Roteiro de sonhos
 
Belvedere Bruno

         Enquanto a multidão se encontra absorvida e, por vezes , perdida nos intensos apelos à juventude eterna, mergulho nos meus sonhos repletos de amanhãs,  consciente, no entanto, de que o amanhã é algo meramente virtual, e  o que vale é o aqui e agora.
           Teço meus sonhos sem, contudo, mostrar lastros de alienação, atenta que sou  ao  corre-corre do dia-a-dia,   sirenes, bate-estacas,vulcões emocionais e perplexidades mil. Vivo  roteirizando meus sonhos, o que se constitui num intenso exercício de aceitaçao às mudanças que  já  se delineiam.
              Vivo  numa cidade pacata, no interior do sul. Minha casa tem inúmeros canteiros, e meu quarto, uma estante repleta de livros. Sempre fui viciada em leitura. Mudaria apenas por ter completado oitenta e cinco anos?   
              De vez em quando, ainda  escrevo, sempre com toques de nostalgia, mas aquela nostalgia que não entristece, que  não faz do coração caquinhos...  Tenho amigas escritoras, cantoras e pintoras.  Semanalmente, nos reunimos para saraus  no pequeno centro cultural da cidade. Conservo as preferências de minha  mocidade. Aliás, nunca deixei de me considerar jovem.   Filhos, netos e bisnetos , por vezes, chegam em visita,  trazendo aquela euforia própria da juventude, que nos deixa em estado de graça.
             Após tantas décadas juntos, continuamos  um casal  quase perfeito: cúmplices, amigos;  e como gostamos de aproveitar cada dia que se apresenta aos nossos olhos! É  uma constante renovação.
            A mesa onde ele se reúne com os amigos para o carteado dos domingos, a cada ano, vai se esvaziando.  E  vamos vivendo, conscientes de que sempre fomos realistas em relação a perdas e ganhos, porém nunca tivemos dúvidas em relação ao  nosso amanhã. Tínhamos certeza de que envelheceríamos juntos. Havia uma verdadeira comunhão de almas entre nós, eu costumava dizer, embora  fosse uma pessoa cética, desligada  de temáticas religiosas ou místicas. O que, então, teria me dado essa certeza?
           Gosto de ver minhas rugas, meus cabelos brancos e  ralos, e  me apraz  caminhar com o auxílio da bengala, ao mesmo tempo que observo as mudanças ocorridas nele: o andar cambaleante, a voz baixa, as costas curvadas, a  calvície  acentuada, que  me traz saudade boa da cabeleira prateada que o acompanhou até aos setenta!    Continua, no entanto,  um homem atraente, conservando o  sorriso solar.  
                Falando francamente, nem tenho a percepção  de  que vivemos tanto  tempo .   Confesso que o viver é um ato  curto.  Tudo passa como num  piscar de olhos .  Sem esmorecer, continuo elaborando sonhos, como se a vida não tivesse  fim. Através  deles, celebro  a ventura  de ter sido   feliz, apesar da certeza inabalável  acerca da brevidade  e das  inconstâncias desta vida.