Os gatos

Malaquias Andrade das Neves, vulgo Torresmo, sujeito bizarro. Morava numa bela casa na rua dos cataventos e se imaginava esperto quando saía com uma nova mutretagem ou alguma atividade de ética questionável. Conheci-o num boteco. Eu tomava minha cachaça no balcão e, naquele dia, o Torresmo repentinamente sentou-se ao meu lado.

- Você gosta de bichos empalhados? – Perguntou.

- Não. – Respondi hesitante, sem olhar para ele, embora tentasse imaginar onde queria chegar. Mas na dúvida sempre acho melhor não dar corda.

- Bichos empalhados significam a melhor maneira de ganhar dinheiro.

- Deve ser.

- Eu empalho bichos sabe e, ultimamente, passei a me especializar em gatos.

E o danado do Torresmo foi se chegando com essa conversa e me deixando curioso, principalmente porque sempre detestei esses bichanos.

- Nunca vi um gato empalhado.

- Pois é, rapaz, gatos empalhados são muito melhores do que gatos vivos. Não miam, não comem, não mijam, não cagam, não transmitem doenças. Me orgulho muito de fazer esse trabalho!

- É, parece interessante.

- Você poderia me ajudar, não está a fim de ganhar uma grana?

- Talvez, realmente não gosto de gatos.

- Aí está uma razão para você pensar no assunto.

- Certo, o que eu faria?

- Você vai caçar os gatos para mim.

E então o Torresmo contou como funcionava o negócio. Empalhava até trinta gatos por semana. Atraía os bichos com comida e, logo que se aproximavam, matava-os a pauladas. Fazia-o com cuidado pois não podia estragar o pêlo. Logo depois levava mais ou menos uma hora para retirar o couro e empalhar. Toda semana tinha pedidos em lojas de caça e antiquários e o negócio crescia. Como lera um livro sobre qualidade total, percebeu que poderia maximizar seus ganhos e, por isso, passou a aproveitar a carne também, distribuindo-a para o Macarrão, que vendia espetinhos na esquina da Oscar Filho com a Trindade.

- Você não acha que é um negócio da china?

- É, realmente parece um bom negócio...

E foi assim que passei a caçar os gatos para o Torresmo. No começo foi fantástico, pois desenvolvi e testei vários métodos, muitos deles divertidíssimos. O dos dardos envenenados era um dos mais eficazes. Você lançava o dardo a uma distância de até 10 metros e, uma vez atingido, o bichano saía em disparada, mas corria só uns 20 metros até tombar, imóvel. Tinha o da eletrocução, mas esse era só divertido, porque parecia impossível não avariar os gatos. Quando não torravam, seus pêlos eriçados jamais voltavam à posição normal.

Depois de um mês os primeiros problemas começaram a surgir. Um deles foi a vertiginosa queda na população de gatos no bairro, que me forçou a caçar os bichos em outras freguesias. Em seis meses passei a ser perseguido por um grupo que se dedicava a defender os bichos. Primeiro eu soube que essa gente queria me processar. Mais tarde eles pareciam querer o meu couro quase mais do que eu queria o dos gatos. Mas eu cheirava de longe as armadilhas que armavam e nunca conseguiram me pegar.

O verdadeiro problema começou só três anos depois de ter me tornado um cat hunter. Recordo-me que estava quase alcançando a marca de 15 mil gatos quando saiu a manchete no jornal: “Ratos invadem a cidade!”. E eu já vinha percebendo que era mais fácil encontrar 20 ratos do que um único gato. Por isso até cheguei a propor ao Torresmo que empalhasse também os ratos, mas ele sempre se esquivava e, mais de uma vez, perguntou-me irritado:

- Você compraria um rato? Comeria um rato? Não! Então pare de me encher o saco.

Seria bom se o problema fosse apenas a escassez de gatos ou o fato da rataiada tomar conta. O problema mesmo é que muita gente começou a buscar as razões disso acontecer. “Crime socioambiental”, era assim que uns tratavam o caso. Gente importante visitava a cidade para investigar e, não sei porque, mas esses sempre defendiam a tese de que uma doença estava causando a extinção dos gatos. Vinham, diziam isso e iam embora no dia seguinte. O caso estaria encerrado se não fosse uma meia dúzia de xeretas que ficaram obcecados por identificar a maldita doença.

A essa altura, no entanto, eu já havia paralisado as atividades, sob mil protestos do Torresmo.

- Não dá, Torresmo! A coisa tá ficando estranha!

- Deixe de covardia! É só não dar bandeira!

- Não tem jeito! Comecei isso porque achei que não era crime!

- E não é! Acha que alguma coisa vai acontecer se nos descobrirem? No máximo vamos pagar uma multa...

- Sei não, tô parando e não volto mais! Procure outro cat hunter!

- Covarde!

Essa foi a nossa última conversa. Dias depois a polícia invadiu a minha casa e, para meu azar, eu não tinha me livrado de todo o aparato de caça. Crime socioambiental era a mais simples de todas as acusações. Respondi por estelionato, formação de quadrilha e mais meia dúzia de coisas. O Torresmo sumiu do mapa completamente, deixando para trás muitos indícios que me incriminavam. Respondi sozinho, por tudo, e fiquei três anos trancafiado em uma cela úmida, cheia de ratos.

Mas tudo teve um motivo. Aprendi a lição. Hoje faço um trabalho digno e sou muito procurado: extermino ratos. Desenvolvi técnicas inovadoras, mas o melhor resultado obtenho com meu exército de gatos caçadores. Eles são vorazes. Não os alimento nunca e os adestrei para que só comam ratos. Quando saem da gaiola, tornam-se monstros. Seus olhos brilham, mordazes, sentidos aguçados, espreitam qualquer mínimo movimento. Ganho a vida com esses bichanos maravilhosos, apesar de magros e feios. São os monstros dos ratos. A vida é perfeita. Aprendi.

Anderson Adami
Enviado por Anderson Adami em 17/07/2009
Reeditado em 24/07/2009
Código do texto: T1704812
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