FÚRIA E REDENÇÃO - PRÓLOGO E PRIMEIROS CAPÍTULOS

Fúria e Redenção é uma obra de ficção e conta a saga e a vivência de uma família de imigrantes europeus no ambiente inóspito dos pampas gaúchos no início do século passado. Uma trama que se mistura com os conflitos que marcaram o Brasil e o mundo durante o conturbado período entre guerras. Fala principalmente de amor – não do amor aceito pela sociedade e abençoado pela Santa Igreja, mas do amor clandestino, dos desencontros e das paixões proibidas de uma família, cujas conseqüências refletiram até a terceira geração. Uma época mágica em que as palavras eram mais doces, a fúria mais selvagem e o preconceito quase infinito. Embora alguns locais sejam fictícios, os fatos que sacudiram o país, aqui citados, são absolutamente reais.

“Não tenho culto algum,

não sigo nenhuma religião,

apenas acredito em Deus e em Jesus Cristo.

Acredito que nascemos muitas vezes

para consertarmos nossos erros.

Procuro aceitar as coisas ruins que acontecem.

Acho que tudo nessa vida tem um propósito,

incompreensível para nós,

mas não para o Criador.

Acho que não cairia nem mesmo uma folha

Sem um propósito definido e calculado.”

Ditinha Lima

PRÓLOGO

Já estava escurecendo quando entrei na minha pequena cabana, o frio cortante penetrava na carne encarangando meus ossos e articulações. Fui imediatamente à lareira e comecei a arrumar as achas vagarosamente, uma sobre a outra, formando uma pirâmide perfeita. Meu trabalho estava atrasado naquele dia, mas a causa não era o reumatismo que me atacava com garras de aço no inverno, nem minha idade avançada. Eu estava deprimido.

O fogo começou a crepitar, estalando a madeira, lento, para em poucos minutos crescer e lamber a parede enegrecida da lareira. Sentei-me na cama estreita, de colchão gasto, sentindo uma quentura agradável nos pés. Passei as mãos pela colcha de retalhos procurando sentir qualquer calor que não fosse o meu, o tecido áspero e frio me disse que estava só. Olhei com ternura para os pedaços coloridos, só nós sabíamos quantos momentos doces aquela cama presenciara.

O silêncio do entardecer me fez regredir, minha cabeça começou a rodar em um turbilhão de saudade. Então tive a sensação de ouvir vozes da outra casa, o riso das crianças que por ali passaram. Perdi a noção de tempo, os pensamentos me vinham sem nexo, meus mortos me rodearam e me sorriram. Sorri de volta, para depois ignorá-los e começar a analisar minha situação. Sentia-me um tanto perdido, sem rumo como um cavalo vendado, carecendo de uma mão jovem para me guiar. Respirei fundo e procurei aceitar o fato de ter de partir, abandonando a terra que aprendi a amar, terra onde vivi mais da metade da minha vida. Precisava fazê-lo, a vida de pessoas a quem muito amava dependia disso.

Os fantasmas voltaram, trazendo a lembrança de fatos do passado, desde que cheguei àquele lugar, tão jovem, tão cheio de energia, ilusões e coragem, repleto de sonhos que só se tem aos vinte e cinco anos. O ano, se não me falhe a memória de velho, era 1915, mês de inverno. Vim como tantos outros, em busca de trabalho e vida melhor, fugindo de alguma coisa que mais tarde descobri estar dentro de mim.

Não conheci meus pais, portanto não sei se me pareço com eles. Fui abandonado à porta de um colégio de freiras ainda recém-nascido. Na adolescência isso me perturbou um pouco mas, com o passar do tempo, achei coisas mais interessantes para fazer do que ficar lamentando. Fui crescendo calado junto às freiras, perdido num oceano de hábitos negros, até que um amigo apareceu em meu caminho de infortúnios, dividindo comigo as ameaças de castigo eterno: Joaquim, outro abandonado, de quem as freiras se compadeceram e adotaram para se tornar meu companheiro de malandragens e puxões de orelha, risos e lágrimas. Aprendemos a ler e escrever, as quatro operações da aritmética e todas as regras de comportamento que nossas “mães” achavam úteis para nos tornarmos bons rapazes.

O tempo, implacável, passou e fomos nos tornando homens, nossas barbas começaram a aparecer, causando um mal estar nas freiras. Um dia, a madre superiora nos chamou e soubemos que íamos partir; não ficava bem para as esposas de Cristo conviverem com dois marmanjos sob o mesmo teto. Compreendemos e ganhamos as ruas de São Paulo com alguns contos de réis e algumas mudas de roupas, além de bênçãos, sermões para nos comportarmos bem e a rota certa para evitarmos o inferno, o caminho de todas as pessoas que tivessem maus pensamentos, braços, pernas, olhos e todos os cinco sentidos para pecar.

Percorremos muitos lugares, nem me lembro de todos, trabalhando o suficiente para nos mantermos. Joaquim desejava riqueza rápida, sempre pensando numa maneira de ganhar muito dinheiro. Cheguei a desconfiar de seus princípios, porém o tempo veio me provar que, apesar de malandro e esperto, era o melhor amigo que alguém poderia ter. O sonhador ali era eu, queria uma mulher que me amasse para construirmos uma família feliz. Joaquim zombava de meus sonhos e dizia que mulher nenhuma se casaria com um homem como eu que, apesar de bonito, não tinha família, dinheiro, casa, não tinha nada. Acabamos por nos separar, não porque não nos entendêssemos, mas cada um queria seguir uma direção – ele, norte; eu, sul. Choramos abraçados, com juras de amizade eterna e um breve contato.

Saímos de São Paulo no auge da febre do café. Estava cansado de ver os barões, com seus cavalos lustrosos e carruagens sóbrias, os imigrantes, o ritmo apressado de se viver. Pensei com meus botões que aquilo não duraria para sempre, logo a terra não produziria como antes e os fazendeiros teriam que procurar outros lugares onde o fruto vermelho voltasse a render o mesmo ouro de outrora.

O Sul me chamava, mas para chegar lá ainda demorou um bom tempo. Trabalhei duro para juntar dinheiro suficiente e ainda havia a falta de Joaquim me apertando o peito, a solidão no meio de tanta gente.

