ESTRELAS NOS CÉUS DE CABUL

A noite chega em silêncio e mistério na desolada Cabul. A cidade ainda está tomada de medos, e o que se percebe são movimentos soturnos protagonizados pelas sombras da noite. A cidade está entristecida. Já se vão quase cinco anos, desde que uma legião estrangeira comandada pelos Estados Unidos da América, invadiu o Afeganistão. No alvorecer de 2001, os radicais islâmicos foram derrubados do poder e a força alienígena costurou um governo de coalizão que pudesse se apresentar mais conciliador.

A população está inquieta. Até agora não se tem logrado o êxito almejado. Como sói acontecer em intervenções do gênero, governos impostos tendem a fracassar. A Sociologia e a Geopolítica têm enfatizado a autodeterminação dos povos. Nações não podem ser enjauladas em seu próprio território e conflitos étnicos, sociais, culturais e religiosos não se resolvem pela intervenção militar ou econômica do estrangeiro opressor.

Hamid Karzai está às raias do desespero. A expressão do seu rosto é de tensão. Há um esgotamento físico visível em sua face e uma inquietação em seu olhar. Como presidente, assiste alarmado o ressurgimento do Talibã e cobra uma ação mais enérgica de seus aliados internacionais. A guerra civil que se instala no país recrudesce e ele já começa a achar que a guerra não deve ficar limitada ao Afeganistão. Segundo o seu pensamento, para tentar reparar um erro estratégico americano, somente novas ações intervencionistas. Os EUA, na sua busca insana por eliminar o líder-mor da al-Qaeda invadiram o país e agora não sabem como digerir o abacaxi. Osama Bin-Laden continua livre; aterrorizando. Mas qualquer medida de caráter imperialista, infelizmente, só faria aumentar a sanha dos revoltosos.

Na noite de Cabul o céu é cinzento. Fumaças negras toldam o céu da cidade e nuvens de poeira elevam-se dos escombros das construções derribadas nos combates. Há sempre fogo e destruição nas noites de Cabul. As noites da cidade são tristes. As noites de Cabul são escuras e sombrias. Não há estrelas que brilhem nas noites de Cabul. A poluição de guerra não deixa ver. O toque de recolher esconde as pessoas, que podendo ver não enxergam. Falta brilho noturno em Cabul.

É em uma lúgubre e tristonha noite de Cabul que uma sombra aprende a transitar pelas ruas desertas da cidade. A sombra esgueira-se silente pelos cantos de rua e desaparece no breu. É Samyra, garota de seus dezessete anos, corpo moreno de mulher feita, olhar vivaz, que resiste ao aprisionamento que a combinação explosiva de religião e política tenta lhe impor.

Desde o fim do regime do mulá Omar, somente agora o país passou a viver uma realidade estranhamente crítica. O país vive agora o período mais violento de sua história: são mais de 600 mortes em atentados e combates contabilizados apenas nos meses de maio e junho. As estatísticas do ano, porém, elevam este número de perdas humanas para mais de mil vítimas. O presidente tenta reagir e almeja uma ação mais concreta contra o terror e o fanatismo talibã. Sente-se, todavia, enfraquecido e anseia uma cooperação internacional urgente para erradicar a insurgência.

Hamid sabe que o terrorismo em seu país é alimentado a partir do exterior por capital transnacional. As fontes ideológicas do talibã terrorista são cultivadas além fronteiras afegãs, e seu governo restringe-se basicamente às grandes cidades. O restante do país está sujeito às ações malévolas de lideranças locais e da guerrilha organizada. O país está um caos e o presidente começa a ficar assustado.

Enquanto o presidente se descabela com o que entende ser a recuperação da milícia Talibã, Samyra tenta se libertar do pesado fardo que o sistema impõe sobre a juventude. Através de um acesso ligeiro aos sítios da Internet americana, toma conhecimento do lado de lá da vida. E passa a gostar do jeito ocidental de ser e viver. Daria tudo para ter acesso àquele mundo que o jovem soldado americano, Peter Kerry, lhe mostrava em todas aquelas noites sem brilho de Cabul que ela conseguia fugir de casa.

