Electra (ou A Face Oculta da Lua)

"A lua, misteriosa e bela

Serena e muda na sua fria luz

Provoca o delírio e o amor

Em cada face mutante de toda noite

Antevisão de uma ilusão

Em todas as fases do seu ciclo

Reflexo de uma emoção

Mas de todas, a desconhecida,

O outro lado, a oculta, a escura

É onde se esconde o seu eu"

.o.O.o.

Lívia tinha oito anos quando perdeu o pai. E durante o resto da sua infância teve pesadelo que se repetia noite após noite. Nele ela revia a mãe, seu rosto desfigurado num retorcer violento dos lábios, nos músculos da face convulsionados num tremor incontrolável, ouvia a sua garganta emitir som rouco e uivado, um grito que não era humano... No sonho a mãe às vezes rasgava o seu vestido, às vezes arrancava a cabeça de uma boneca, às vezes tentava envenenar o seu cachorro... No sonho, sua mãe não era a mãe que Lívia conhecia.

Com a chegada da puberdade, os pesadelos cederam lugar a outros sonhos. Ela sonhava com seu pai, morto num acidente. Às vezes ela via a cena do acidente com corpo de seu pai junto aos demais, às vezes ela encontrava um homem que ela julgava reconhecer... e se reconfortava no carinho que recebia daquela figura que acreditava ser seu pai. Muitos outros se sucederam, sonhos diversos que não eram mais pesadelos. Ela parou de acordar aos gritos no meio da noite, para o alívio da sua família.

Ao ingressar no curso secundário, ela conheceu o seu primeiro amor. Um garoto da mesma idade e na mesma turma cativou-lhe o coração. Como ele não passou pelo crivo crítico da mãe, Lívia namorava às escondidas. E se sentia culpada... Mas a culpa maior ela sentiu quando um dia flagrou o seu coração palpitar por outro homem. Era homem, não um garoto. Tudo começou com um outro sonho. O seu velho professor de história uma noite aparecera no seu sonho e ela tivera o seu primeiro sonho erótico. Quando acordou, ela teve que reconhecer, o seu professor a atraía. E ruborizou-se diante do espelho, ao recordar o seu sonho. Ela começou a estudar com mais afinco, queria agradar o seu professor. Na classe, ela levantava a mão para múltiplas perguntas, ato que ela repetia em outras aulas para não despertar suspeitas. Ela recebia elogios de todos os professores, era um exemplo de garota estudiosa e aplicada, enquanto o seu jovem namorado era tido como um criador de casos, criticado pelos docentes. E, ela se sentia culpada, ela traía o namorado no seu coração. Tentava compensá-lo, sendo-lhe tão carinhosa como podia, e de novo se sentia culpada, ela traía o seu professor...

Passaram-se anos e dilema continuava, quando seu namorado resolveu abandonar os estudos. Ele não gostava de estudar, e havia encontrado má companhia. A mãe comentara triunfal: "não te disse? eu sabia que ele não prestava! agora você tem a prova... você merece alguém bem melhor que esse bandidinho, minha filha..." O coração da Lívia, consternado, se rebelou... ela amava o seu namorado, o seu professor era sua paixão secreta, mas o seu namorado era o seu verdadeiro amor. Na rebelião adolescente, declarou publicamente ser sua namorada, e escandalizou a pequena cidade desfilando com ele pelas ruas agarrados. O povo em pesar comentava: "que pena, a garota tão inteligente e cheia de futuro nas mãos daquele marginal" A mãe fez Lívia prometer em solene juramento que ela jamais faria amor com ele. "Juro, mãe, eu não vou, e sabe por quê? porque ele quer casar comigo virgem... entendeu, mãe? Não é você, mas é ele que quer assim e eu também!"

O curso secundário estava acabando. O professor de história afixou o convite de casamento no mural da escola. Quando o leu, Lívia sentiu-se invadida por uma repentina e descontrolada onda de ciúme e dor. Ela o havia negligenciado, e o estava perdendo. O seu amor, a sua paixão secreta ia se casar com outra! Ela resolveu visitá-lo na sala dos professores após a aula, sabendo que ele estaria sozinho. Era sua chance de, talvez pela última vez, estar com aquele homem que fora amante no seu sonho que ela jamais esquecera.