O governo havia começado novamente a colonização no final do século, que se alastrava principalmente pela região do Planalto. Eu tinha fé que lá conseguiria ser alguém na vida; havia muito trabalho e muita terra, e onde há terra certamente há dinheiro para ser ganho.

O que mais me agradou foi a imensidão das planícies, as florestas. Viajei de trem, a cavalo e a pé, e herdei uma camada dura na sola dos pés, como o casco de um cavalo. Conforme ia penetrando no coração do Estado, notava colônias de estrangeiros, que em breve se tornariam cidades. A maioria das construções era de madeira tirada das florestas, casas rústicas erguidas na força dos braços daqueles homens corajosos. Passei por italianos, alemães muito louros com sotaques que me feriam os ouvidos, e negros que haviam chegado ali como escravos e que depois da abolição acabaram ficando e criando suas crianças como podiam, na força dos músculos e do trabalho mendigado, vigiados com desconfiança pelos colonos.

Deixei tudo isso para trás, passei por estâncias – termo que usavam para definir as fazendas de gado –; algumas já mostravam sinais de franco progresso, com plantações e rebanhos soltos nos pampas. Pensei no dano que aquelas pastagens desordenadas causariam à terra; a floresta era cortada e queimada para se formarem as extensões de pastos. Os poucos índios também haviam de sofrer, espremidos juntos com a mata em pequenos espaços, assistindo impotentes seus costumes serem devastados por aquela raça estranha e bela.

Ao ser informado que conseguiria trabalho nas estâncias de gado, afastei-me das colônias, prosseguindo por estradas de terra batida onde raramente se via um ser humano. Havia caminhado uns dez quilômetros da última colônia quando encontrei uma fazenda. Passei os olhos pelo local e me pareceu que conservava ainda muito das matas nativas em seus arredores. Tentei imaginar a fisionomia do dono, parei em frente à porteira por alguns instantes para depois me dirigir à casa. Segui um trecho de estrada mais estreita, orlada por colunas de ciprestes. A casa se erguia, majestosa, no meio de um descampado, feita para dar conforto e não luxo. A construção, de madeira como tantas outras que eu havia visto, parecia grande, mas não ostensiva como imaginara a princípio. Do lado direito, um galpão para ferramentas e algumas baias cobertas, um celeiro para armazenamento de pastagem; e à esquerda, um pouco mais distante, um curral para ordenha.

Aproximei-me da varanda, que circulava toda a construção e bati palmas. Aguardei. Após um longo silêncio, quando estava quase desistindo, vi um homem se aproximar, limpando as mãos em calças pardas, que já haviam visto dias melhores.

- Desejas alguma coisa? – perguntou-me, erguendo o chapéu, mostrando olhos acidentados. Era um pouco mais alto que eu, um tronco lotado de músculos, nariz aquilino, traços largos, demonstrando a origem estrangeira.

- Procuro trabalho, venho de São Paulo – o olhar do homem fez com que me calasse. Ele dissecou-me como faria um cientista ao observar um inseto raro. Um mal estar se apossou de mim, não me senti bem ao ser olhado daquela maneira. Estava mal vestido e minhas roupas sujas, todavia sabia que tinha ares cultos e traços harmoniosos.

- Que sabes fazer?

- Um pouco de tudo, trabalho com gado, cavalos, e sei também tratar de plantações.

- Vamos entrar, está muito frio aqui. Meu nome é Wladek.

Apresentei-me e acompanhei meu futuro patrão casa adentro, agradecendo a rajada de vento repentina que motivou o convite. Passamos por uma sala e um corredor e fomos dar em uma saleta cheia de estantes repletas de livros, com uma escrivaninha ao centro. Ele sentou e pôs-se a me olhar. Como não me convidou a fazer o mesmo, permaneci em pé, com as pernas doendo.

- Estou mesmo precisando de mais um homem aqui. Sou só eu e mais um, não damos conta do serviço.

O sotaque não era melhor do que os outros que encontrara ao longo da jornada. Pus-me a olhar os livros nas estantes, numa falsa distração, que usava por hábito, para encobrir a timidez. Sempre gostei de livros, apesar de ter lido poucos.

- Esses livros são de minha esposa – disse, vendo meu interesse. - Não sou bom leitor, prefiro as coisas mais práticas.

Os volumes estavam encadernados em couro, arrumados em fileiras, mostrando imenso carinho da parte de quem os cuidava. Havia autores russos, alemães e grandes clássicos da literatura brasileira. Um deles me chamou a atenção em particular – Castro Alves, o nosso poeta negreiro. Parei os olhos nele e pensei que os escravos do Brasil não tinham cor: eram negros, mulatos, brancos e índios. O cárcere estava na pobreza extrema, no descaso, nas condições subumanas em que vivia a maioria do país. Os grilhões não eram mais físicos, mas espirituais, aquele em que o homem é obrigado a renunciar aos seus sonhos, esquecer o mínimo de dignidade, concentrar seus pensamentos no dia seguinte, que será melhor, mas esse dia não chega e ele enterra suas ilusões no fundo da mente e a cobre como esquecimento, sepulta o brio, sujeita-se a salários miseráveis para não deixar as crianças morrerem de fome. Eu havia visto muitas coisas em minhas andanças pelos sertões do Brasil.

- Em que pensas, amigo?

Virei-me de súbito, envergonhado.

- Nada não, senhor, desculpe-me. Estava olhando os livros.

- Minha esposa vive perdida no meio deles, imaginando sabe-se lá o quê. Às vezes tento ler algum, mas confesso que a leitura não é o meu forte, e sempre acabo desistindo. Acho que podemos tentar por alguns dias o trabalho. Não posso pagar muito, mas aqui terás casa e comida por minha conta. Tenho uma cabana desocupada e podes se acomodar por lá. Se me acompanhares poderás ver sua próxima moradia.

Foi o que fiz, andamos pelos fundos da casa e fomos sair do outro lado da construção, onde pude ver duas cabanas de madeira, uma ao lado da outra.

- Podes ficar com essa, está desocupada – disse, abrindo a porta da casinha. - Na outra mora Pedro, meu outro empregado que está nos campos.