Mas, como ela até então, centenas de milhares de jovens afegãos viviam à margem do progresso econômico da humanidade, caminhando desesperanças nas ruas de Candahar, Herat, na capital Cabul e em outras cidades. Karzai achava que a crise do país vinha de fora, porque o vizinho Paquistão orgulhava-se de preparar ideologicamente os meninos e meninas afegãos, nas chamadas escolas alcorânicas, onde são formados, todos os anos, milhares de alunos comprometidos com uma visão radical do islamismo. E este contingente estava disposto a matar ou morrer por seus fanáticos ideais.

Com Samyra era diferente. Ela queria viver! Se preciso matar para viver; mas, viver! E ela tinha medo de partir numa noite fria dos céus de Cabul, sem ao menos ter sorrido para o amor. Samyra alimentava um coração apaixonado pela vida. Ela, na sua inocência e fragilidade, propunha fazer contraponto ao contingente de alunos alcoranizados. O presidente intencionava combater os focos de extremismo ideológico e religioso. Samyra desejava combater a tirania do obscurantismo em relação ao corpo da mulher.

Peter conheceu Samyra quando em combate. Estava de guarda na Zona Leste de Cabul, onde uma fileira de casas baixas sumia no horizonte, criando um cenário árido e monocromático. O calor infernal atazanava a vida da soldadesca gringa, recém-chegada do Alabama. Teve sede. E quando bateu à porta de uma pequena casa de janelas beges na principal avenida do bairro, veio atender-lhe uma menina magrela, de lindos cabelos negros e lisos, olhos amendoados, quais pérolas escuras, e jeito de curiosa angústia. Pediu um copo de água e ganhou a confiança daquela gente. É claro que foi uma confiança meio que imposta, pois a cultura Afegã pedia o afastamento.

Desde que conheceu Peter, a vida de Samyra não foi mais a mesma. Ela, que sonhava os sonhos da adolescência, viu no soldado americano a sua chance de ganhar o mundo. Foi difícil vencer toda a sua formação conservadora afegã, mas, havia no espírito da menina uma inquietação extrema. Seus pais conversavam muito entre si, sobre o comportamento da pequena, pois destoava completamente do dos outros filhos e das demais crianças da região. Mas a menina guardava segredo de suas reais intenções, reservando para si estes sonhos que os anjos noturnos depositavam em seu coração.

Por seu turno, Peter simpatizou-se com a moleca divertida que sempre ficava dependurada no portão, quando ele estava de guarda na esquina da rua. E, à distância, os dois emitiam sinais de afeto e interesse, mostrando que a linguagem do amor não precisa de palavras. E os gestos, sorrisos e olhares construíram uma amizade entre eles. Esse foi um risco calculado que a menina assumiu, pois, se fosse pega, com certeza teria que prestar contas diante dos duros preceitos de sua cultura. Mas, ela aprendeu a driblar a vida, como se fôra uma ronaldinha cultural.

Passou-se um ano. Aos treze, Samyra começou a estudar inglês para tornar-se técnica do Centro de Expansão Afegã para o Mundo. Seu pai era líder do Movimento de Libertação Afegã. Havia interesse na formação de novos quadros e os filhos dos correligionários eram os primeiros a ter acesso às benesses do poder. O aprendizado do idioma deu a Samyra condições de trocar algumas palavras com Peter. A princípio, este foi um jogo de entretenimento que se estabeleceu entre eles. Mas, a partir do contato inicial, e diante do real interesse da menina e do potencial de aprendizado percebido, Peter propôs-lhe umas aulas particulares. É neste contexto que vamos divisar uma sombra esgueirando-se pelas ruas desertas nas noites sem estrela de Cabul.

Dos treze aos dezesseis anos Samyra fez um curso intensivo de cultura americana com Peter e pôs em prática o seu inglês macarrônico, de modo que já não mais se importava com as aulas de sua classe. Tivera toda a instrução necessária com Peter Kerry e tornara-se uma exímia aluna do curso, para orgulho da professora que sempre se reportava a ela para estimular as demais crianças no aprendizado do novo idioma. A adolescente conseguiu manter em segredo o seu relacionamento com o soldado durante todo este tempo. Não poderia ser diferente.