Quando ela se anunciou à porta da sala, o professor lá estava corrigindo as provas, e abriu um sorriso carinhoso de quem recebe a sua aluna preferida. Grata pela recepção, Lívia escorregou sala adentro e devolveu o sorriso, o seu ensaiado sorriso mais atraente que ela podia sorrir.

"E aí, fessô, muito trabalho? é nossa prova essa que tá corrigindo?"

"Ah não, essa é de outra turma... mas... senta aí, me conta como vão as aulas... me desculpa, estou te ouvindo, só preciso lançar as notas aqui..."

"Minhas aulas vão bem, eu acho... o curso tá acabando e eu ainda não sei o que vou fazer... se tento uma faculdade, ou se páro de estudar e procurar um emprego"

O professor ergueu os olhos e encarou Lívia. Afetuosamente mas com voz enérgica disse:

"De jeito nenhum, não páre de estudar! Você é inteligente, tem muito futuro! Tem que continuar estudando!"

"Mas... sabe como é, a minha mãe é viúva, não temos muito recurso... talvez eu vá trabalhar e fazer um cursinho à noite se der"

"Isso mesmo, mas faça o que fizer, não páre de estudar, viu?"

"Sei, vou tentar..."

Como o professor voltara os olhos para as provas, Lívia sentiu um leve incômodo.

"Eu soube que vai se casar... E eu nem sabia que você tinha noiva!"

"Haha... é que ela é de outra cidade... eu só a vejo uma vez por mês, porque a viagem é longa e cansativa..."

Lívia, na sua aguçada sensibilidade não deixou escapar a alteração no tom da voz.

"Vai embora daqui, depois do casamento? vai deixar a cidade?"

"Vou, sim... Eu tenho que ir... Gosto muito daqui, mas não dá pra ficar, prestei um concurso público e fui aprovado, vou para capital no início do ano que vem"

"Ahhh! que pena, fessô! Você é tão bom professor, a gente gosta tanto das suas aulas... A gente vai perder um ótimo professor"

"Obrigado, você é muito gentil"

"Eu não sou gentil, eu só digo a verdade, a gente gosta muito de você... eu gosto muito de você"

Novamente, o professor ergueu os olhos para encarar a Lívia. E dessa vez, os seus olhos não eram de um professor dando conselhos.

"Eu também gosto muito de você, Lívia. Você tem sido uma ótima aluna, um orgulho pra mim, como professor"

"Obrigada... eu..." Não conseguiu terminar a frase, ruborizando diante dos olhos do professor, cujo brilho era impenetrável para ela.

"Fala... você ia falar algo, eu quero ouvir, o que você ia falar?"

"Eu... não sei o que ia dizer... uma bobagem... esquece"

Professor continuou encarando a Lívia, em silêncio. E ela começou a se sentir violentamente incomodada. ("Estúpida! por que comecei com isso? agora é que compliquei tudo... que idiota que sou!...")

"Bom... não quero te atrapalhar mais... eu só queria te cumprimentar pelo seu casamento, pena que vai ser longe daqui, senão eu ia na cerimônia, com certeza... Eu vou indo agora..."

"Já?! cedo ainda, fica mais um pouco, eu já estou terminando aqui... quer um cafezinho? tem uma garrafa térmica ali... pega um pouco pra você"

"Tá!" Aliviada com o tom de conversa casual, Lívia levantou-se e pegou dois cafezinhos, um para si e outro para o professor.

"Peguei um pra você também..." Ao se virar, ela quase se esbarrou na barriga do homem atrás dela.

"Ooopa! desculpa!"

"Não, me desculpa você... eu pensei em pegar um também, gentileza sua pegar pra mim..."

Mas, ele não se movia. A proximidade era tão grande que Lívia sentiu o calor do corpo, o odor do corpo, o bater do coração... e sentiu que ia desfalecer. Sensação que ela jamais havia sentido mesmo nos braços do seu namorado.

"Deixa o café aí, Lívia..." A voz soou rouca acima da sua cabeça. Mecanicamente Lívia obedeceu, colocando os copinhos sobre a mesa do café.

Virou-se, de olhos semi-cerrados, inebriada pelo calor e odor daquele corpo tá próximo. E encontrou-se de repente num abraço que afogou todos os seus sentidos num turbilhão de emoções primitivas.