Estiquei o pescoço e olhei o interior, muito simples, com um quarto e uma sala com lareira, o que me deixou muito contente. Conhecia na carne o inverno do Sul. Tinha também um banheiro de fossa nos fundos, torneira com água encanada e uma bacia de cobre enorme para o banho, sinal de extremo conforto para mim.

Hoje penso se haveria algo que impedisse os acontecimentos que se seguiram. Se Wladek não tivesse me contratado, será que as coisas seriam diferentes? Será que teríamos tido tanto sofrimento em nossas vidas? Tudo o que sei é que o destino traçou nossos caminhos e só nos restou segui-los, cabisbaixos e humildes; havia uma força maior que nos conduzia.

PRIMEIRA FASE

WLADEK E BENJAMIM

1915-1920

“Os lábios da mulher estranha

destilam mel, e a sua boca é

mais suave que o azeite;

mas o seu fim é mais amargo

que o absinto, agudo como a espada

de dois gumes.

Por isso a ruína virá

sobre ele de improviso e num

momento ficará arruinado,

sem remédio.”

Provérbios 5:3-4 e 6:15

I

Embora permanecesse calado na presença do patrão, Benjamim exultava por dentro, conseguira trabalho, casa e comida, nada poderia ser tão bom. Agradeceu ao seu bom anjo, achando que não merecia tão grande bondade. Wladek o deixou à vontade para que pudesse acertar suas coisas. Tão logo o patrão se afastou, o rapaz tratou de passar os poucos pertences que trazia no alforje para o armário do quarto, experimentou o colchão, um pouco duro, mas não se importou. Nunca fora acostumado ao luxo. Respirou fundo, já se sentia um homem de novo, tinha trabalho.

Após terminar de colocar as roupas no armário, saiu à procura do patrão. A manhã ia alta, com um sol desencorajado diante da brisa fina que vinha do Sul. Foi encontrá-lo no curral.

- Já te ajeitaste?

- Sim senhor, e já posso começar no serviço se me disser o que devo fazer.

- Vamos dar uma volta pelos arredores, vais conhecendo a fazenda enquanto conversamos.

Foram andando lado a lado, mãos enfiadas nos bolsos, chapéus puxados sobre o rosto. Wladek explicava o funcionamento da estância, gesticulando com energia, deixando evidente a paixão que nutria pela terra.

- Não terás função definida, farás o que eu achar necessário, a começar pela ordenha. Pedro não tem muita paciência com os animais. Não tenho grandes plantações, apenas o indispensável para o consumo. A tarefa mais importante e que realmente sustenta a estância é o gado de corte, que crio solto nos pampas. A cada três meses reúno alguns homens para separar o gado que será vendido, bezerros novos e vacas prenhes também são separados e trazidos para cá. É um trabalho longo e penoso, às vezes ficamos vários dias fora.

- O senhor formou as pastagens?

- Um pouco, comprei a estância de um alemão falido, que havia ganhado o lote do governo, daí acabei comprando mais terras e formei novos pastos. Fiz questão de deixar um bom pedaço de mata nativa. Na minha terra natal víamos tão pouco de verde que meus olhos se deliciam com essas árvores todas.

Benjamim deitou os olhos pela planície, encontravam-se agora bem distantes da casa, que podia ser vista à distância, com a mata ao fundo. Deu razão ao patrão.

- Uma coisa que me preocupa muito é que minha esposa fica sempre sozinha quando estou nos pampas. Com tu por aqui não preciso pensar tanto nisso, cuidarás de tudo quando eu estiver fora. Ela é frágil e doentia.

Benjamim nada questionou, apenas consentiu com um gesto de cabeça. Deram mais algumas voltas e Wladek o levou para as cabanas, apresentando-o a Pedro que aguardava o almoço. Em seguida, dirigiu-se para casa, provavelmente para partilhar a refeição com a esposa.

Os rapazes se encararam por instantes e depois apertaram as mãos. Pedro era mais alto e mais gordo, o rosto comum, de cabelos castanhos e olhos da mesma cor, sorridente e convidativo à amizade. O companheiro o analisou, de alto a baixo, sem ter consciência da indiscrição. Depois de um tempo, Benjamim julgou que passara no teste. Pedro sorriu e apontou.

- Veja, lá vem o almoço – disse.

Benjamim virou e deu de cara com uma índia alta e gorda, trajando um vestido de chita barata em cores berrantes, que lhe entregou uma marmita cheia de comida boa e quente. Ela se afastou no mesmo silêncio em que chegou. Pedro riu do espanto do novo colega; entrou na cabana e o convidou a fazer o mesmo, retirou a tampa do vasilhame e sentiu o aroma dos alimentos.

- Aquela é Ainá, que ajuda a patroa nos serviços da casa e lava a nossa roupa. Não fique espantado, ela não é má, apenas grande.

- Nunca vi uma índia de perto, pensei que não se davam bem com os imigrantes.

Pedro limpou a boca na manga da camisa e com ares de sabedoria explicou:

- Pois aqui vai ver muito, o patrão mantém um bom relacionamento com eles. Há uma reserva indígena que faz divisa com a estância, e ele até os visita de vez em quando. Leva também remédios e alimentos quando precisam, entende?

- Acho que sim – estava imaginando que tipo de homem era o patrão.

Pedro riu do desconcerto de Benjamim e foi informando com evidente prazer a vida dos moradores da estância. Contou que Wladek não tinha filhos, apesar de ser casado há mais de cinco anos, que viera da Polônia com a mulher e logo prosperara às custas de trabalho duro e economia.

- E a esposa, dona Urzula é muito mais jovem do que ele. A mulher mais bonita que já vi na vida, uma beleza de fada!

Benjamim nada disse, mas imaginou que o amigo não devia ter muitas mulheres para comparar. Concentrou-se nos alimentos, estava faminto e não interessado em fofocas.