A presença americana no país é muito contestada, não só pelos cidadãos americanos, mas também pelos islâmicos da região que vêem nisso uma tentativa de desestabilização de sua fé. Os EUA mantêm cerca de 23 mil militares no país, mas já pensam em reduzir este contingente. De vez em quando há uma redução indesejável nestes quadros. Na província do Nuristão ocorrem os piores ataques e as baixas são constantes. Há uma tentativa de substituir as tropas americanas por forças da OTAN, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, mas, para os talibãs dá no mesmo: é o Ocidente invadindo sua área. Os vilarejos desprotegidos do interior são os que mais sofrem: para espalhar o terror e manter o domínio territorial e moral, as milícias talibãs invadem os vilarejos, matam civis, e inculcam o medo e o pavor. O grau de violência aumenta a cada dia.

Os recentes sucessos dos ataques terroristas estão indicando que sua força tem crescido, especialmente numericamente falando. O receio geral é que o armamento proveniente do Paquistão, e de outros países fronteiriços, venha a fomentar um derramamento de sangue incontrolável. O poder de estímulo à violência e ao vandalismo vem de fora, muitas vezes através da tevê al-Jazeera. Recentemente, o segundo na linha de comando da al-Qaeda, o egípcio Ayman al Zawahiri, instigou os muçulmanos do Afeganistão, através da tevê, a lutarem contra os invasores. Samyra estava no curso, lugar menos policiado, quando fortuitamente passou diante da televisão, e acabou ouvindo estas informações. Mas sua mente voava longe, abstraindo-se fantasiosamente nas suas viagens sonhadoras pela América.

O inglês de Samyra já estava bem desenvolvido. A sua comunicação era fácil e a prática da conversação com Peter lhe dera uma habilidade que espantava seus professores na escola e, especialmente, o líder do Centro de Expansão Afegã para o Mundo. Peter estava agora com seus 23 anos e Samyra aproximava-se dos dezoito. Ela não era mais aquela menininha magrinha que ele conhecera na rua poeirenta da Zona Leste de Cabul. Era uma moça formada, com corpo estonteante que mexia com sua libido.

A sombra que se movia nas noites de Cabul era, agora, mais volumosa. E esta sombra levava a graciosidade e leveza de um corpo de mulher apaixonada. A amizade de Samyra e Peter desenvolvera-se para um carinho e afeição especial. Tiveram tempo suficiente, nas noites sem brilho de Cabul, para cultivar o amor. Os encontros dos dois, ao longo desses anos, sempre tinham ocorrido num velho prédio destruído pela guerra, cujos escombros possibilitavam encontros amorosos fortuitos para os soldados americanos. Durante este tempo todo, os amigos de Peter que davam cobertura às suas retiradas estratégicas do local da guarda, acreditavam que ele estava extravasando sua libido com garotas chinesas especialmente importadas para a prostituição no país. E sempre ele tinha que dar relatos mirabolantes de como tinha sido bom, inventando histórias asiáticas de sexo e sedução.

Mas Peter gostara de fato da menina. A ingenuidade e transparência da menina afegã, não permitiu que ele avançasse o sinal. Além do mais, havia uma distância de cinco anos entre eles e ela era ainda menina. Peter, em princípio, havia tomado àquela amizade como uma chance de fazer algo pessoal pelo Afeganistão, que não estivesse na cartilha da guerra. Se ele pudesse dar uma contribuição política e social para o país, o faria, mesmo que na calada da noite. Samyra representava para ele a chance de uma liderança emergente que poderia mudar a mentalidade retrógrada do país. Mas, com o passar do tempo, seus olhos foram mudando a forma de ver a menina. Samyra crescia, ficava mais feminina, mais mulher. Os seios despontando firmes e duros debaixo da Burqa. E Peter deixando-se envolver por aquele clima de sedução que se estabelecia entre eles.

Como Samyra conseguia fugir de sua casa e esgueirar-se pela noite de Cabul era mistério de difícil interpretação. A cultura talibã era muito cruel com as mulheres. Alguns vetos para as mulheres estavam bem presentes na psique da menina. E esta lista de vetos, mostra apenas uma pequena parte da terrível vida das mulheres, não sendo capaz de expor profundamente a humilhação, sofrimento e privações que sofrem. O Talibã trata as mulheres pior que os animais. Eles declararam ilegal manter animais presos em gaiolas ou jaulas, enquanto mantém como prisioneiras suas mulheres, entre as quatro paredes das casas. Elas só são reconhecidas para produzir crianças, satisfazer as necessidades sexuais dos homens ou fazer o trabalho enfadonho da casa. As mulheres não têm nenhuma importância aos seus olhos.