E o seu sonho de anos atrás se tornara realidade... Não era romântica, como o sonho lhe sugerira... Era... violenta, selvagem... dura e fria como o chão que machucava as suas costas... dolorosa... deliciosa... uma eternidade enquanto durou. Mas, assim que o gozo atingiu o seu clímax, e a maré rapidamente refluiu, ela percebeu horrorizada que... o que fizera tinha o sabor do sórdido, do pecado e do castigo. Castigo... para quem? Após tantos anos de esquecimento, a imagem da mãe dos seus pesadelos retornara à sua memória...

Ela pegou o pacote de guardanapo que o professor lhe estendia e rapidamente enfiou metade na calcinha. O homem, de odor tão fascinante e corpo tão quente agora lhe parecia apenas um medíocre sujeito de meia idade, de cabelos rareados e barriga flácida... Ela só queria sair dali o mais rápido possível, encontrar o seu namorado, pedir-lhe perdão e ser dele tão somente...

À noite, ela se encontrou com o namorado. Ela sentia a urgência de lhe contar o que fizera. Mas... como? Dizer-lhe a verdade seria assinar a sentença de morte de um outro amor. E ela não queria perder mais este, no mesmo dia em que perdera o outro. Mas, tinha que contar. Era sua obrigação, a sua lealdade para com o seu primeiro e eterno amor. Sem saber de antemão as palavras que iria usar, ela começou...

A noite era úmida e quente, cheirava a chuva e terra em cio. Confiante no clima da noite e no amor que a impelia a ser honesta, ela criou a coragem para narrar os acontecimentos, sem detalhar no entanto os seus sentimentos que a movera ("Afinal, eu não estou mais apaixonada pelo professor" era a sua silenciosa desculpa). O seu namorado, estupefato, a ouviu em silêncio. Mesmo quando ela terminou, ele permaneceu em silêncio.

"Não vai dizer nada? Por favor, me diga alguma coisa... Você me odeia? Por favor... não me odeie..." ela soluçou.

"Não... não te odeio... Eu odeio é o seu professor! Canalha! Ele te estuprou! Quero que ele morra, desgraçado!"

Boquiaberta, Lívia refletiu... "Eu fui estuprada?!..." O quadro era conveniente...

"E eu que te queria pura no nosso casamento... O filho da puta me destruiu!" O namorado rangia os dentes, e lágrimas rolavam pela sua face.

"Vamos... Eu quero falar com sua mãe"

"O quêee?! ela vai me matar! Por favor, não! Não quero contar a ela!"

"Mas, se não contar, esse desgraçado vai se safar. Ele é um estuprador e você é de menor. Ele tem que pagar por isso"

O seu namorado insistiu. Assim, os dois acabaram indo contar à mãe de Lívia naquela mesma noite. A mãe recebeu os dois com ares de surpresa, não imaginava tamanha ousadia do casal em aparecer juntos na sua casa. Lívia não teve a mesma coragem para contar à mãe o que acontecera. O seu namorado contou, e Lívia só teve que confirmar a história. Quando o namorado terminou, a mãe ergueu a mão para esbofetear a filha, só não a atingiu por intervenção do namorado.

"Não, senhora, Lívia não teve culpa! Não vê? ela foi estuprada! O filho da mãe se aproveitou da ocasião e a estuprou!"

"Estupro, é? o que que cê foi fazer lá na sala dos professores, pra início da conversa, filha? me diga! e não me venha com história de cumprimentar o professor, que essa eu não engulo!"

"Mas, é verdade, mãe! Eu só queria conversar com ele, ele é bom professor, e eu gostava dele... como soube que ele ia se casar, fui lá... eu ia imaginar que um cara noivo ia querer outra mulher?!" A sua frase soou convincente para a própria Lívia... ("É isso mesmo, foi isso que eu fui fazer lá... eu nem me lembrava do sonho que tive quando bati a porta da sala...")

"Tá vendo? A senhora tem que fazer alguma coisa, tem que ir falar com o diretor, com a polícia... O canalha não pode se safar dessa, impune. Se ele safar, sou capaz de ir atrás dele e matar com as minhas mãos!"

"Hm... tô pensando... Filha, quer ir falar com a polícia, fazer corpo de delito? Vai ser um escândalo, e eu odeio escândalos, você vai ficar falada aqui na cidade..."

