Estranho Visitante

Na primeira vez que entrou na Galeria de Artes ninguém lhe prestou muita atenção. Ele era apenas mais um dos freqüentadores que circulava entre as obras expostas. Além do mais, sua aparência não revelou nada de extraordinário. Era um homem de altura mediana, idade difícil de ser avaliada, talvez não passasse dos cinqüenta anos. Nem seu modo de se trajar, terno cinza completo e de bom corte, gravata combinando com a camisa, na mais perfeita elegância.

Percorreu toda galeria, como faziam todos os visitantes, deu uma volta em torno de si mesmo e parou diante do quadro de uma linda mulher. Moveu a cabeça de um lado para o outro, como quem procura avaliar detalhadamente a obra que apreciava, deu um passo à frente, aproximou-se do quadro e ali permaneceu um longo tempo, sempre movendo a cabeça em busca de melhor ângulo para uma avaliação, com o rosto quase colado à obra. O que veio a causar certa inquietação ao segurança que o observava a uma razoável distância.

A partir daquele dia passou a freqüentar a Galeria com uma assiduidade impressionante. Com horário quase britânico, lá estava ele. Só que já não circulava em busca de outras obras, ia direto ao quadro, como se fosse uma obra particular, sem se importar com outras pessoas e até mesmo com os funcionários da casa.

Se todos os funcionários, e até mesmo alguns habituais visitantes, já haviam se acostumado com aquele assíduo freqüentador, não se poderia dizer o mesmo da recepcionista, uma linda mulher que também trazia em si o enigma de sua idade. Jeito cândido e falar calmo, que já causara boa impressão a alguns freqüentadores que se insinuavam, mas sempre rechaçados com toda dose de paciência e boa educação. Alguns velhos viúvos, ricos e cheios de esperança de disporem da bela criatura, outros jovens, ávidos por aventura. Nada conseguiam. Ela trazia, guardado em seu íntimo, o imenso desejo de ser compreendida e viver em paz e harmonia. Sua vida toda sempre fora uma busca constante de alguém que lhe trouxesse garantia de companheirismo e a certeza de poder formar uma família. Ansiava encher o vácuo que havia em sua vida.

Naquela tarde, como de costume, lá estava o visitante em frente a sua obra predileta. A jovem aproximou-se daquele estranho e tentou comunicar-se. Por alguns segundos ficou a negacear movida por uma angustiante dúvida, estaria quebrando a privacidade de um visitante?... Embora bem próxima, não foi percebida pelo homem, que por algum tempo não prestou atenção nela e continuou com o olhar totalmente voltado para o quadro. Para ela aqueles minutos lhe pareceram horas, e na esperança de uma aproximação indagou com toda presteza:

- Senhor, em que posso servi-lo? Vejo que esta obra lhe agradou muito.

As palavras saíram-lhe trêmulas, tal era seu receio de aproximar-se e ser rechaçada. O desconhecido foi despertado de sua contemplação, respirou profundamente, ficou parado, testa franzida, como se estivesse ouvido uma voz longínqua pronunciar seu nome. Só então percebeu pelos contornos da silhueta que estava diante duma mulher. Ficou por algum tempo a mirá-la. Quanto a ela, por sua vez, sentiu aos poucos uma estranha calma trazida pela intuição de que daquela criatura não poderia vir nenhum perigo, além do mais seu olhar era penetrante e trazia uma aura de paz.

- Gostaria de saber alguma coisa sobre esta obra? - Falou, esforçando-se por ser naturalmente prestativa e educada. Dito isso, entregou-lhe um catálogo onde continha maiores detalhes a respeito da referida obra.

Ele, sem nada dizer, estendeu a mão pegou o catálogo que lhe era oferecido, saiu a caminhar lentamente rumo à saída, sem ao menos balbuciar uma simples até amanhã. Nada. Silenciosamente foi-se!

No dia seguinte no mesmo horário de praxe, lá estava ele, diante de sua obra predileta. Mas o que causou certo espanto e admiração foi a forma com que ele se trajava. Vestia-se ao estilo de um dândi do século XIX, usando sapatos de verniz banco, um terno de risca de giz, na cabeça um chapéu panamá e até mesmo um monóculo.

