Alfredo, Alfredo...
Uma euforia geral, na festa de despedia de Alfredo. É, chegara a sua vez de se aposentar; pendurar as chuteiras, por a barba de molho, amarrar o saco, enfim, toda aquela baboseira que ouve – porque naquele momento o seu ouvido era penico – alguém que vai se aposentar. Ah, você ainda não se aposentou? Mas vai, ou morre antes.
A frieza da aposentaria não é tão diferente da frieza da pedra do necrotério – quem, eu! Não, um passarinho me contou; mas já morreu também.
Bem, continuemos senão o Alfredo bate as botas de tanta emoção e vocês ficam sem conhecê-lo.
Alfredo era filho de imigrantes portugueses que vieram tentar a vida no Brasil lá pras épocas de 1970 – esses vieram tentar a vida no Brasil e não saquear o Brasil; ficou claro?
Quando chegou aqui, Alfredo já contava com os seus 12 anos de idade. Três anos mais tarde, arrumou o seu primeiro emprego no ramo de couro, para nunca mais sair, até o dia de sua aposentadoria.
Desde o início, como “Office Boy” Alfredo ficou conhecido como “Portuga”, que o deixou super irritado no início, mas devido à forte pressão exercida pela massa trabalhadora, ou seja, pelo proletariado, que aflorava, à época, com suas idéias Marxistas; ficou “Portuga” e pronto. Existia sempre uma resistência; uns “Puta que o Pariu”, pralá; uns “Raiosque o Partam”, pracá, mas o fato é que Alfredo teve que ceder ao famosíssimo costume do brasileiro de achar que Português é fácil de ser enrolado e muito tapado. Ah, se os brasileiros fossem mais espertos, desde o início, o nosso ouro nunca teria o codinome de “Português”.
A sua vida no Brasil não foi diferente da vida de nenhum de vocês leitores, bem, pelo menos da maioria. Cursou os antigos “Primário, Ginásio e Colegial”, casou-se com uma linda baiana e criou comela três filhos.
Na empresa, desde o início procurou se empenhar no serviço para ir galgando os degraus do sucesso. Fez cursos, se aperfeiçoou nas variedades de produtos ali comercializados, constituiu fortes amizades, dentre elas o velho Peixoto, que sofria de uma asma braba de se agüentar, e dizia que o seu único e melhor amigo era mesmo o Alfredo. Bêbado, no botequim da esquina da empresa, muitas vezes gritava, jogando cuspe para tudo que era lado:
_Esse “Portuga” infeliz, filho de um cabra da peste ultramarino é o melhor e único amigo que tenho. Quando eu me for dessa vida maldita, ele irá segurar uma das alças do meu caixão.
Isso, tempos depois rendeu a Alfredo duas hérnias de disco, e um bico de papagaio. É que Alfredo era mesmo o melhor, e ÚNICO amigo daquele miserável, e teve que carregar o caixão sozinho. Chovia no dia do enterro, e arrastar com uma corda, um caixão com um homem que pesava uns 120 quilos. É, as vezes português dá mancada mesmo.
Mas, voltemos à festa...
Todos estavam presentes, o senhor Mário, sócio majoritário da empresa, Eunice e Gustavo, os dois minoritários.
Estavam também presentes os funcionários que durante toda aquela trajetória trabalhista de Alfredo o acompanharam. Ali, meio escondidos também se encontravam alguns que já haviam sido demitidos, por Alfredo, mas o perdoaram e resolveram ir à festa lhe dar os parabéns por uma vida de labuta e sucesso. Acho mesmo é que foram sacanear o pobre do Alfredo, pois todos já se encontravam em uma posição profissional muito mais privilegiada.
Um deles até chegou mais perto e disse:
_Ae "Portuga", aposentado heim! Agora ta numa boa; ganhando uma merrequinha, mas feliz por ter cumprido a sua missão. E felicidade é o que importa não é mesmo? E lhe deu os parabéns com um abraço bem apertado, coisa que deixou Alfredo muito marcado, nas costas, com a ponta da chave da BMW de seu ex-colega de trabalho.
Discurso, discurso...
Na verdade, ninguém tava muito a fim de ouvir Alfredo; é que ele ainda tinha um forte sotaque lusitano e todo mundo caia no riso quando ele ficava nervoso antes de falar algo.
Após toda aquela cretinice imbuída de forte dose de falsidade, tudo acabou. Restaram ali, copinhos descartáveis, pedaços de bolo no chão, alguns faxineiros putos da vida e uma sensação de dever cumprido.
No dia seguinte, Alfredo levantou mais tarde. Fez questão de jogar o seu despertador de Galo pela janela, e achou mesmo que fosse aproveitar.