"Se a senhora consente, eu me caso com a Lívia já, e o povo que se dane!"

"Ah!... você gosta mesmo da minha filha, né... tô vendo... e começo a gostar de você também, viu, rapaz... difícil um garoto da sua idade ter esse comportamento com a namorada que acabou de transar com outro homem..."

"Mas... me deixa pensar... não quero envolver a polícia nessa história... mas o cara tem que pagar, isso é fato... fiquem aí, os dois, enquanto faço um café e penso no assunto... já volto"

A mãe os deixou na sala e desapareceu na cozinha. O casal, de mãos dadas, trocou alguns beijos, um pouco assustado com a sala iluminada. Lívia, imensamente aliviada e grata pela compreensão do namorado e da mãe que a isentaram de qualquer responsabilidade no acontecimento, sentia que poderia ser feliz sem culpa, se pudesse apagar o episódio da memória de todos. Quando a mãe voltou à sala com a bandeja de café na mão, encontrou o casal semi-adormecido no sofá.

"Acho que já sei o que vou fazer... Lívia, você está caindo de sono. Despeça-se dele e vá dormir."

Lívia estava realmente cansada. O dia passara como um furacão na sua vida, destruindo a sua adolescência e fazendo nascer uma mulher. Despediu-se do namorado sem protestar, e foi dormir.

Teve, então, o velho pesadelo... O rosto da mãe petrificada num espasmo de dor avassaladora, rasgando a roupa, querendo a morte de todos que estavam próximos... A mãe amara tanto o pai que odiara os vivos?... O pesadelo já não era pesadelo, mas um sonho de pesar e tristeza pela dor da mãe.

No dia seguinte, Lívia encontrou a casa vazia. Sobre a mesa da cozinha um bilhete: "Eu viajei, volto o mais rápido possível. Vai para casa da vó e fica lá até eu voltar. Não vá pra escola, enquanto isso. Avisei a escola que você está doente, não desminta! Beijos. Mamãe" Lívia telefonou para o namorado, assustada. A mãe dele respondeu que o seu filho não voltara para casa naquela noite, mas avisara que voltaria em dois dias. "Ah! esse moleque! só me dá dor de cabeça!..." Lívia compreendeu que a mãe e o namorado haviam encontrado uma solução para a situação e que começaram a agir. Sem mais nada para fazer, obedeceu ao bilhete, e esperou pela volta dos dois.

Eles demoraram mas voltaram. Ansiosa, Lívia queria saber o que haviam feito, mas nenhum dos dois contou o que andaram fazendo. De volta para casa, a mãe disse que Lívia podia retornar para escola. Lívia não queria, tinha medo e vergonha de voltar e encarar o professor. "Ele não está mais na escola, filha, fica sossegada, e volta pras aulas, que você não pode perder o ano"

De fato, quando a Lívia compareceu às aulas, soube pelas amigas que o professor de história havia pedido demissão e fora embora sem se despedir. No mural, o convite de casamento havia desaparecido. Os demais professores nada diziam sobre o sumiço do colega, mas os alunos tentavam adivinhar qual era a natureza da fofoca... Até que a coisa vazou, através de um aluno, filho de outro professor.

"Parece que o nosso professor era um pedófilo!"

"Quêee? Como assim, transava com crianças?! Não acredito!"

"Quem diria, ninguém nunca desconfiou de nada disso!"

"Ouvi meu pai conversando com minha mãe... parece que alguém tirou umas fotos dele com crianças, mas não sei direito...""

Lívia insistiu com a mãe naquela tarde, querendo saber o que ela e o namorado haviam feito. Ao invés de responder, a mãe comunicou a sua aprovação quanto ao namoro do casal. O namorado também mudou de atitude; recomeçou a estudar, arranjou um emprego, freqüentava a casa da Lívia e levava presentes para a mãe. Mas nenhum dos dois contavam a verdade para Lívia. Em um ano, casaram-se com direito ao vestido de noiva e grinalda de flores brancas.

Na lua-de-mel, Lívia voltou a insistir. "Agora somos casados, não quero mais segredos entre nós. O que foi que fizeram com o professor?"

O marido pensou em silêncio...

"Você promete não contar pra ninguém? Nós fizemos tudo para o seu bem, e pra bem de todas as garotas"

"Prometo, me conte agora"

"Bom... a sua mãe me contou uma história naquela noite, depois que você foi dormir. Ela me disse que compreendia melhor do que eu mesmo o que eu estava passando, sentindo, e que ela ia me ajudar e a você..."