Passada a surpresa, a recepcionista mantendo-se distante, pôs-se a tentar entender tal cena. Estaria ele tentando ressaltar a conexão da época vivida pela personagem retratada naquela obra de arte e manter-se em sintonia com a arte? Para não cometer qualquer constrangimento, não se aproximou do visitante ocupando-se com outros afazeres numa sala contígua.

Sem se dar conta de que já havia decorrido algum tempo, voltou ao local da exposição em que se encontrava a obra referida, ficou espantada de não mais encontrar o visitante. Lá estava o quadro e, preso à moldura, encontrou um envelope, abriu-o e leu o seguinte poema:

OLHAR EMOLDURADO

Quisera sempre - verdadeiramente quisera,

Mergulhar em seus olhos envoltos de mistério,

Trazer o infinito do seu negro brilho sério.

Embora admita que isso seja simples quimera.

Quisera sim, muito que eu quisera,

Traduzir em luz qualquer escuridão que encobre

Tão cruel enigma profundo.

Por certo seus olhos revelam sua existência no mundo.

Esse mistério me intriga, me excita.

Tento desvendar sua identidade

Mergulhando em sua eternidade.

Nada temo em questionar:

Esconderão amor calmo, como profundas águas?

Ou tentam ocultar mal curadas mágoas?

Quem nesses olhos mergulhar por certo descobrirá,

Os longos dias em que vivestes antes de mim.

Uma das razões que nos faz tão distantes assim.

Já que nada mais posso desejar, a não ser

Continuar sonhando esclarecer tão profundo mistério.

A mim resta ficar aqui diante dessa moldura

A lamentar o absurdo que nos separa,

Você presa num passado que se foi, deixando

Eternizada a imagem por ditoso artista que a concebeu,

E eu no presente sonhando por resposta que ninguém me deu.

Para mistério tão intrigante do seu olhar profundo e provocador

Digo, com certeza, que continuarei confundindo mistério com amor.

Por cautela faço do silêncio uma forma de diálogo.

Na realidade só em sonhos posso provar de seu afago.

Sem saber o que fazer, dobrou o papel, colocou-o de volta no envelope e guardou na gaveta de sua escrivaninha.

No dia seguinte ansiava encontrar aquela estranha criatura. A noite fora mal dormida, quando passou e repassou todas as cenas daquele dia e o que mais lhe chamava atenção não era só o comportamento daquele homem, mas sim o que mais lhe causou emoção foram seus olhos. Seu olhar era penetrante e pareciam querer dizer algo muito especial.

O dia caminhava aos tropeços, parecia que as horas não passavam. Em seu coração a esperança de encontrar de novo a estrada iluminada dos olhos daquele estranho. Esperava vê-lo entrar por aquela porta, pontualmente como vinha fazendo, mas como isso tardasse a acontecer, começou a ficar inquieta e de novo lhe veio o medo, a sensação de que não o veria. De súbito lhe veio a realidade, as poucas pessoas que ainda restavam agora se retiravam. Hora de encerrar o expediente e ele, nada!

Deixou-se ficar ainda por alguns minutos naquele ambiente agora solitário, silencioso, ouvindo somente o pulsar do próprio sangue nas têmporas. Ardor na garganta e secura na boca, provocadas pela ansiedade de não conseguir realizar seu desejo de tê-lo diante de si, ainda que por um curto tempo.

E assim foram seguindo dias após dias, sua ansiedade e frustração.

Final de expediente, consulta o relógio naquela hora já tão habitual e nada dele aparecer. E de novo aquela aflição, aquele medo de não tornar a vê-lo. Com o peito cheio de anseios, mas também imbuída de esperança prometia a si mesma que continuaria a aguardar o seu retorno. A rotina continuaria: final do dia de trabalho, suspiro profundo, lágrimas a rolarem por suas faces, enxugá-las com a costa das mãos, dirigir-se até os interruptores para apagar as luzes, fechar as portas e a certeza de que no dia seguinte ali estará para nova e torturante espera. Teria que se contentar com aquela rotina.

Laerte Creder Lopes
Enviado por Laerte Creder Lopes em 19/05/2008
Reeditado em 19/05/2011
Código do texto: T996847
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