Em suas mãos

Sem cortina, o quarto é invadido pela luz da manhã. Na cômoda, os livros e o relógio. Cinco horas. Entrava pela janela um uivo grave de barítono que remetia o pensamento: “– Cedo; dormir mais”. Deitado de bruços, cochilos rápidos a cada mudança de posição. Chega a hora.

Levanto, direto pro banheiro, lavo o rosto, cozinha, bebo água, abro a porta da frente, falo com a cachorra. Rotina.

O dia está perfeito, o sol nasce na medida, posso ver sua alma, no fim da rua as casas e céu.

O vento tornará o clima agradavelmente ameno, uma combinação que só se encontra no Nordeste.

A mata, ao lado de casa, sempre convidativa em dias como este a um passeio, uma caminhada. O dia está azul. A vida sempre está azul. Mas aqui dentro, tempestades não param. Sinto chegando um tornado. Existem momentos em que ser levado por negras nuvens ao esquecimento do fim, no mundo, tem um sabor bem agradável. Ah! O desejo.

A máscara do normal, comum, esconde um desespero: Daniades frente à vida cotidiana e o rumo em que ela se encontra.

Louco é aquele que difere da maioria?

Solidão é loucura?

Seria tão fácil deixar-se levar pelo todo. Viver sem lógica seria verdadeiro?

Viver na mentira, o que é?

Onde está a força para enfrentar o mundo?

Apenas eu estou do meu lado?

Alguns pensam como eu? Procuram ver apenas o seu lado, ou não?

A união faz a força ou a perda da originalidade?

Somos quem somos ou – o que somos?

Ligo o rádio: – “Notícias a toda hora do Brasil e do mundo, ou melhor, a cada meia hora”. Fecho a porta da cozinha, acendo o fogo, água, café, pão...

Enquanto como, penso sobre o individualismo – viver por si só e apenas para si. Ninguém ter o fardo de carregar uma vida em suas mãos. Liberdade.

Viver por viver me parece tão fútil!

Viver por alguém ou por algo me parece tão perigoso. Quem vive por alguém ou por algo morre por eles. Qual a diferença entre encontrar força pra viver ou coragem pra morrer? O que se ganha ou se perde na escolha?

Morrer é inevitável, já viver não.

Se a vida é eterna, que diferença faz morrer?

A vida é eterna?

Se morrer por alguém ou por todos é considerado tão nobre, porque não morrer por si, ao invés de esperar?

Recolho a louça, limpo a mesa, a pia: porque tudo é tão baixo no mundo moderno? Pia do banheiro, da cozinha, tanque – será que a maioria é baixa, ou melhor, muito baixa? Mais uma exclusão social. Estar acima das cabeças e linhas dos olhos e sofrer com o padrão que é insuficiente. Maldita média; o que seria dos pés se os sapatos fossem feitos pela média da região? Felizmente existe a individualidade. Donos de empresas de transportes rodoviários deveriam usar sapatos apertados, tenho certeza – algo mudaria.

Tudo limpo, escovar os dentes, pro quarto estudar. Na única parede do quarto que não forma ângulos retos, “o espelho”. Pendurado num gancho de rede, balança com o vento que entra pela janela. Na frente da mesa, sentado, viro-me pro espelho e vejo uma relação micro e macro. Meu quarto é minha vida. A mesa e a cômoda ficam na mesma parede da janela, o sul – trabalho e consumo. A cama fica na quina das paredes norte e leste onde estão os ganchos da rede – nordeste. A porta está na parede oeste e, fora do contexto, frente à rede, o espelho e a caixa de discos – corpo e alma, “Eu”. Discos, única preciosidade que conseguira adquirir; com a chegada da morte, nada valem. Nem disco, nem todo conhecimento do mundo que era ávido por adquirir.

Paro de pensar em bobagens e começo a estudar. Química, vestibular para Letras. “Um átomo com oito elétrons tem seis elétrons na camada de valência que estão divididos em dois na primeira camada e quatro na segunda...”

Existem momentos em que se concentrar pra somar “dois mais dois” é tão ardoroso como o trabalho de Sícifo. A cabeça está a mil.