Levantou-se por volta das 10 horas da amanhã sob o olhar emburrado da baiana que já começava a vislumbrar sinais de vadiagem e aproveitamento da situação.
_Bom Dia, querida esposa!
_Bom Dia. Bem, vamos direto ao assunto, o teu salário caiu pela metade, as contas não, você ainda é novo, não dá mais no coro, ma ainda é novo e não acho que queira mesmo ficar em casa para me atrapalhar.
_Mas, mas!
_Não tem conversa. Vai picando a mula que aqui dentro mando eu. Emprego é o que não falta. Arranje um meio período e depois curta aquela praça fedida ali da esquina, que só tem aposentados. Aí sim, pode jogar o teu dominó, tomar a tua cachaça e tossir bastante.
_Mas, eu tenho o direito de curtir pelo menos algum tempo.
_Negativo seu “Portuga” vagabundo. Taqui o jornal, e um rabisco encima de um emprego que vai te interessar; é de “Office Boy”. Assim você se sente mais novo.
É, a vida não seria tão fácil para o pobre Alfredo que achou mesmo que teria finalmente um pouco de descanso. 
_Êta baiana arretada sô – agora, imagina essa frase com sotaque de português; ridícula né.
Mas, cortemos os pormenores e vamos adiante. Alfredo deu sorte, pois o seu perfil era justamente o que o dono do escritório estava precisando.
_Você aprende rápido Alfredo, o Juquinha – esse tinha apenas 16 anos – é o seu novo chefe e vai te ensinar o trampo. Vá com ele e aprenda tudo sobre a sua nova rotina de meio período.
O malinha olhou Alfredo de cabo à rabo, e sorriu.
_Vam bora mano, qui ce ta presti a se infiltrá na posse.
Alfredo, que mal sabia conversar em português coloquial, agora tinha que aprender linguajarem dos diversos guetos e posses, pois se tornara um autêntico – e novamente – “Office Boy”. Não, não vou ser malcriado e falar – que merda heim – eu também já fui um; e acho que você também já foi.
O serviço não era difícil. Alfredo tinha exatas seis horas do dia para mascar chicletes, falar de Hip-Hop e Happy, comprar uma ou duas calças largas no Brás e fumar uns Gudans Garans. Ah, o serviço resumia-se na simples rotina de ir ao banco pagar contas e duplicatas. Isso nunca muda na vida de um Office Boy; isso sim é uma merda.
Bom, primeiro dia da nova rotina de Alfredo. Chegou às 08 horas e 05 minutos no escritório e já deu de cara com Juquinha que lhe tascou uma enorme bronca pelo atraso. Juquinha tava mesmo é nas nuvens. O mais novo dos irmãos, dentre cinco filhos de um casal de maloqueiros, até privada limpava no seu barraco, e por isso, não podia perder aquela única oportunidade; de chefiar alguém. Mas chefiar mesmo, mandar, jogar algumas baboseiras na cara, criticar, resmungar.
Anos mais tarde, Juquinha continuou a ser mandão, só que na Cadeia. Carcereiro? Não! Juquinha pegou 12 anos por receptação de cigarros e assaltado à mão armada em uma loja de doces. Entenderam agora a procedência de tantos chicletes?
_Alfredo só teve mesmo é que se desculpar e engolir o sapo. Pensava ele:
...Porra meu, só me faltava essa, ser mandado por uma bostinha que nem sabe direito o que é mulher.
Não sabe Alfredo? Ha, há, há! Juquinha já era Pai de duas crianças, e não nasceram loirinhas como as suas não, puxaram ao Pai; raquíticos, respondões e de pele morena, feito Pai e Mãe. A propósito Alfredo, na sua família, tinha alguém loiro de olhos azuis?
Alfredo saiu puto da vida para ir pela primeira vez ao Banco. Quando entrou e deu de cara com aquela enorme fila ficou mais puto ainda.
_Ô Raios, e agora o que é que eu faço. Se eu demorar muito aquele moleque me dá outra bronca.
De repente, uma linda jovem se aproximou de Alfredo e lhe disse:
_Senhor, bom dia, se já está aposentado pode entrar naquela fila ali.
Foi o primeiro regozijo de Alfredo como um verdadeiro aposentado.
A fila de aposentados tinha mais ou menos vinte pessoas, a outra, quase sessenta. Passada mais ou menos meia hora chegou a vez de Alfredo ser atendido.
_Boa Tarde senhor, em que posso ajudá-lo?
_Boa Tarde meu jovem, vim pagar essas contas.
_A, pois não, mas, é que essas contas são de uma empresa.
_Sim, trabalho nela agora. Sou “Office Boy”.
_A, então o senhor deve pegar outra fila, aquela ali.
_Mas, qual é a diferença? Ali só tem gente de idade também.