Após cinco dias, Benjamim começava a se adaptar à nova vida, um homem crescido no mundo não tinha dificuldades com novas casas e terras. Gostava de olhar a planície de manhã, a água gelada da bica e principalmente a neblina, que dava a impressão de não haver mundo a frente de dois palmos do nariz. Trabalhou no curral, trocando as tábuas podres por madeira nova, de araucária, cheirando à resina. Quase não via Wladek, apenas Ainá circulava pelos arredores da casa, balançando o corpo enorme, ora com lenhas nos ombros, ora com baldes de farelo para os porcos. Já via a índia com simpatia, e achava que também era apreciado; seu sorriso era correspondido quando se encontravam na hora do almoço. No sexto dia, ao entardecer, suado e cansado depois do longo dia exposto ao frio e à garoa fina que fazia seu nariz pingar, avistou uma mulher na varanda a olhar as pradarias. A primeira impressão foi de estar vendo uma criança, era miúda e frágil que a esmagaria num só abraço. Ela se debruçara sobre a grade a fitar a paisagem que se estendia infinita na tarde. Tão loura quanto o marido, com longas tranças que caíam sobre os babado do xale de lã. Não pôde precisar a cor dos olhos devido à distância que os separava. Parou para melhor admirar a imagem, que lembrava um quadro campestre pendurado numa sala qualquer. De repente, ela se virou e o cruzamento de olhares foi inevitável. Benjamim chegou mais perto para cumprimentá-la e percebeu que seus olhos eram castanhos claros, quase amarelos.

- Boa tarde, senhora – era menor quando vista de perto.

Ela o encarou um tanto assustada, o olhar mais triste que já vira, grandes pupilas amendoadas, ornadas por cílios espessos que faziam sombra sobre a íris. Ficou sem graça perto da patroa, que demorou uma eternidade para responder, ficando a analisá-lo, estudando-lhe o semblante. Observou num exame inocente seu cabelo negro, que trazia bem curto por ser cacheado, a pele morena e cada pedaço do seu corpo.

- Boa tarde. Deves ser o novo empregado de meu marido.

- Sim senhora, tenho prazer em conhecê-la – fez um gesto com o chapéu que trazia nas mãos em sinal de respeito.

Ela fez uma ligeira saudação com a cabeça e entrou, não sem antes virar mais uma vez para vê-lo ali parado, mudo, encantado. Benjamim sentiu algo que não soube explicar, uma sensação momentânea de apreensão, de infinito, nos olhos da mulher. Afastou rapidamente esses pensamentos, lembrou-se do comentário de Pedro e deu-lhe razão, mesmo que estivesse entre dezenas de mulheres ela se destacaria. Caminhou para a cabana a passo lento, ligeiramente abalado, sentindo o vento frio lhe causticar a pelo do rosto.

II

Urzula entrou pensativa, o novo empregado do qual lhe falara o marido não era de longe como imaginara. Naquele fim de mundo só apareciam homens velhos, que não tinham a mesma sorte de Wladek, não possuíam terra, eram judiados pela vida e andavam pelas estradas em busca de trabalho. Foi assim com Pedro, lembrava-se de quando ele chegara, quarentão e sofrido, sempre com os olhos baixos, pronto para qualquer serviço. Aquele era jovem, a cor da pele lembrava saúde, roupa justa como nunca vira, nem mesmo quando Wladek contratava peões para o trabalho avulso. Os lábios do rapaz eram bonitos, os olhos negros como o fundo de um poço.

Sentia-se especialmente triste naquela tarde, por mais que tentasse não se acostumaria nunca àquela terra que parecia querer engoli-la a qualquer instante. Não tinha a autoconfiança do marido, para ele tudo eram desafios a serem vencidos. Wladek exalava vida e energia por todos os poros, não compreendia que ela não nascera para aquela rotina rude de camponesa. Gostava mesmo era de ler, ouvir música; há quanto tempo não ouvia uma orquestra? Desde que vieram para o Brasil e se enfurnaram naquele fim de mundo. Wladek não compreendia sua necessidade de sonhar, de sair da realidade que a sufocava. Por não ter as mesmas necessidades, nunca tinha paciência suficiente com ela, classificando sua nostalgia de “achaques de mulher”, coisa sem importância, que se curaria com uma tarde de trabalho.

Sacudiu a cabeça, expulsando tais pensamentos, dizendo para si mesma que algum dia aquilo passaria, ou ao menos aceitaria a situação em que se encontrava. Atravessou a sala de móveis e o corredor, que sempre lhe parecia sombria, chegando à cozinha onde Ainá se movimentava com o jantar.

- Tá doente, senhora? Tá branca como cera.

- Estou bem Ainá. Vamos cuidar de encher a barriga dos homens.

O fogão ficava num dos cantos da cozinha, obrigando a empregada a correr de um lado para o outro, da taipa para a pia com as mãos vermelhas pelo calor do fogo. Mas ela não reclamava, água encanada era privilégio de poucos. Preparava um ensopado de carneiro.

Wladek entrou exalando vida e cheiro de esterco, sorridente e faminto.

- Está pronto?

- Quase – respondeu Urzula, sem se virar.

- Então vou me lavar.

O jantar, assim como todas as refeições, era servido ali mesmo na cozinha, numa mesa grande de madeira tosca, com cadeiras igualmente cruas, de espaldar reto, duras e desconfortáveis. Ainá retirou a panela fumegante e a colocou sobre a toalha branca, aguardando que o patrão voltasse.

Todo o tempo em que permaneceram na cozinha, Urzula ficou calada, perdida entre pensamentos opressivos que jamais poderia dividir com o marido, observando-o de esguelha. Lembrou-se da noite anterior com mágoa. Wladek sempre a queria, não se cansava de exigir dela o prazer, achando que era tão desejado como desejava. Esses atos provavam, segundo ele, todo o amor que lhe dedicava.

Embora se esforçasse, Urzula nada sentia, ficava sempre a se dar, passiva e isso o magoava sobremaneira. Ela o amava, tinha certeza disso, porém não acreditava que o sentimento mais famoso do mundo fosse apenas aquilo que vivia todas as noites, suportar a invasão, o eterno vai e vem dentro dos seus órgãos, invasão essa que nenhuma sensação lhe trazia, nem boa, nem ruim. No final do ato, sentia-se vazia, como se faltasse alguma coisa muito importante que não fora concluída, com um remorso patético ao imaginar estar fazendo algo errado. O marido não era mau, pelo contrário, era gentil com a esposa, estimado pelos poucos vizinhos, trabalhador que nunca deixara lhe faltar nada. Preocupava-se com seu conforto a ponto de gastar muito dinheiro para levar água em quase todos os cômodos da casa. Aos olhos de Urzula, seu defeito era aquela vitalidade desmedida, a ânsia de fazer tudo depressa e se irritar quando os outros não o acompanhavam. E ainda o problema dos filhos, o mais grave, ela não conseguira engravidar depois de quase cinco anos de casamento. Imaginava que o problema estava nele, mas jamais ousaria tocar no assunto, despedaçaria seu orgulho masculino. Assim, assumia a culpa sozinha e em silêncio, pensando se todos os casamentos eram daquele jeito, se todas as mulheres se sentiam assim depois de alguns anos. Não havia perspectivas para ela, olhava para o futuro e via somente uma estrada vazia.

