo que fosse, sua força em resistir já estava desgastada e saciar aquela vontade era a coisa mais importante do mundo.

Ela pegou um copo quebrado e encheu-o até derramar um pouco sobre a mesa. Pousou a garrafa sobre a mesa, próxima a uma grande marca de queimado e fitou-a por um momento. Como algo tão idêntico à água poderia ser tão nocivo? Como aquela garrafa tão barata e suja poderia, em verdade, abrir a mente, o corpo ou até a própria alma? Nós, os humanos, tão fortes, sábios e inigualáveis... sujeitos a força do etanol.

Ela elevou o copo, tomando cuidado para não se cortar com a parte quebrada e virou-o, de uma vez! A vodka queimava sua garganta como fogo queima a carne, ela pôde sentir a bebida bater quase violentamente no estômago vazio, causando dor. Ela pensou que se todos os seus dilemas se resumissem àquela dor sua vida estaria ganha.

Pôs o copo vazio de volta na mesa. Acabara de chegar ali uma senhora já de cabelos brancos, uns óculos velhos de armação dourada bem desgastada, apoiados na ponta do nariz. Ela caminhava bem lentamente, dando um breve aceno e um tímido sorriso ao homem que servia as bebidas:

__ Madamme Chagny!

__ A mesma Natan!

Exclamou a senhora com uma entonação amigável. Natan sacudiu a cabeça positivamente sorrindo. E ela disse:

__ Traga meu céu de verão!

E sentou-se muito vagarosamente à uma mesa tanto peculiar. Era de uma madeira aparentemente mias densa e escura, ficava um tanto separada das demais. A mesa parecia ser só dela. Ficava bem ao lado de um grande vitral vermelho.

Ela se afastou bem para o canto do banco e olhou pelo vitral para a rua. Uma densa neblina povoava o lado de fora do bar. Isso explicava o latente frio naquele âmbito.

Aquela, talvez, fora a cena mais bucólica que Nadine já vira: uma solitária senhora olhando a rua por um vitral vermelho esperando seu céu de verão. Mas afinal, o que era aquilo? Céu de verão... Não lhe importava mesmo saber, não era de sua conta.

Depois de analisar aquela cena ela sentiu os olhos pesados, pestanejando tanto... como se estivesse com sono. O cenário do bar saía do controle de sua lucidez e, quando Nadine menos percebia, este dava leves voltas e tremores:

__ Como pode?

Murmurou ela ainda fitando fixamente a senhora. Tanta visa, tantas experiências, pecados e virtudes bem ali: guardada no canto de um bar esperando um tal de “céu azul” chegar.

Pessoas passavam, olhavam... e continuavam passando, como se suas vidas estivessem prestes a acabar e a emergência da pressa fosse vital. Muitos correndo, outros nem tanto, e a senhora ali, vigiando a rua opaca através d’um vitral vermelho.

Nadine desligou-se por um instante da senhora por causa de um barulho que ouvira lá de fora, um certo baque seco. Pessoas se assustaram, mas logo tudo voltara a normalidade, como se o choque entre os carros nunca houvesse acontecido. Ela tomou em suas mãos a garrafa novamente e encheu só metade do copo desta vez. Deu uma olhada na parte quebrada e bebeu tudo. A vodka já não queimava tanto, agora causava apenas um ardor tanto incômodo.

As luzes do bar eram fracas, predominância ali dentro era da penumbra e de uma atmosfera levemente etérea causada pela fumaça de uns charutos.

Risos de uns jovens animados de um canto do bar, murmúrios de uns homens com cartola preta e generosos bigodes do outro, até mesmo um casal de estudantes parecia revisar ali o conteúdo de alguma avaliação. A senhora “flertando” com seu vitral vermelho, sozinha, esperando seu céu de verão.

Agora era difícil para ela manter-se tão alerta quanto quando entrara no bar. A fumaça fina rodopiava ao redor de sua cabeça, um cheiro de éter lhe veio de repente enquanto começava a tiritar de frio. Mas de onde vinha aquele cheiro? Éter... Lembrava hospital.

Não importava... ela sentia sua cabeça pesar tanto que mal conseguia equilibrá-la sobre o pescoço.

Natan finalmente reapareceu no recinto trazendo consigo sobre uma bandeja uma garrafa transparente meio arredondada com uma bebida azul. Tão azul, mas tão azul... era cristalina, lembrava a cor do céu em dia de verão.

Eia! O “céu de verão” de Madamme Chagny aparecera.

A senhora ainda parecia perdida pela rua quando Natan chegou à sua mesa. Ele pôs um copo sobre a mesa escura e só com o barulho ela despertou do transe. Um grande sorriso! Ela estava aparentemente empolgada com a garrafa. O garçom a serviu e logo foi atender à outra mesa. Ela observou o copo por um breve instante antes de beber.

Era triste olhar uma senhora empolgar-se com uma garrafa de “céu de verão”. O motivo? Sua única companhia era a bebida.

Nadine sentiu tanto medo quando percebeu isso... Olhou para a senhora e viu a si mesma: com um copo na mão e perdida em seu íntimo. Seu estômago se contorcia no seu abdome, os olhos mal abriam e o pouco que ainda conseguia enxergar rodopiava.

“Fugir?” ela pensou. “Pra onde?”. “Correr?” Se quisesse despencar no chão... talvez sim.

Que medo era esse? Pra quem já dormira na rua sozinha e já fora abordada no meio da noite por uns homens estranhos... Ela viu que aquelas situações não eram nada. Agora sim ela sentia medo, tanto, que seu queixo batia de tanto tiritar. Se pedisse socorro ninguém daria ouvidos, de certo a taxariam de louca.

Os sons do bar foram diminuindo, estava baixíssimo... Tudo o que girava estava turvo e o frio era intenso.

Ela pôde apenas dar uma última olhada para a senhora antes de cair com a cabeça sobre o copo quebrado. Uma dor aguda e o sangue morno percorrendo o rosto.

Ela já não tinha mais medo de estar sozinha.