O que faz uma pessoa desistir?

Não estar feliz?

Não consigo estar feliz. Esta felicidade latina – Carnaval, São João, Natal; tudo é tão tedioso, falso, mera ilusão. Sinto-me fora do contexto mundo moderno, planeta Terra.

Sonho – Tibet ou uma comunidade ameríndia, o respeito, o extremo respeito à natureza, às pessoas, à lógica. A lógica; serei sempre um branco no meio de índios, de monges. Não há como disfarçar. Aqui, se quisermos, somos esquecidos e passamos desapercebidos.

Entre brancos o que sou?

O que sou?

Ser o que outros já foram é uma questão de escolha. Agora ser o que se é, o que é?

Não consigo achar sentido na vida moderna, essa relação homem versus trabalho versus exploração é ridícula, e somos escravizados. Ser escravo pra mim é a pior coisa na vida. Dá-me coragem para desistir. A prisão do mundo nos obriga a escolhas, e quando a vida nos arranca de forma cruel e violenta nossas escolhas, escolher de novo? Qual o sentido da escolha, então?

Saiu da cadeira e deitou na cama, ruminando pensamentos.

Decidi dar um basta e chegar a uma conclusão em relação a si e ao mundo.

De olhos fechados remetia o pensamento ao mais longínquo passado – o momento da existência em que vinha essência pura de Deus; sentiu presunção, arrogância.

Essência pura de Deus – Não passo de menos de uma gota de porra que fecundou. Na corrida pro óvulo a sorte contribuiu ou foi tudo meu esforço? Estou vivo por que quis muito ou o acaso determinou minha existência? O que importa?

Se quis tanto, por que hoje não quero mais? Por que tenho que estar fadado a me submeter ao acaso? A vida passa sem que ao menos encontre o seu sentido. Liberdade. Sofrer por não encontrar. Acabar com o sofrimento passa a ser o sentido da vida. Tantas maneiras estranhas impulsionam as pessoas!

O sangue correu pelo corpo como nunca. Excitação do novo, do inédito. O acaso da vida e da morte nos escraviza tanto quanto o mundo moderno.

Tenho força, serei livre.

Um humor negro caiu nos lábios, uma felicidade mórbida, uma supervalorização do “eu”. Quantos no mundo descobrem o sentido e quantos têm coragem de enfrentá-lo? Poucos privilegiados como os que se amam.

Amor. Um bom motivo para viver e morrer. Muitos morrem de amor, hoje está meio fora de moda, mas voltemos aos clássicos. Nos quais quando almas gêmeas se encontram unem-se na vida ou na morte. Acredito que esses não morram, transcendam, estão completos.

Minha alma gêmea, minha felicidade, me apavorou tanto que a perdi, apesar de nunca tê-la possuído. O maior medo é que ela encontre o meu sentido para a vida. Somos tão jovens.

Agora o caminho é só.

A esperança sempre aparece nos piores momentos. É a vida querendo viver.

Vida, que vida? A grande maioria vive ao Deus-dará – medíocres.

Hora do almoço. Tenho fome. Fecho a porta, água, arroz, alho... Faço o prato e como calado. Sem som, TV, imerso na loucura.

Os limites que o corpo me obriga a viver. Transcender é morrer sem remorsos. Não existem erros, apenas mudanças de atitude. Não vou lavar os pratos. Vou para a mata.

Escovo os dentes, boto o tênis, repelente.

– Pega a bola, pega a bola.

Cadeado, saiu.

Neste momento todo o tormento parou. O silêncio. Podia-se ouvir grilos na cabeça. Grilos – a trilha sonora do silêncio. Ah! Suspirou. Momentos agradáveis de paz, paz interior. O céu não estava manchado por nenhuma nuvem. O sol distante nesta época do ano era amável, o vento transpassava os pêlos e cabelos, nasceu um sorriso.

As árvores e suas flores que caíram para formar um tapete para os seus passos, resplandeciam toda a luz contida na vida. Em seu olhar-sorriso, milhares de imagens eram degustadas e eternizadas pelas retinas, flashbacks explodiam sobrepondo imagens do passado, presente e futuro. A grama, folhas no chão, uma palha de coqueiro. A fotografia da natureza viva, em movimento a maravilha do caos. O imperfeito perfeito.

