O LABIRINTO

- O senhor sabe o que está fazendo aqui, não sabe?

- Sei. Bom, não sei exatamente.

- Como, não sabe exatamente? Sabe ou não sabe, o motivo pelo qual está aqui? Ou seriam os motivos?

- Imagino qual seja, mas não tenho certeza.

- Então, colabore. Eu pergunto, o senhor responde, e acabamos logo com essa danação. Me conte tudo, desde o começo.

- Até onde o senhor sabe?

- Isso é o senhor que vai dizer. Meu papel aqui é o de perguntar, e ao senhor é dado o direito de responder.

- Direito ou obrigação?

- Por enquanto, ainda é direito. Mas, dependendo de como o negócio se encaminhar, pode ser que vire dever. Aí fica ruim.

- Ruim, como?

- Você vai ver. Ou melhor, espero que não veja.

- E o que é que o senhor quer saber?

- Eu, não. Quem quer saber é a sociedade. E as vítimas, evidentemente.

- Vítimas? Que vítimas? O que houve?

- Vítimas, sim senhor. As moças, que o senhor chamou de putas.

- Eu?

- O senhor, sim. Não se faça de desentendido.

- O senhor vai me desculpar, mas eu não ofendi ninguém. Não que eu me lembre.

- O senhor possui qual grau de escolaridade?

- Superior incompleto. Tranquei no quarto semestre de Administração.

- Então o senhor deve saber escrever, não sabe?

- Sei, sim. Claro que sei.

- E não foi o senhor que escreveu uma carta onde, sem nenhum tipo de prova, embasamento ou mero indício, se refere a três garotas como sendo “notórias garotas de programa”?

- Mas espere um pouco. Essa carta...

- Não importa o destino da carta, ou como é que ela chegou aonde chegou. O que eu quero é que o senhor me diga se foi ou não o autor daquela patifaria.

- Bem, a carta...

- Não enrole. O senhor escreveu ou não a carta em que chama as meninas de putas?

- Mas doutor, elas são mesmo...

- Olhe aqui, quero lhe alertar que está perante uma autoridade de uma das instituições mais sólidas e respeitáveis deste Estado, está entendendo? De forma que, apesar de tudo, e da gravidade de sua ação, estou ainda lhe dando a oportunidade de se retratar perante as vítimas desta difamação torpe que o senhor praticou. Está entendendo?

- Estou, sim, senhor.

- Então é o seguinte, vamos acabar logo com essa história. Foi o senhor que escreveu ou não?

- Preciso ver a carta, antes, pra lembrar o que está escrito.

- Não precisa, não. O senhor sabe muito bem o que está escrito, não precisa ficar com essas burocracias todas pra ganhar tempo pra me enrolar. Olha, vou lhe dizer. O senhor fez foi uma grande batatada, moço. As meninas estão muito chateadas, o pai delas está vindo aí, e se ele lhe encontrar, nem sei o que pode te acontecer. O estrago vai ser grande. Olha, aqui, moço, difamar meninas de família, como o senhor fez, é algo muito grave. Detenção, na certa. O senhor tem que tomar mais cuidado.

- Mas ...

- O senhor está na Cidade há quanto tempo?

- Sete meses.

- Sete meses. Então, não conhece como é que funciona por estas bandas esse negócio de honra. Lá, da terra de onde o senhor vem, esse valores antiquados, como honra, família, moral, nome, respeito, com certeza andam meio fora de moda, que eu sei. Mas aqui a coisa é séria, moço. Por muito menos , já vi gente morrer na ponta de uma faca. E o senhor me apronta uma trapalhada dessas...

- Olha, quero lhe dizer uma coisa. O senhor vai me desculpar, não sei qual o seu grau de relacionamento com as moças que ficam na calçada da minha casa fazendo ponto, mas o que quero dizer é que não vou mais tolerar este tipo de coisa, entendeu? Onde há prostituição, há também tráfico e roubo. E isso eu não vou permitir que seja feito, praticamente, no quintal de minha casa.

- No quintal, não, meu amigo, você mesmo declara que elas ficam na calçada.

- Na calçada da minha casa, pela qual paguei, e onde pretendo viver e criar meus filhos.

- E quem foi que lhe disse que elas ficam ali fazendo ponto, como o senhor mesmo disse?

- Eu sei que ficam. E o senhor também sabe.

- E por causa disso, resolve escrever esta besteira ao Prefeito?