Levantou-se alegando cansaço, deitaria mais cedo e fingiria que dormia quando o marido viesse. Deixou-o sentado na poltrona, em frente à lareira da sala que Ainá acendera enquanto jantavam.

Wladek assentiu, seguiu-a com os olhos até que sumisse pelo corredor e entrasse no quarto. Na penumbra e com o barulho do vento, vieram os pensamentos que o assaltavam à noite. Urzula vivia em seu próprio mundo, onde a entrada do marido não era permitida. Sentia uma paixão quase doentia pela esposa, queria não só seu corpo, mas sua mente, todos os seus pensamentos e atenções. Queria virar e saber que tinha uma mulher ao seu lado, que fosse somente sua e que o admirasse. Não era fácil cuidar daquela terra e ele também necessitava de conforto e incentivo. Entretanto, tudo o que via eram os olhares vazios. Tentara trazê-la a si pelo sexo, mas encontrara resignação que sua condição de casada exigia, por mais desagradável que fosse a tarefa. Desistira de tentar conversar a respeito, achava que nem ela mesma sabia o que sentia, ou melhor, o que deixava de sentir. Era ainda muito criança.

O casamento fora arranjado, procedimento comum e perfeitamente aceitável. Ele cuidara dela desde bebê rechonchudo à infância, acompanhou-a perder as formas infantis e se transformar numa adolescente bela e desejável. É claro que o amor fraternal que lhe dedicava assumiu novas formas, mudanças que o envergonharam a princípio. Fora difícil aceitar que a via com outros olhos, e nada pôde fazer a respeito do calor que lhe invadia o corpo ao ver seu andar macio, seu sorriso de dentes perfeitos acompanhado do piscar dos olhos amendoados, pedintes. Dali ao pedido, fora um pulo; as famílias aprovaram o que já era previsível por todos.

Casaram-se numa linda manhã de primavera, ele com trinta anos e ela com quinze. Urzula não se manifestara contra seu pedido, então ele achara que a amada correspondia aos seus sentimentos. Julgara que a diferença de idade não importaria, o amor o deixara cego. Agora, vendo como a mulher se comportava receava ter cometido um erro e estragado a vida de ambos. Não tinha certeza de ser amado como amava. Com a vinda para o Brasil, terra distante, de língua difícil e costumes diferentes, achara que o isolamento os uniria, e ali só teriam um ao outro. Só que cinco anos haviam se passado e estavam mais separados do que nunca.

Sentiu-se extremamente cansado, levantou-se e foi para o quarto. Antes de se despir, parou para vê-la se mexer e se enroscar em posição fetal no canto mais afastado da cama. Tirou as calças, a camisa e as botas, fez uma massagem nos pés cansados e deitou devagar para não acordá-la. Não sentiu vontade de amá-la naquela noite.

III

A primavera deu sinais de vida em meados de setembro. Os ipês começaram a florescer, emprestando uma beleza exótica aos campos. Junto vieram as florzinhas rasteiras, mais singelas e em maior quantidade que os ipês, e que abriam humildemente suas faces para o sol, colorindo os prados das mais diversas matizes. Ouvia-se o barburinho dos pássaros saltando na ramagem, animaizinhos silvestres correndo ao menor sinal de passos humanos. A natureza saudava a mais bela das estações. O frio fora embora, assustado com a profusão de vida que explodia em cada canto da floresta. Após as primeiras chuvas, o tom acizentado das pastagens deu lugar a um verde exuberante. Tudo renascia das cinzas geladas do inverno, trazendo a esperança aos corações humanos.

Durante o inverno, Benjamim mostrou competência realizando todos os trabalhos, por mais pesados que fossem. Seus músculos estavam sempre à disposição. A disponibilidade e dedicação, com seu jeito calado e tranqüilo de homem que não se envolvia em conversas banais ou julgamentos precipitados fizeram dele o braço direito de Wladek, que observava à distância o comportamento do empregado, convencendo-se de que escolhera o homem certo.

E assim corriam os dias, até que certa manhã, durante a ordenha, Benjamim notou o patrão calado, atitude contrária a sua natureza. O caladão ali era ele. Não ousou perguntar o motivo da casmurrice que arqueavam as sobrancelhas, mas suspeitou de que só podia ser a linda esposa. Um homem que tinha tudo como ele só ficava daquele jeito por causa de uma mulher. Logo começou a chutar os latões de cobre, gritar palavrões que deixariam um ouvido mais sensível ruborizado.

- Odeio essas vacas, odeio esses montes de merda que vivo a pisar todos os dias. Não sei porque faço isso, nunca recebi um único parabéns, um único agrado pelo meu trabalho.

Benjamim ficou com uma vontade louca de rir. Quanto mais nervoso o patrão ficava, mais as vacas faziam alvoroço, cutucando umas às outras com os chifres pontudos, rejeitando os dedos de Wladek que tentavam chegar perto do úbere.

- Benjamim, por favor, termines com isso. Não tenho paciência, vou à vila comprar alguns alimentos, depois é necessário que raches um pouco de lenha. Ainá diz que irá queimar minhas calças no fogão.

Decidiu muito depressa, com mau humor. Fez um aceno ao empregado e saiu em seguida, limpando as botas na grama, um esforço cômico para tirar as pastas de esterco que se acumularam nas solas. O rapaz sentiu carinho pelo patrão, vontade de dizer algo que o confortasse, que lhe arrancasse a angústia do peito para voltar a vê-lo alegre como sempre. Nada lhe veio à mente, mas ficou aliviado pelos animais, que se acalmaram, deixando que terminasse o trabalho tranqüilamente. Sabia que o barulho ou a impaciência os deixavam irritados. Acariciou a anca da vaca, satisfeito com o pêlo macio e quente.