_Sim, mas são todos “Office Boys”.
Naquele momento, o sangue subiu à cabeça de Alfredo que rasgou todos aqueles documentos, avançou no caixa e deu-lhe uma tapa na orelha, desviou do guarda e tomou-lhe a arma apontou para a porta giratória e começou a atirar.
Como a porta era à prova de balas, os tiros ricochetearam; dois pegaram na mesa do gerente, o terceiro tiro, pegou direto na perna do próprio Alfredo. Que cara mais azarado heim!
Nesse momento, a polícia chegou e prendeu em flagrante o pobre do Alfredo.
Ao chegar na Delegacia, Alfredo tentou se explicar ao Dr. Constâncio, Delegado de Plantão, mas foi silenciado de pronto.
_Homem, que lhe deu na cabeça? Agora terá que responder pelos seus atos.
_Mas, sou aposentado, tive que arrumar um emprego por causa da minha baianinha que não me queria em casa, aí virei “Office Boy” e passei a receber ordens de um fedelho contrabandista de chicletes.
_O Juquinha? Disse o Delegado!
_Sim, o senhor o conhece?
_É claro – masc, masc, e uma bola “ploc” – estamos na cola dele há muito tempo. Mas isso não vem ao caso, continue.
_Então doutor, aí entro em uma fila de aposentados e fico mais de meia hora para ser atendido; quando chega a minha vez, tenho que mudar de fila porque não sou só aposentado, sou aposentado “Office Boy”; e me mandam para outra fila, cheinho de gente igual a esse pobre coitado aqui, todos velhos e cansados, e “Office Boys”.
_Bem meu caro, isso não vai te livrar de um tempinho na cadeia. Mas veja o lado bom disso. Você poderá descansar e desfrutar das regalias de um aposentado.
_Como assim?
_Olhe pelo lado filosófico da coisa. Em casa, você seria um eterno prisioneiro do mau humor da sua querida baiana; aqui você também vai ser um prisioneiro, mas os presos dessa delegacia são muitos legais e divertidos. Não obstante o fato de você te obedecido ordens de um moleque, na sua casa os seus filhos também passariam a lhe dar ordens, porque você é um velho, e na concepção dos jovens, inútil também. Aqui você não terá esse problema pois todos são maiores de idade.
E continuou...
_Na sua casa, você pode se imaginar tendo regalias? Aqui, você é aposentado, de idade e ninguém vai te perturbar. Ah, e por último, você ainda pode fazer parte do nosso programa de atividades profissionais. Existe uma empresa aqui perto que envia para nós alguns profissionais e matéria prima para que os detentos façam artesanato.
Depois de ouvir tudo isso, Alfredo, meio inconformado ainda, aceitou o seu destino, foi a julgamento e pegou 03 anos de cadeia. Foi assim que baiana finalmente apresentou aos filhos o verdadeiro Pai, um nórdico embarcado que ela conheceu em Santos, há muito tempo atrás.
Passado algum tempo, chega então a primeira manhã de atividades profissionais para Alfredo dentro do seu novo lar, a cadeia, e qual não foi a sua surpresa ao adentrar a cela o seu antigo patrão, e aquele funcionário da BMW que agora também trabalhava no ramo do couro e patrocinava o programa profissional.
O espanto foi geral e a indignação por parte do ex-patrão e daquele homem que Alfredo havia demitido por vadiagem, afogou qualquer tentativa de explicação por parte do pobre "Portuga".
Ah, o programa profissional estava encerrado desde então. O Delegado ficou uma fera com Alfredo e os presos fizeram ameaças de que outros couros iam se esgarçar ali dentro.
Possuído por uma forte tristeza e melancolia, Alfredo pegou um pedaço de carvão e escreveu na parede da cela a seguinte frase: Pois, pois, trabalhei a vida toda, sempre mal remunerado, e depois de uma bela festa, eu me vi aposentado. Desprezado pela esposa, na dúvida de ser Pai, não me restou solução. Vou embora desse mundo, dessa vida de ingratidão; mas antes eu vou relaxar. Fumar um Gudan Garam, e um chiclete mascar.
Na manhã seguinte, Alfredo foi encontrado enforcado na sua cela, e um certo couro esgarçado, porque palavra de bandido é firmeza.
Anos após o ocorrido, naquela mesma cela, um certo sujeito olhava e olhava aquela frase e dizia para os outros detentos.
_Aí está malandragem, esse foi um cara que eu faço questão de lembrar e dizer que influenciei na vida. Tudo que ele aprendeu, aprendeu comigo.
Disse Juquinha, e se calou!!!

O Guardião
Enviado por O Guardião em 08/07/2008
Reeditado em 18/07/2008
Código do texto: T1070802