- Fui obrigado, depois de fazer inúmeras queixas na Delegacia sem que nenhuma providência fosse tomada. E sabe o que mais? Noite dessas, flagrei uma cena de sexo em cima do muro da minha casa. O senhor já imaginou se meus filhos, de seis e oito anos, presenciam um negócio desses? Sem falar na sujeira, na imundície, nos palavrões e gritos que sou obrigado a aturar.

- E por acaso seus filhos têm o hábito de sair na rua, tarde da noite?

- Isso não interessa. Tenho o direito de entrar e sair da casa a hora que eu quiser. E meus filhos, também. Comigo, evidentemente.

- Mas o senhor já sabia de tudo isso, quando comprou a casa.

- Não, não sabia. Primeiro, que só fui à casa duas vezes, durante o dia, e elas fazem ponto à noite. Segundo, que quem me vendeu a propriedade não me disse nada.

- Naturalmente...

- Pois é, naturalmente. E como munícipe pagador de impostos, exijo que essa situação seja resolvida imediatamente. Não quero saber de garotas fazendo programa na calçada da minha casa, da casa que acabei de comprar com dinheiro honesto.

- Mas ninguém aqui está dizendo que o senhor é desonesto. Está?

- Não, e só faltava isso, também.

- A propósito, o senhor faz o quê?

- No momento, nada. Perdi minha esposa recentemente, e me mudei pra cá pra começar do zero.

- Então está desempregado?

- Sim, no momento, sim. Tenho uma verba de indenização, e pretendo abrir um negócio próprio.

- Sei. Um desocupado, então. Me diga uma coisa. O senhor é crente?

- Não, não sou.

- Então, o senhor me desculpe... deve ser meio invertido.

- Olha aqui, não sou obrigado a aturar esse tipo de coisa. Estou liberado?

- Não, não está. Temos que encerrar o assunto.

- Então, por favor, vamos depressa. O que mais o senhor quer saber?

- Muito bem. Primeiramente, quero que saiba que, apesar da gravidade do crime cometido pelo senhor contra pessoas contra as quais não há nada que possa ser investigado, estou disposto a ser apaziguador e lhe liberar, até pra que o senhor possa, como mesmo disse, criar seus filhos sem arrumar confusão com ninguém. De forma que vou mandar chamar as meninas aqui, e o senhor vai pedir desculpas a elas.

- Não. Isso não.

- Não complique mais a sua situação, meu amigo. O senhor pode sair daqui fichado, ou o que é pior, detido.

- O senhor não pode me obrigar a isso. Não cheguei até este ponto da vida pra passar por isso. Tenho nome, tenho família, o senhor não vai me expor desta forma.

- Que expor o quê, meu filho. Só estamos nós, aqui. E a meninas, claro, que estão na sala ao lado só esperando que eu chame.

- O senhor pode fazer o que quiser. Ninguém pode me obrigar a passar por isso. E com licença, o senhor autorizando ou não, estou de saída.

- Você ainda não está liberado. Muito pelo contrário, sua situação está cada vez mais complicada. Não quer cumprir uma determinação dada por mim, que sou autoridade...

- Olha aqui, já que o senhor é tão íntimo delas assim... Não daria pra falar com elas, pedir pra que mudassem o ponto? Sei lá, que saíssem da minha calçada, ficassem alguns metros mais afastadas, pelo menos?

- Não, não dá. O melhor lugar é aquele, mesmo. E não tente desviar o foco do problema. O senhor está aqui respondendo pelos crimes de calúnia e difamação. É isso que está sendo deliberado. E o negócio pro seu lado não está nada bom. Se o senhor ainda não percebeu, estou tentando ajudar.

- Posso ver a cópia do Boletim de Ocorrência?

- Boletim de Ocorrência? Que Boletim de Ocorrência?

- Ora, estou sendo acusado de crime. Deve ter um Boletim de Ocorrência.

- Não, não pode. Aliás, até o momento não foi lavrado nenhum Boletim de Ocorrência. Nem precisa, afinal estamos ainda na esfera amigável, certo? Estou tentando resolver o problema aqui, entre as partes. Do contrário, o senhor teria que procurar um advogado, e essas coisas costumam ser caras. Então, posso chamar as meninas?

- Se quiser chamar, fique à vontade. Vai ser constrangedor ter que dividir o mesmo espaço com gente desta estirpe, ainda que somente por alguns minutos. Mas faça o que deve ser feito, vamos acabar logo com isso. Já é quase hora de apanhar os meninos na escola.

- É só isso que o senhor tem pra me dizer?

- É, acho que sim. Depois disso, estou liberado?

- Vai se desculpar, ou não?