Em uma das primeiras vezes que manteve contato com Samyra, Peter preocupou-se com a integridade física da menina, caso ela fosse descoberta burlando os preceitos talibãs:

- Você não tem medo de ser pega?

- Medo tenho; mas o que fazer? Não estou disposta a mofar neste mundo cruel. Quero a minha liberdade. Prefiro a morte à prisão de meus sonhos!

Algumas proibições estavam bem presentes na memória de Samyra quando ela decidiu-se por seguir o seu caminho, contrariamente a cultura do seu país.

- Você se recorda – indagou Peter – que é absolutamente proibido às mulheres qualquer tipo de trabalho fora de casa, incluindo professoras, médicas, enfermeiras, engenheiras; que é proibido às mulheres andar nas ruas sem a companhia de um mahram (pai, irmão ou marido); que é proibido falar com vendedores homens; que é proibido ser tratada por médicos homens; que é proibido para as mulheres o estudo em escolas, universidades ou qualquer outra instituição educacional?

- Claro que sim! E é exatamente por conta dessas proibições idiotas que estou rompendo com este sistema e buscando, mesmo com risco, alcançar minha liberdade pessoal. Não suporto mais viver sob a obrigação do uso do véu completo (Burqa) que cobre a mulher dos pés à cabeça. Ter que suportar a permissão do chicotear, bater ou agredir verbalmente as mulheres que não estiverem usando as roupas adequadas (Burqa) ou que estejam agindo em discordância com o que o Talibã quer, ou ainda que estejam sem seu "mahram". Me causa nojo saber que existe uma tal permissão para chicotear mulheres em público se não estiverem com seus calcanhares cobertos e jogar pedras publicamente em mulheres que tenham tido sexo fora do casamento como eu mesmo presenciei vários amantes sendo apedrejados até a morte.

- E o que você pretende fazer para superar este sistema desigual para com a mulher?

- Ainda não sei... Sei que é difícil romper com tudo isso, mas farei o impossível para romper e tentar voltar para meu país com uma nova proposta de relação entre os sexos. Chega de proibição do uso de qualquer tipo de maquiagem. As muitas mulheres que tiveram seus dedos cortados por pintar as unhas clamam por uma vingança. Chega dessa proibição imbecil de falar ou apertar as mãos de estranhos. Chega da proibição da mulher rir alto. Uma amiga minha, que se descuidou e deixou um estranho ouvir sua voz foi chicoteada. Chega da proibição de se usar saltos altos que possam produzir sons enquanto andam, já que é proibido a qualquer homem ouvir os passos de uma mulher.

- Você não acha que essa é uma tarefa muito pesada para uma menina? E mais, você acha que sozinha pode enfrentar este sistema iníquo?

- Não. Não pretendo agir sozinha, nem como menina. A menina de hoje vai dar lugar a uma mulher amadurecida amanhã. A menina solitária de hoje vai estudar e tornar-se uma agente de cultura e libertação para a mulher afegã. A menina de hoje vai influenciar a população e levantar a bandeira da igualdade de direitos em seu país.

- Além de tudo isso que você já mencionou, você está consciente de que a mulher não pode usar táxi sem a companhia de um "mahram"? Que é proibida a presença de mulheres em rádios, televisão ou qualquer outro meio de comunicação? Que é proibido às mulheres a prática de qualquer tipo de esporte ou mesmo entrar em clubes e locais esportivos? Que é proibido às mulheres andar de bicicleta ou motocicleta, mesmo com seus "mahrans"? Que é proibido o uso de roupas que sejam coloridas ou, utilizando as próprias palavras dos talibãs "que tenham cores sexualmente atrativas"? Que é proibida a participação de mulheres em festividades? Que as mulheres estão proibidas de lavar roupas nos rios ou locais públicos? Que todos os lugares com a palavra "mulher" devem ser mudados, por exemplo: "o jardim da mulher" deve passar a se chamar "jardim da primavera"? Que as mulheres são proibidas de aparecer nas varandas de suas casas? Que todas as janelas devem ser pintadas de modo às mulheres não serem vistas dentro de casa por quem estiver fora?

- Sim. Sei de tudo isso e muito mais. É por isso que já não suporto esta cultura. Vejo minha mãe, minhas tias, minhas avós e minhas irmãs sofrendo em casa e quero dar um basta a esta exploração de gênero em minha cultura.