Calçamento de pedra, trilha de carro, a aconchegância fria do asfalto. O perfeito sem valor, igual. O sol castigou a terra, o chão secou. Um buraco na cerca, para baixo todo santo ajuda.

O clima na mata é diferente. A mente se aguça.

A natureza lhe espreitava, julgava, é o branco, homem branco que entra na mata.

A consciência estava limpa. O universo conspirava a seu favor. O cheiro do mato no mato é maravilhoso. Shnnn! Verde, fresco. Não o clima artificial, seco, cinza. Shoppings – o ar tem cor de vidro.

Queria água. Poluição, nunca pára, em tudo – no céu, no mar, na terra, no corpo, na mente, na alma, na água estragada, incolor e insípida. Pulo o córrego e saio da trilha; agora o destino está nas minhas mãos. Nunca pisaram onde estou agora. Não nesta mata. Andar fora da trilha é lento, muito lento.

O olhar, os ouvidos, os sentidos se perdem, existem apenas passos. Sair de um ponto a outro – todo o corpo participa, braços, pescoço, tronco, mãos. Mata serrada, fechada, galhos e trepadeiras formando telas, teias. O silêncio é singular.

***

É aqui. Rodo os arredores para verificar se há ou não trilhas por perto. Não quero mais ser encontrado, já me encontrei. Sumir faz com que as pessoas próximas tenham esperança. A verdade é cruelmente precisa, acaba com os sonhos. Realidade.

Sento-me junto à maior árvore; nunca serei encontrado; olho para cima, mando Darwin à merda, ele errou o sentido, subo na árvore e penso na evolução. Observo o horizonte. Subo mais alto, o sol, três e pouco. Toda a vida circundando meu raio de visão; minha percepção eterniza todo o verde, que é vida unicamente luminescente. Choro ao ver o mundo ideal, rejeitado, incompreendido por nós. Desço, no chão, na terra, do pó ao pó. Ser tragado pela terra, alimentar a árvore. Ser parte dela. Vida eterna. Quando realizarmos a fotossíntese, ser parte do ar. Shnnn! Ser respirado, ser parte da vida. Vejo claramente que morrer me expandiria. Finalmente faria parte do todo, de tudo. Água, terra, fogo, ar, mineral, vegetal, animal. Nunca mais fora do contexto, nunca mais dispensável, ser o todo.

Tive certeza da minha realidade. Retirei a seringa do meu bolso. Uma seringa vazia. Resolvi ficar nu. Nada podia me separar do toque que a natureza me oferecia.

Fechei o pulso esquerdo, e com a mão direita fiz o garrote, as veias saltaram à medida que bombeava o sangue cerrando e abrindo a mão esquerda. Mãos – lembrei-me dela. O que fiz! Momentos existem para serem vividos, a lembrança nada acrescenta. Nostalgia.

Um sorriso; os olhos se fecham.

***

Súbito como um estalar de dedos, o frio percorre a coluna vertebral, a desperta.

As mãos trêmulas seguram um envelope amarelo contendo o que acabara de ler.

Vê-lo morto embaixo da grande árvore, sorrindo. E todos os momentos juntos voltam à tona, bons ou ruins, o que é inevitável, porém juntos.

A lágrima de esperança brota.

Pula da cama, fecha a porta, desce a escada, portão, rua.

Dia nublado; esse buraco faz um mês, ninguém conserta; absurdo, mais um prédio; atravessa a rua.

Ouve um estouro.

Em choque, perde a visão.

O transito pára.

A rua pára.

O tempo pára.

As vozes se misturam num tom de lamento e curiosidade.

– Coitado.

–Tu viste, tu viste...?

– Aposto que tava doido; cabeludo, onde já se viu homem cabeludo? Fala o velho irônico.

O chão desaparece, mas não altera a verdade.

O caderno ensangüentado, flores, o ônibus da transnacional, não existe rosto.

O que me importa?

Jefferson Moraes
Enviado por Jefferson Moraes em 05/04/2006
Código do texto: T134384