Em seguida, levou o latão cheio até a porta da cozinha e chamou pela patroa, que lhe serviu uma caneca de café, para retirar-se em seguida, apressada. Benjamim se sentia estranho quando a via, com uma dor no peito, algo que lhe oprimia os sentidos, uma vontade louca de olhar nos olhos da mulher, tocar-lhe a pele para ver se era tão macia quanto imaginava. Quando esses pensamentos lhe vinham à mente, tratava de desviá-los imediatamente, assustado, envergonhado por não poder controlar essa fraqueza. Tomou o café depressa e saiu para o terreiro, o machado o esperava.

A vida dos estancieiros era muito dura, principalmente para os pequenos como Wladek, que precisavam estar sempre nos campos fazendo até mais que os próprios empregados. O leite não era a atividade mais importante, mas dava para o consumo e o preparo de queijos, doces e manteiga. Os imigrantes trouxeram de suas terras frias o conhecimento das compotas, embutidos e diversos alimentos que se conservavam por muito tempo. O plantio do feijão, arroz e batata inglesa também tinham a mesma finalidade, muitas vezes o arroz tinha que ser socado no pilão. As rodas d’água, que moviam o moinho para a tritura do milho para a quirera e fubá, levara água para as dependências da casa por canos subterrâneos, além de irrigar as lavouras próximas e mover algumas máquinas que Wladek tinha no galpão. Ali se vivia da terra e para a terra.

Urzula sentiu-se cansada, uma fadiga que vinha do coração e se espalhava por todo o corpo. Após deixar o leite para coalhar na chapa morna do fogão, saiu à varanda para tomar um pouco de ar fresco, o calor da cozinha lhe causava náuseas. Debruçou-se na grade de madeira a olhar o céu azul, limpo de nuvens; o dia prometia uma temperatura elevada. Viu Benjamim sair do celeiro com o machado às costas, arrumar o primeiro tronco sobre o cepo e descer a ferramenta, fazendo voar lascas de madeira perfumada no atrito. Arrumou as achas e depois o segundo tronco com o mesmo movimento, cadenciadamente. Ficou admirando o movimento dos braços do rapaz, o bíceps se retesando ao levantar a ferramenta e tornando a se acomodar na massa dos tendões. Ele parou um instante e limpou o suor da testa com as costas da mão. A energia que corria pela pele se evidenciava na camisa grudada no corpo. Em uma decisão brusca, olhou para o tórax e retirou a camisa, jogando-a ao chão.

A mulher com rosto de menina sentiu um pequeno arrepio lhe percorrer a espinha ao observar o tronco nu, brilhando à luz do sol matinal, e gotinhas brilhantes correndo pelas têmporas. Não conseguiu ou não quis, nunca soube direito, despregar os olhos das costas do rapaz. Acompanhou o mover dos músculos enrijecendo-se de acordo com o bater do machado. Não soube quanto tempo ficou olhando, fascinada, sentindo as pernas bambas, as mãos tensas, querendo tocar, sentir o calor daquela pele.

Benjamim sentiu-se observado, o instinto humano mais antigo pôs-se em alerta, avisando-o que alguém ou alguma coisa estava à espreita. Virou lentamente o rosto em direção à varanda e a viu, o quadro que lhe ficara na memória desde o primeiro encontro. Virou também o corpo para melhor observá-la, largando o machado ao chão, que caiu junto da camisa. Cerrou os olhos por causa do sol e encontrou outros, amendoados e belos. Fitaram-se por alguns instantes que pareceram eternos, segundos perdidos no tempo. Nunca soube a força que o impulsionou, mas se viu numa espécie de transe. Seu lado racional dizia que era imenso o absurdo do que fazia, todavia se encaminhou para ela, com passos vagarosos, sem deixar de fitá-la. O tempo parou, o mundo não existia mais, somente eles se moviam no planeta.

Urzula não arredou pé, ficou à espera do que viria a seguir. Não desviou os olhos, como deveria, do peito forte e nu, dos pêlos sedosos que desciam em ondas suaves em um estreito trilho, indo morrer súbita e maldosamente à altura do cós das calças apertadas. Quando Benjamim se aproximou o suficiente para lhe falar, ela caiu em si, despertou do limbo em que se encontrava, soltou uma exclamação incompreensível ao entrar correndo e fechar a porta. Ao se ver segura, encostou na parede áspera de pequenas lascas de madeira mal aplainada e levou as mãos ao peito. O coração batia como um tambor de encontro às costelas, medo e desejo, duas forças incontroláveis se movendo como cobras dentro de si.

Benjamim permaneceu a olhar a porta fechada, sem saber o que diria se ela esperasse, talvez alguma coisa idiota como “que lindo dia” ou “estive a olhá-la e me deu uma vontade louca de beijá-la”.

- Oh Deus, o que eu fiz? – pensou. Agora ela sabia o que se passava em sua cabeça, não podia ser tão ingênua a ponto de não ter percebido nada. E o que era pior, sentia que ela também o queria. Passou as mãos pelos cabelos negros, enterrando os dedos pela raiz até sentir dor. Saiu apressado até a bica d’água, mergulhou a cabeça e molhou o peito e as costas, esbravejando-se como um cão. Respirou fundo para aliviar a ardência do ventre, encostou-se no cano, tentando se acalmar. O sangue foi voltando a correr como deveria nas veias, mas a impressão permaneceu. Fechou os olhos, mas a imagem ainda perturbava seus sentidos. A pele, muito branca, devia ser macia ao simples toque de seus dedos, a curva do pescoço clamando por seu rosto, enfiado nos fios de cabelo a sentir-lhe o perfume.

- Meus Deus, o que estou a pensar? Deve ser falta de mulher, não posso ver uma e me ponho a sonhar – sacudiu fortemente a cabeça para tirar os sonhos loucos, mas sabia que não eram sonhos loucos, estavam muito próximos da realidade. Voltou ao machado e às toras, rachou toda a pilha em poucos minutos.