- Mas uma mudança assim tão radical, com relação a aspectos culturais entranhados nas pessoas, levará anos para acontecer; se acontecer?

- Não importa. Alguém tem que começar. E porque ainda não houve quem tivesse coragem de iniciar, já se arrastam milênios de exploração da mulher no Afeganistão. Vou fazer a minha parte e espero estimular novas mulheres a continuarem essa luta.

Peter olhava para aquela menina sonhadora e ficava pensando na responsabilidade que tinha de não trair seus sonhos, não frustrar seus ideais. Ele já sabia, naquela curta presença em meio à cultura afegã, que os alfaiates eram proibidos de costurar roupas para mulheres; que as mulheres eram proibidas de usar os banheiros públicos, mesmo sabendo-se que a maioria não tinha banheiro em casa; que os ônibus públicos são divididos em dois tipos, para homens e mulheres e que os dois não podiam viajar em um mesmo ônibus; que era proibido o uso de calças compridas mesmo debaixo do véu; que as mulheres não podiam se deixar fotografar ou filmar; que fotos de mulheres não podiam ser impressas em jornais, livros ou revistas ou penduradas em casas e lojas; que o testemunho de uma mulher valia a metade que o testemunho masculino; que a mulher não podia recorrer à corte diretamente: isso tinha que ser feito por um membro masculino da sua família; que era proibido às mulheres cantar; que era proibido a homens e mulheres ouvir música; que era completamente proibido assistir filmes, televisão, ou vídeo. O jovem soldado americano repassava estas idiossincrasias afegãs em sua mente e suspirava atônito diante do grande desafio que a menina afegã chamava para si.

Naquele encontro fortuito de uma madrugada sem estrelas nos céus de Cabul, Peter olhou nos olhos da menina, tocou em seus ombros magros e respirando fundo lhe disse tão somente:

- God blessed you!

Os anos se passaram. A menina se fizera mulher. Peter se tornara seu protetor. Os céus de Cabul agora pertenciam a ambos. O brilho que faltava cobria ambos os sonhos. O futuro pertencia aos dois. A ausência dele também. Peter estava consciente de que suas vidas estavam interligadas.

Toda vez que se esgueirava porta afora de sua casa e ganhava a rua, nas madrugadas sem brilho de Cabul, algumas destas proibições vinham à mente de Samyra e ela sentia calafrios intensos percorrer-lhe o corpo. Estava, porém, decidida, e preferia a morte a ter que viver uma vida menor do que os seus sonhos a levavam. Sua opção, todavia, era pela vida. Queria viver e viver bem. Por isso procurou dar passos curtos, porém, planejados, pois faria de tudo para alcançar seu ideal. Foi com tal tenacidade e persistência que a menina viu passar os anos e sentiu seu sonho se aproximando de realizar. A cada dia que sentia medo e que acontecimentos estranhos a tentavam demover de continuar sua luta, lembrava-se dos versos fortes de “Um olhar dentro do meu mundo”, poema de Zieba Shorish-Shamley que sempre trazia como motivação em sua mente e coração:

“Eles me fizeram prisioneira em grilhões e correntes.

Você sabe qual é minha culpa? Você sabe qual é o meu pecado?

Esses selvagens ignorantes, que não podem ver a luz

Continuam a me bater e oprimir, para mostrar que podem fazer isso.

Eles me fazem invisível, em mortalhas e não-existente.

Uma sombra, uma não-existência, silenciada e não vista.

Sem direito à liberdade. Confinada na minha prisão.

Diga-me, como suportar minha raiva e furor?”

Samyra caminhava esperanças pelas noites de Cabul. Seu objetivo era começar uma revolução silenciosa para trazer uma melhor qualidade de vida para as mulheres de seu país. Quando estava prestes a completar seus dezoito anos, num dos últimos encontros que teve com Peter nos monturos onde se encontravam as escondidas, algo aconteceu que iria mudar a vida dos dois.

Peter tornara-se um grande amigo de Samyra. Mais que amigo, ele funcionava para ela como uma espécie de confidente. Todas as crises existenciais da menina que se fazia moça, Peter trabalhou com esmero, ajudando-a a resolver. Ele foi psicólogo daquele coração; analista daquela cabeça; conselheiro daquela mente; professor daqueles sonhos. Desde que a menina resolvera aventurar-se pela madrugada para terem pelo menos duas horas de aulas de inglês e de cultura americana a cada três dias, ele decidira-se por adotá-la. Faria dela seu troféu de guerra. Queria que o Ocidente soubesse que havia esperança de uma nova era para o Afeganistão a partir de uma flor que vicejava nos escombros de Cabul.