"A gente ligou pro professor, dizendo que você tinha nos contado sobre o que aconteceu, e mandamos o cara nos encontrar num lugar"

"Você sabe, Lívia, eu nunca fui um santo, eu conheci muita gente barra pesada... Se não fosse o seu amor, eu nem sei onde estaria agora... na cadeia, talvez, ou até morto... Bom, mas essa é outra história..."

"Eu pedi ajuda de uns amigos meus, e a gente levou o professor pra um puteiro... lá a gente drogou o cara, e ele fez o resto com umas pimentinhas de lá... eu tirei umas fotos e dei pra sua mãe"

"Ela foi falar com gente da capital, da secretaria onde o professor ia começar a trabalhar, enquanto eu fui falar com a noiva do professor, com a cópia das fotos... Puxa, aquilo eu não devia ter feito... coitada, a mulher quase teve um troço..."

Quando voltamos, fomos falar com o diretor, entregamos as fotos pra ele também... Só então, quando tudo estava feito, meus amigos soltaram o professor"

"Santo deus!" Lívia estava estarrecida... O que havia feito? Ela, por ter consentido na hipótese do estupro, fora o pavio da bomba que despedaçou a vida de um homem. Sem emprego e sem noiva, onde estaria ele agora?... Lívia tentou relembrar o rosto do professor. Mas o único rosto que emergia na sua lembrança era de seu pai, que na época devia ter a mesma idade do professor. Mas, era homem mais alegre, sempre gargalhando, brincando com ela, Lívia criança. Perdida na lembrança do pai, o rosto da mãe emergiu para perturbar ainda mais o espírito da Lívia que mal acreditava no que seu marido lhe acabara de contar. Mãe...!

"Ah! E, o que foi que minha mãe contou, que fizeram vocês dois bolarem esse massacre monstruoso do professor?"

"Acho que isso você tem que perguntar pra ela mesma... eu não posso, eu não devo... É coisa de sua mãe, e só ela pode te contar, se ela quiser"

Lívia insistiu. O marido não cedeu. Lívia continuou insistindo, insistindo pelo resto da lua-de-mel...

Finalmente, o marido disse: "Olha, eu só vou te dar uma pista, tá? O resto é com você e sua mãe!"

"Sabe por que eu fiquei tão mal quando vi a noiva do professor?... Porque ela me lembrou a história da sua mãe..."

Foi como um raio que atingira a sua visão. Lívia empalideceu... A memória, como uma imensa pororoca, assaltou a sua mente... A última vez que seu pai brincara com ela, os dois haviam sido interrompidos pela mãe... Lívia forçou a mente tentando se lembrar... Os dois discutiram? brigaram?... ela não conseguiu avivar a memória, apenas reconheceu a mesma sensação de outrora: um medo profundo, um pavor que anuncia o furacão... Então, seu pai saíra... Era de noite, mas ele saíra. E Lívia sentira culpa, sem motivo. A próxima lembrança daquela noite é a de barulho na sala, gente falando, gente gritando... sua mãe uivando como um lobo... Seu pai havia falecido num acidente... e não estava só. Uma jovem estava com ele e morrera no seu colo, com ele.

Lívia percebeu que odiava sua mãe, odiava o seu mundo que de repente se descortinara para ela. Porque sua mãe amara e odiara seu pai a ponto de querer a morte de todos os que continuavam vivos no mundo sem ele... não chorara pela morte do marido, chorara de ódio e de frustração por que ela não pôde resgatar o seu amor, nem se vingar dele e da jovem mulher que lhe roubara o seu marido, eles haviam partido negando-lhe para sempre a oportunidade de lutar. E ela, Lívia, havia dado a faca e o queijo na mão daquela mulher que esperou anos por esse gosto de ver um homem pagar pela culpa, e sofrer no lugar do falecido. "Assim..." Lívia pensou aterrorizada, "é como se eu matasse meu pai, outra vez... eu fui usada... eu usei o professor?... usamos a noiva do professor! e agora?... como vamos de hoje em diante viver, eu, mamãe e você... com esta culpa no coração?..."

Clary
Enviado por Clary em 20/05/2006
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