No final da tarde, Wladek chegou agitado, descarregou uma saca de açúcar, uma de trigo, uma de sal para o gado, algumas encomendas de Ainá e pequenos mimos para Urzula, como prendedores de cabelo e fitas. Olhou ansioso para a cozinha e, como não a viu, saiu à procura de Benjamim. Encontrou-o conduzindo dois cavalos pelo cabresto.

- Gosto muito desse cavalo, Benjamim. É o meu preferido entre todos – afirmou, acariciando o flanco de um bonito animal negro e fogoso. O puro-sangue, reconhecendo o dono, relinchou em resposta ao carinho. - Recolha os outros também, não gosto que passem as noites fora das baias.

- Sim senhor – respondeu de cabeça baixa. Não conseguiu encarar o patrão, parecia-lhe que estava escrito em brasas na testa todos os acontecimentos do dia. Sentia-se um porco por ter desejado, mesmo que por um instante, uma mulher comprometida. No íntimo, agradeceu a ela, que tivera juízo suficiente para sair correndo. Tudo aquilo era uma grande loucura e, passado algum tempo, achou que a cena só acontecera na sua imaginação. Urzula nem o tinha visto direito, quanto mais sentido alguma coisa.

- Sou um idiota pretensioso – pensou. Julgou que estivesse perdendo a sanidade por nutrir tais pensamentos.

- Benjamim, gostaria que viesses jantar conosco essa noite – gritou o patrão. - Fui informado na cidade que acontece uma guerra na Europa e daquelas grandes, gostarias de conversar sobre isso?

O rapaz imaginou que ele devia se sentir muito solitário para convidar um empregado para falar de política. Não respondeu de imediato, limitou-se a arquear as sobrancelhas em sinal de dúvida, a última coisa que desejava era rever a mulher depois do incidente da varanda. Porém, na falta de uma desculpa plausível, aceitou com humildade, uma negativa acarretaria em perguntas que não saberia responder. Wladek, satisfeito, saiu a cantarolar uma canção popular da região.

Recolheu o resto dos animais, deixando-lhes uma farta porção de pastagem e foi para a cabana. Encheu a grande bacia de cobre de água fria, estava ansioso demais para esquentar e um banho gelado lhe despertaria as idéias. Nunca o patrão o havia convidado para uma refeição, nem mesmo a Pedro. Não soube o que pensar, talvez Urzula tivesse falado do ocorrido mas, se fosse isso, Wladek não o teria tratado com gentileza. Contudo, nada havia acontecido. Banhou-se, vestiu-se e penteou os cabelos anelados, esforçando-se para que ficassem quietos no lugar. Olhou-se no minúsculo espelho em que se barbeara, ficava bem melhor limpo.

Já anoitecia quando dirigiu-se à casa, atravessando o terreiro gramado, tomando o cuidado de não pisar nos montículos de esterco das galinhas. Tinha um propósito para aquela noite, não olharia uma única vez para Urzula, mostrando assim que não se interessava por ela de nenhuma forma, que aquilo fora uma coincidência, um lapso passageiro. Sentiu-se infinitamente melhor ao tomar essa decisão. Certamente seria perdoado, não cometeria de novo o mesmo erro.

As portas da sala estavam abertas, permitindo a entrada do ar agradável do entardecer e o aroma da primavera. Parou, pensando no que fazer, temendo entrar e se sentindo mal em esperar. Só estivera ali uma única vez, na saleta dos livros, limitava-se ao trabalho. Ouviu a voz de Wladek vinda de dentro.

- Não fiques aí parado, homem. Entres, chega-te. Estou aqui a tomar um aperitivo.

Ele entrou, meio tímido, observando o cômodo, e o que viu o agradou, nada mau para uma casa rural simples e confortável, uns três metros quadrados, com uma lareira e poltronas de couro, um tanto gastas, tinha de admitir. Na parede lateral uma estante com várias garrafas enfileiradas. Perguntou-se se o patrão bebia com freqüência.

- Tomas uma bebida? – ofereceu um copo pela metade de aguardente. - Senta-te.

Benjamim obedeceu, ainda calado, olhou em volta e não viu a mulher, o que o deixou mais a vontade.

- Sabes, à vezes me sinto solitário, minha esposa não liga para nada a não ser o serviço doméstico e seus próprios pensamentos. Pedro não serve de companhia, prefere os passeios à cidade. Nunca o vejo no final da tarde, mas não posso culpá-lo, é solteiro e livre.

Benjamim permaneceu calado, sem jeito, sem saber onde o patrão queria chegar com aquelas intimidades. Havia um caroço de abacate na sua garganta, medo da mulher aparecer de repente, medo de relembrar o momento, por mais que quisesse esquecer a comunhão já tinha se dado. Tomou a bebida, sentindo a garganta queimar a cada gole. Os braços pareceram membros desnecessários e, na falta de um lugar para apoiá-los, imitou o homem, descansando-os na poltrona.

- Ouvi comentários sobre a guerra na Europa, não sei até que ponto são verdadeiros;x todos achavam que acabaria logo, que seira apenas uma ofensiva, mas continua e disseram que minha querida Polônia está sofrendo. Que achas das guerras, Benjamim?

O patrão se esforçava por tratá-lo como amigo. E ele também se sentia solitário na estância, tinha muitas idéias sobre as coisas e o mundo, só não havia quem as ouvisse. Relaxou e imaginou um amigo de longa data, Joaquim talvez, e respondeu:

- Não entendo muito de guerras, senhor, mas acho que nenhuma tem sentido, acho um grande desperdício de vidas. A maioria dos soldados que estão nas frentes, nem sabem porque estão lutando.

- Estás certo, quem faz a guerra são os poderosos sentados em suas mesas, bem alimentados e bons oradores. Quem vive todo o horror são as pessoas simples como nós, camponeses e pais de família, numerados como gado, conhecidos somente quando voltam para serem enterrados em sua terra natal.

Falou sem encarar o jovem, como se dialogasse consigo mesmo. Benjamim via uma faceta do patrão que não julgava existir, olhou com carinho a face rústica do homem a sua frente, seria um bom amigo. Estavam já no segundo copo, quando Wladek voltou a falar do andamento da guerra, lamentando pela sorte dos jovens. O monólogo foi interrompido por Ainá comunicando que o jantar estava pronto. Urzula entrou relutante, olhos baixos e foi se encostar na poltrona do marido, brincando com os dedos. Foi só a ver e toda a determinação de Benjamim rolou como flor em corredeira, havia se esquecido de que o mundo podia comportar tanta beleza. O pulo do coração o pegou desprevenido e a voz de Wladek também.