O fato de as aventuras noturnas de Samyra nunca terem sido descobertas, deve-se à estratégia de Peter. Ele montara um esquema especial de vigilância comunitária para a região que estava debaixo de seu comando. Os moradores faziam um rodízio entre si, participando em intervalos de três dias. Era exatamente nos dias de plantão de seus pais, que Samyra escafedia-se de casa, sob as bênçãos de Peter que acompanhava seus passos incertos na madrugada, até ela achar-se sob a proteção dos porões do velho prédio destruído.

Há algum tempo os olhares de Peter para Samyra não eram mais os mesmos. Ele olhava para ela e já não via mais uma menina, enxergava uma mulher. A menina sentia-se segura perto dele. Ele era seu benfeitor, seu tutor. A mentoria que Peter exercia na vida de Samyra levava-a a tornar-se uma garota madura para a sua idade. Mas Samyra tinha um coração feminino ocidental que batia num corpo de menina oriental. A burqa não podia conter a pulsação que emanava em seus seios arfantes. E o olhar de Samyra para Peter também já não era mais o mesmo.

Afinal de contas foram cinco anos de convivência íntima nas madrugadas de Cabul. Quando o relacionamento dos dois iniciara, Peter era apenas um rapaz imberbe, das terras do Alabama. Um garoto loiro, de dezoito anos, que acabara de inscrever-se no programa de voluntários das Forças Armadas dos Estados Unidos, e que fora para a guerra para ganhar alguns trocados que pudessem ajudar no sustento de sua mãe e de três irmãos menores. Ela, por seu turno, não passava de uma garotinha magrela que brincava nas terras sujas dos subúrbios de Cabul, trazendo no olhar as marcas da desilusão.

Agora, passados os anos, Peter e Samyra formavam um par indissolúvel nas madrugadas de Cabul. Depois desses anos todos de convivência, finalmente algo vai acontecer por entre os monturos do velho prédio destruído: os olhos deles se encontraram de uma forma vibrante que até então não ocorrera. É claro que nos últimos meses Samyra sentia que algo estava ocorrendo dentro dela, uma revolução interior que a fazia desejar estar perto de Peter. Por outro lado, já havia muito tempo que emoções diferenciadas povoavam o pensamento de Peter, mas ele sentia-se retraído pela seriedade de seus sentimentos com relação ao futuro da jovem e os ideais nacionalistas e culturais que ela abrigava no coração. De modo que não queria trair os sentimentos da jovem.

Naquela madrugada foi diferente. Quando seus olhos se encontraram emitindo faíscas de amor, a mente racionalizou que os sonhos não precisariam ser abandonados; seriam, tão somente, partilhados. Ao sonho se agregaria a realidade do amor. Aos ideais, a parceria na luta. Aos projetos, a inteligência no planejamento e realização. E foi nos escombros do velho prédio, depois que os dois resolveram deixar o porão e subir até as lajes retorcidas do prédio destruído, que o amor floresceu no coração de ambos.

Os céus eram os céus de Cabul. Tristes céus cinzentos, enevoados de fuligem e desesperança. Céus que impediam estrelas; que barravam sonhos. Mas, naquela madrugada, quando os olhos de Peter e Samyra se encontraram e faiscaram amor, e seus corpos se enlaçaram ardentes, e um beijo secreto foi trocado sob a proteção da cortina de breu da madrugada perdida, tudo mudou. Estrelas brilharam nos céus de Cabul. Duas estrelas. Apenas duas. E eram os olhos amantes de Samyra. Os olhos negros de Samyra reluziram ao toque sensual do primeiro beijo. E ela viu estrelas. E ela viajou planetas. E ela experimentou vibrações. E foi tomada de uma energia vital. E a bateria dos sonhos foi recarregada. Ela estava a iniciar a conquista de seu mundo, sua libertação. E seu coração dizia que a porta de entrada para a esperança se chamava amor. E tudo se materializava num ser. E a linguagem desse idioma de amor se traduzia Peter.