- Não, claro que não. Vou dizer a eles que façam ponto em outro lugar, não na porta da minha casa.

- Olhe, existe uma outra forma de resolvermos isso. E o senhor sabe qual.

- Sei qual, sim. O senhor me libera, eu vou embora e, toda vez que tiver garota de programa fazendo ponto na minha calçada, eu chamo a polícia.

- Ou seja, o senhor me chama.

- O senhor, ou quem estiver aqui.

- Por que então o senhor não se muda?

- Mudar, como? Acabei de comprar a casa, é a mesma onde minha mulher passou parte da infância. Sempre quisemos comprar aquela propriedade, agora finalmente consegui. E ela deve estar muito feliz por isso, esteja onde estiver.

- E foi caro?

- Bem, não foi barato. Vendi a outra, usei grande parte da minha rescisão de contrato e umas economiazinhas.

- Então, o senhor está bem. Digo, tem dinheiro.

- Quero montar um negócio, já disse. Pelo menos até que meus filhos terminem a faculdade, quero ficar aqui.

- Sabe, essa sua defesa está me dando um trabalhão. Fui com sua cara. O senhor é um bom homem, bom pai, zeloso, cidadão de bem. Só cometeu um crime de difícil solução.

- Não cometi crime algum.

- Sim, cometeu, e já estamos há quase duas horas tentando resolver seu problema. É o tempo em que eu deveria estar cuidando dos interesses do Estado, da sociedade. E estou aqui, com o senhor, tentando impedir que seja preso, julgado sabe-lá-deus-quando e detido por tempo indeterminado em cela comum, com presos comuns. Afinal, o senhor não concluiu sequer o curso superior. Com sua recusa em se desculpar, estou tendo que abrir várias exceções, o senhor sabe.

- É dinheiro que o senhor quer, é isso?

- Que eu quero, não. Que a situação exige.

- Mas isso não é certo.

- Difamar pessoas não é certo. Defender o senhor como estou fazendo, ao invés de trancá-lo numa cela e privá-lo de sequer ver seus filhos, também não é certo. E lembre-se: tudo foi gerado pelo senhor. Nada disso estaria acontecendo se não fosse sua atitude impensada de escrever ao prefeito e relatar essa barbaridade.

- Quanto?

- Como, quanto? Quanto o quê?

- Quanto o senhor quer, de dinheiro?

- Bom, em primeiro lugar, eu não quero. Minha idéia é que o senhor traga aí uma contribuição, eu dou um agradinho para as meninas e a coisa se encerra, acaba, ninguém toca mais no assunto. Morre aqui.

- Quanto?

- Quanto o senhor pode dar?

- Não tenho a mínima idéia, o senhor que está envolvido com o negócio, me diga.

- Calma, olha o palavreado. Isto aqui é uma instituição pública, não se esqueça. Quanto o senhor tem aí, na carteira?

- Quase nada.

- Não tem nada... Bom, fechamos em quinhentos?

- Quinhentos?

- Pra cada uma. Mil e quinhentos, no total.

- ...

- Isso pra elas. E depois tem aí um negocinho pros meninos aqui da casa, o senhor sabe, esse pessoal ganha uma mixaria e se arrisca demais, tudo gente necessitada, sem estrutura.

- ...

- E o deles o senhor capricha um pouco mais, porque já inclui aí meus honorários, também.

- Mais mil e quinhentos? Vai dar, tudo, uns três mil.

- Mais ou menos, é isso aí.

- Preciso ir ao banco, não tenho esse dinheiro todo agora.

- E vai ter quando? Pra hoje à tarde, umas três horas?

- É, por aí. Não faz menos, tem que ser três mil?

- Tem jeito não. O caso é difícil, já deu pro senhor notar. E elas estão enfurecidas, o senhor sabe. Ainda vou ver se consigo, com essa sua iniciativa, que elas dêem o negócio por encerrado. Mas vai ser difícil, vou precisar de muito tempo, habilidade, vai ser uma verdadeira negociação. E vou ter que convencer o pai delas, ainda, que prometeu lhe pegar.

- Então, às três eu volto.

- Não, a gente faz melhor: às quatro eu mando alguém na sua casa.

- Não precisa, pode confiar. Eu volto á tarde.

- Imagina, eu faço questão.

- O senhor sabe onde eu moro?

- A gente sabe, a gente sabe. E depois, é pra sua própria segurança. O senhor andando com esse dinheiro todo, assim, pela rua, é perigoso.

Benilson Toniolo
Enviado por Benilson Toniolo em 05/04/2008
Código do texto: T931709