- Vamos comer, Benjamim. Deixemos a guerra para eles que não sabem apreciar as coisas boas da vida, como o trabalho honesto ou o amor de uma bela mulher – colocou o braço sobre os ombros da esposa num gesto inconsciente de posse e a conduziu, com o rapaz atrás. Benjamim observou o corredor e as portas fechadas, mas foi a cozinha que o impressionou. Era grande, tinha um imenso fogão ardendo em brasas e um varal de taquara com lingüiças, chouriços e toucinho secando, armários e estantes com panelas de todos os tamanhos penduradas pelos buracos dos cabos. Havia ainda uma pia com água encanada, um luxo que nunca vira; as mulheres que conhecera baldeavam água em cuias para lavar os pratos. A comida exalava vapores aromáticos e estava disposta em travessas sobre a toalha alva.

- Ainá já foi? – perguntou Wladek à esposa.

- Sim, eu mesma sirvo.

E assim fez, primeiro o prato do marido e por último o seu, evitando encarar o convidado. Comeram num silêncio interrompido somente por um ou outro comentário, ainda sobre a guerra. Benjamim tentou se concentrar nos alimentos, mas em determinado momento sentiu os olhos da mulher sobre si, queimando a pele, tão intenso que não resistiu e levantou a cabeça e a encarou, querendo dizer coisas que nunca havia dito, palavras que quase saltaram de sua boca sem juízo. Ela pareceu compreender, levantou-se e foi em direção à pia.

- Já terminaste, Urzula?

- Sim, estou sem apetite.

- Perdoe-me senhor. Eu também estou cansado e gostaria de me retirar para dormir, se não se importa.

- Claro que não me importo, eu entendo. Trabalhamos demais aqui, sempre foi assim. Teremos realmente um longo dia amanhã. Gostaria muito que continuasses a jantar conosco, estamos longe da vila e de pessoas, precisamos nos unir.

Benjamim se levantou querendo sumir dali o mais rápido possível, sentindo o sangue subir até a raiz dos cabelos. Não esperava pelo convite, não disse nada, querendo ganhar tempo.

- Em minha estância somos todos iguais, trabalhamos juntos para ganharmos nosso sustento. Não há motivo para ficares constrangido, eu nada faria sem tu e Pedro. Aceites o convite, faço por amizade.

Tudo o que o rapaz pensava naquele momento era em como seria maravilhoso tomar-lhe a esposa e beijá-la até senti-la gemer. Sentiu-se um porco e não gostou da sensação, tudo dentro de si se revoltou, queria sumir, desintegrar-se no ar.

- Será um prazer, senhor.

IV

A guerra continuou a ser o principal alvo de comentários, apesar das notícias chegarem com atraso e Wladek só obtê-las quando ia para a vila comprar os poucos mantimentos que necessitavam, a maioria era cultivada ali mesmo. Os empregados o surpreendiam vagando em lugares distantes e, quando interpelado, respondia que pensava nos parentes que deixara para trás. Era a primeira grande guerra, envolvendo muitos países. O Brasil mandara enfermeiros e médicos para ajudar no socorro e cortara as relações diplomáticas com a Alemanha, era só o que sabia. Depois de muito refletir, Wladek olhava em volta, o verde machucando os olhos de tão bonito, o gado em pequenos grupos mugindo tranqüilamente, o silêncio acompanhado da brisa suave. Então sorria para o céu, para a sua sorte, para a sua vida, que era perfeita, ou melhor, quase, só faltava um filho. Deixava o conflito para trás, tudo estava tão distante que parecia irreal, um teatro ensaiado para preocupar e ludibriar o povo. A vida seguia seu curso, apesar de todas as desgraças humanas.

Na falta de uma desculpa plausível, Benjamim acabou por aceitar o convite e passou a jantar em companhia dos patrões. Isso o agradava muito, tinha a sensação de viver em família, com a conversa agradável de Wladek a lhe adoçar os ouvidos, o sabor infinitamente melhor dos alimentos consumidos em grupo, enfim a sua vida estaria completa se não fosse um único detalhe: Urzula. Ela lhe provocava algo como cócegas internas, vontade de sorrir e chorar, um turbilhão de emoções sem nexo, uma terrível dor pela ternura em demasia e um remorso tão intenso ao pensar no patrão, que lhe parecia fazer o peito explodir em mil pedaços. Seguiam o mesmo ritual todas as noites, primeiro uma cachaça, pois o vinho era reservado para ocasiões especiais , a conversa sobre os negócios da estância e raramente algo sobre política. O país era grande demais para as notícias chegarem ali sem estarem completamente desatualizadas. Benjamim aprendia os macetes da administração, negociações com o gado, épocas certas para o plantio e admirava a vivacidade do patrão, prezava-lhe a amizade como dádiva divina. Entretanto, quase não aproveitava o jantar, acabando por sentir fome de madrugada. Ficava sempre nervoso na frente dela, não sabendo nunca onde pousar os olhos, com medo de deixar transparecer sua emoções, e o medo de ser correspondido. Não admitia se tornar alvo de atenções, nunca ousaria pensar que talvez ela o quisesse, o receio era tão grande que imediatamente procurava pensar em outras coisas. No entanto, a mulher estava a sua frente, dilatando as narinas, comendo como um passarinho. Wladek não dava amostras de perceber o que se passava a sua volta, justificava a falta de apetite da esposa alegando que sempre fora assim, uma criança em muitos sentidos, precisando ser guiada na vida. Sorria para os dois e comia bem, ignorando o conflito por que passava o jovem empregado e amigo.

OBS: Parte integrante do livro "Fúria e Redenção", da autoria de Ditinha Lima e roteirizando por JD Morbidelli.

Para conhecer o roteiro na íntegra, favor entrar em contato por e-mail.

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JDM

José Donizetti Morbidelli
Enviado por José Donizetti Morbidelli em 14/05/2008
Reeditado em 30/10/2009
Código do texto: T989490
Classificação de conteúdo: seguro
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