CANÁRIO DE BANDO NÃO PRESTA

Quando era ainda um molecote com meus dez/doze anos, na aconchegante e aprazível e cidade sul-mineira de Poços de Caldas, tinha loucura por passarinhos; e tendo conhecido um senhor, pai de um de meus melhores amigos de infância que possuía diversas espécies da nossa fauna em gaiolas, e era bastante entendido do assunto, passei a rodeá-lo para melhor aprender peculiaridades sobre os costumes e canto das diversas espécies da nossa região.

Meu amor por passarinhos era crescente e parecia não ter limites. Já possuía dois canários-da-terra, um bigodinho, um pássaro-preto, uma coleirinha papa-capim, uma patativa e um bico-de-lacre. Era uma alegria acordar às quatro e meia da manhã para observar seus cantos, seus banhos e a alegria que os contagiava e transmitiam; as pequeninas avezinhas, embora cativas, produziam uma orquestração que me proporcionava enorme prazer, ao mesmo tempo em que me ensinavam a gostar mais e mais da dura vida que já levava, proporcionando-me forças para enfrentar as intragáveis aulas da rigorosa escola que iniciavam logo às sete.

Lembro-me com nitidez que certo dia o Sr. Euzébio me convidou a ir com ele e Binho - o nome de seu filho e meu amigo - a uma caçada de canários-da-terra nas proximidades da cidade.

Saímos bem cedinho, antes do romper do sol. Fomos de bicicletas, carregando um canário, já velho de cativeiro - que serviria de isca - dentro de uma gaiola coberta por um pano, alçapão, lanches, etc., e seguimos para um determinado campo, onde um ligeiro regato descia entre as pequenas grotas, numa manhã de domingo magnífica, o que ainda é comum na bela estância que tanto amo. Fomos abeirando o regato, subindo pequenas escarpas, atravessando campinas, guiados pelo experiente ancião que se mantinha compenetrado e ligado aos muitos sons e trinares que se propagavam no ar, oferecendo-nos constantes informações sobre a diversificada passarada que nos circundava.

Depois de muito caminharmos, eu que ia pouco a frente avistei um bando de canários cabeça-de-fogo, todos aglomerados em torno de uma sementeira que forrava o chão de uma árvore. Com os olhos brilhantes de alegria, corri eufórico em direção aos companheiros para externar-lhes a notícia, indicando-lhes o enorme bando das pequenas aves que se emaranhavam entre as folhas, disputando os petiscos da generosa árvore, numa algazarra sem fim, produzindo um delicioso trinar. Mas para meu espanto, Sr. Euzébio não se alegrou, e com enorme indiferença disse apenas: “Canário de bando não presta”. Aquilo me deixou desapontado, um tanto intrigado e pensativo. Mas, seguimos em frente.

Depois de muito percorrer campos, atravessar grotas, já sob o sol escaldante do meio do dia, paramos para um lanche e descanso. Logo em seguida, Sr. Euzébio, dizendo que até as quatro era inútil procurar pelas aves que se recolhiam, puxou um profundo cochilo, sem a menor cerimônia, enquanto eu e Binho ficávamos andando de um lado pro outro observando as muitas atrações que a Natureza oferecia aos nossos olhos naqueles rincões.

Foi somente no final da tarde, depois de mais um longo período de caminhada que avistamos numa frondosa árvore um casal de canários. Desta vez percebi que os olhos do Sr. Euzébio brilharam instantaneamente, e ele já passou a cumprir uma série de rápidas providências. Primeiro colocou o canário da gaiola o mais próximo da árvore possível com o alçapão aberto, repleto de alpiste. Depois, tomando nossos braços, foi nos levando para trás de outra árvore, onde nos pedia silencio, solicitando que nos mantivéssemos estáticos, para que pudéssemos lograr êxito no empreendimento.

Assim que o canário macho da gaiola começou a trinar, o liberto que estava em galho próximo estufou o peito, arrepiou-se, e com repetidos movimentos das penas da cauda, passou a “estalar” (nome que se dá ao canto dessa espécie) repetidas vezes, em alto som, procurando se aproximar do engaiolado. Logo, lá estava o decidido guerreiro atarracado nos arames da gaiola numa postura de combate, procurando de todas as formas afugentar o intruso, que se mantinha encolhido e sem reação, mas que ao seu ver ameaçava sua felicidade e de sua pequena e formosa parceirinha, que conseguira a muito custo.

A demora foi longa, pois a ave liberta não demonstrava interesse pelo apetitoso alimento que recheava o alçapão; queria mesmo era tirar as diferenças com o outro ao qual considerava inconveniente e atrevido invasor de sua área conquistada. Por sorte (digo isto porque hoje sou um fervorozo defensor da liberdade dos pássaros e quaisquer espécies da nossa fauna) não o capturamos e a pequena e valente ave, desistiu da impossível luta, e, dando-se por satisfeita, levantou vôo com sua fêmea, e certamente seguiu seu caminho, rumo ao roteiro natural de suas pequenas conquistas.

Depois de voltarmos para casa, calados e circunspectos diante do fracasso dos nossos objetivos, num outro dia com mais calma, conversei longamente com o Sr, Euzébio sobre o episódio, e ele me contou que não só essa espécie, mas como muitas outras, vivem em sua maioria em bandos, sob a tutela de líderes, na busca da sobrevivência comum e maior garantia de proteção. Disse ainda que muitas se acasalam e permanecem no próprio bando, onde ficam apenas na tentativa de fazerem seus ninhos e procriarem, mas como são freqüentemente interrompidas por força das decisões do bando, quase sempre abandonam seus inacabados ninhos, ovos ou mesmo filhotes, e por medo de ficarem sozinhas e expostas aos perigos naturais, seguem o bando para onde eles são direcionados pelo casal líder, enquanto apenas uma minúscula parcela decide por essa mudança radical e resolvem concluir seus ninhos, chocar, apartar-se definitivamente do bando e estabelecer os limites de suas áreas de sobrevivência, que passam a ser seus pequenos territórios, estabelecendo assim a maior vitória da vida de um ser vivente e a conseqüente liberdade. E quando isso se dá, os machos passam a ser grandes cantadores e valentes defensores de sua prole, e permanecem com a mesma parceira por muitas chocas, sempre prontos a defender seus tutelados dos invasores com valentia sem limites, passando assim a se tornarem aos poucos novos lideres de bandos que se formam de suas chocas, onde são acatados e respeitados, despertando, infelizmente, a cobiça dos caçadores.

Sem querer estender o assunto e emitir filosofia barata sobre a o óbvio ensinamento que envolve a questão deste, entre outros muitas outras lições da sábia e perfeita natureza, só posso afiançar que este episódio passou a interferir em minha existência desde então, e com cada vez mais veemência à medida em que fui amadurecendo. E não raro me surpreendo a refletir e a perguntar a mim mesmo:

- Será que já sou um garboso canário-da-terra, valente, com escritura definitiva de meu “território” interior, livre pra cantar, escolher, mudar, decidir, ou permaneço como um mero canário-de-bando, refém de modismos, que sempre abandona seus propósitos por imposição de medos, conveniências, injustificáveis submissões e covardias?