Hidrofobia
     Aos quinze anos, fui com amigos, passar alguns dias em Areial, cidadezinha próxima a Esperança, interior da Paraíba. Ficamos alojados na casa de Antônio "Polola" Barbosa e a sua família nos acolheu maravilhosamente bem. 

     Viviamos, então, um sonho adolescente irresponsável e indolente. Não chegávamos a ter sexo, drogas e rock-and-roll como lema, mas, bastava-nos namoricos, eventualmente álcool, rock e muita m.p.b.. Passávamos o dia à procura de diversão, bate-papo, sinuca, cerveja, cachaça e muitos cigarros ( "Roliúde". Ô sucesso!...-É claro!). Nesse ritmo exaustivo e desgastante, após uma noite em claro num baile colegial e, em sequência, um delicioso e indigesto almoço regado à buchada de bode, fomos ao açude local para curtirmos um banho divertido e relaxante.

     Ao chegarmos, logo mergulhamos naquela água fria e escura. Os companheiros atravessaram facilmente toda a extensão do açude e, da outra margem, me desafiavam para que fizesse o mesmo. Nunca havia nadado tal distância antes, e não era tanto assim, mas me tranqüilizei ao observar as crianças  nativas pequenas  que nadavam desenvoltas e brincalhonas ao meu redor.
Iniciei a travessia. Até a metade do percurso tudo ia bem. A partir daí percebi uma certa dificuldade em dar as braçadas e bater os pés. Quando faltavam poucos metros para chegar à margem oposta do reservatório - que era muito profunda e escavada na pedra- senti um colapso muscular paralisar-me o corpo. Não conseguia movimentar as pernas, mas não sentia cãibras.

     Fui tomado por uma estranha sensação de auto-deboche. Dizia para mim mesmo:
     -Pô, será que isso vai acontecer comigo?
      -Será que vou afogar-me aqui?
E, nesse momento, afundei. Entrei em pânico me debatendo com os braços. Subi à tona. Inspirei profunda e sofregamente...e gritei por socorro. Um grito que saiu gutural e sem nexo, misto de horror, desespero e vergonha. Sim, adolescentes têm vergonha até de dizer que estão morrendo. Divisei desesperado os amigos no lajedo e eles não viram a minha agonia, exceto um, o Ednaldo. Fitei apavorado os olhos dele e, ao afundar pela segunda vez, percebi que o mesmo voltava o rosto para o outro lado, como a dizer que percebera que o meu espalhafatoso pedido de ajuda era mais uma das minhas brincadeiras sem graça.
 
     Submergi em convulsões infrutíferas e senti minhas forças exaurirem-se. Tive pena de mim mesmo. Talvez tivesse chorado não fosse tão esdrúxulo o momento e tão exíguo o tempo e o ar. -Será que choram os afogados?

     Entrei numa fase de torpor e, com medo do sofrimento de morrer asfixiado, lembrei-me que havia lido em algum livro que a morte sobrevém mais rápida aos afogados, tanto mais rápido eles permitem a entrada de água em grande volume nos seu corpos. Abri a boca e deixei a água fluir livremente, engolindo-a com passividade. A asfixia já não me atormentava tanto, sinal que entrava numa fase crítica de anóxia.

     Comecei a ver uma claridade intensa em minha mente tal como a luz do sol refletida na superfície tranqüila de um lago. Como em flash-back ultra-rápido assisti às cenas mais relevantes de minha curta vida, momentos marcantes de minha breve existência. Para  minha surpresa, vi-me transportado à sala onde ocorria o velório do meu corpo. Como um espectador invisível, testemunhava os amigos e parentes a me carpirem. Minha mãe, desesperada, em prantos balbuciava:
    -Tão jovem que ele era!
    -Somente quinze anos ele tinha!
Não vi o meu rosto por entre as flores que enfeitavam o cadáver. Centenas de enormes crisântemos amarelos e brancos escondiam o caixão de madeira amarela envernizada.

     Estava prestes a perder a consciência naquele limbo hidrofóbico quando, milagrosamente, senti uma mão salvadora agarrando meus cabelos ( a moda, à época, era estilo black-power ), puxando-me para a superfície. Orlando, um dos amigos, nadador exímio, caíra na água junto com os outros após perceber que o tempo passado não deixava dúvidas quanto ao risco de morte que eu corria. Ao mergulhar ele saiu tateando e teve a sorte de tocar a minha cabeça e empurrar-me para o ar vital. Ao subir agarrei-me ferozmente aos pescoços de outros dois amigos que tentavam me levar para a margem. Um deles, acho que era o Tonho Polola, gritou energicamente dando-me um safanão de alerta: -Me solta, senão morreremos todos! Nesse momento, pelo fiapo de consciência que ainda me restava, lembrei-me dos males que o pânico da morte poderia causar e relaxei deixando que os outros me resgatassem.

     Fizeram-me massagens e manobras respiratórias. Botei muita água e todo o almoço pra fora. Senti-me fraco e uma dor de cabeça intensa, pulsante, atacou-me naquele momento. Fiquei me recuperando deitado no lajedo por um longo tempo enquanto ouvia as gozações dos espectadores. A experiência de quase-morte me transformou completamente. Passei a valorizar intensamente a vida e a agradecer eternamente aos meus amigos por terem me arrancado das garras da morte naquele dia.
Edmar Claudio
Enviado por Edmar Claudio em 05/05/2006
Reeditado em 22/01/2012
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