Foi como se todas as estrelas que estiveram por tanto tempo escondidas nos céus angustiantes de Cabul, se apossassem do corpo de Samyra e dela se projetassem para o alto a partir de seus olhos enamorados. O toque do beijo do amado foi o destravar do interruptor da luz da paixão. E o fulgor do brilho dos olhos da jovem projetou sonhos e esperanças nos céus de Cabul e depois de tanto tempo houve brilho naquelas madrugadas. Os olhos de esperança de Samyra eram como faróis de carro iluminando a noite escura; como refletores de potência elevada nas torres de vigilância do presídio de segurança máxima; como canhões de muitos watts a iluminar o palco da vida na encenação do sofrimento humano. Um raio de esperança cortou os céus de Cabul e não havia sinal de chuva. Não havia trovões. Só luz. Só brilho. Só clarão. Os céus se iluminaram dos olhos sonhadores de Samyra. A vida se aclarou a partir do brilho apaixonado dos olhos da moça que passaram a refletir o brilho da esperança de uma geração de mulheres que clamava por libertação.

Depois do êxtase, voltou à angústia. Uma certa angústia inquietante, de quem está lutando contra um sistema forte, forjado na religião e mantido pelos séculos a fora, sob o medo da funda, da catapulta, ao fio da espada, à força dos cavalos, das lanças, dos homens fortes, dos fracos que se escondiam atrás de garruchas, espingardas e fuzis. Mulher, sexo frágil, desvalor. Propriedade do homem. Mulher, menos que gente, quase animal. Mulher, ser sem vontade. Matéria prima para satisfação do macho.

Tudo aquilo passou, como num flash-back, na mente virgem de Samyra. Enquanto saboreava o primeiro beijo do amado, as antigas experiências do medo vividas pelas mulheres afegãs, retornaram ao seu corpo, como que a avisá-la que estava ultrapassando os limites; como que a chamando de volta ao seu mundo afegão. Mas ela soube resistir. Não se dobraria ante as investidas castradoras da história, da tradição, do poder medieval do macho egoísta. Saberia manter o sonho e alimentá-lo de amor. Saberia prosseguir nas conquistas que já acenavam esperanças.

Peter estava prestes a completar seis anos em terras afegãs. Tinha direito a uma licença a prêmio para visitar os familiares no Alabama. Samyra fora aprovada com louvor na turma do Centro de Expansão Afegã para o Mundo. Diplomara-se como a primeira da turma e, nesta condição tinha direito a uma viagem de 15 dias à Inglaterra, onde, em Londres, se encontraria com um grupo islâmico no exterior que a prepararia para assumir a liderança da Força Jovem do partido que se formava com vistas a tomar o poder. Aquela coincidência estava sendo propícia para o jovem casal que se formava.

Saíram daquele encontro, em que as estrelas voltaram aos céus de Cabul, com uma determinação. E assim aconteceu. Seis meses depois estavam em Liverpool, Inglaterra. Na velha capela da Sunshine Street o capelão impetrou as bênçãos sobre o casal. Foi união entre terra e céus. Da guerra com a paz. Do ocidente com o oriente. Da modernidade com o atraso. Do sonho com a realidade. Peter pedira desligamento do Exército e, com o soldo, mudara-se para a Inglaterra. Samyra fugira da delegação afegã e reencontra-se com Peter em Liverpool onde pretendia casar, como ocorrera, e iniciar seu movimento de resistência contra a ditadura dos homens no Afeganistão. Tinha apoio total e irrestrito de seu esposo.

O trabalho estava envolvente. Samyra estudava intensamente para concluir seu curso de Sociologia. Sua causa ganhara a simpatia da ONU, que a protegia e dava condições para ela estruturar sua tão sonhada “ONG para a Libertação da Mulher Afegã”. Dava palestras em vários lugares, igrejas e universidades, e disseminava a cultura afegã por onde quer que fosse. No Afeganistão Samyra era conhecida como traidora. Sua fama já tinha chegado ao seu país. Sua história e sua fama tinham se alastrado. O governo procurava esconder seus feitos. Não tinha nenhum interesse em fomentar a formação de uma heroína. Mas era quase que impossível. Ela não era contra o país. Era contra a cultura machista de um país que escraviza as suas mulheres. Queria criar uma nova mentalidade a partir do exterior e um dia retornar à sua pátria amada. Faria todo o necessário para erguer um novo tempo afegão.

Um belo dia, em casa, assistindo a tevê, ela e Peter reviram o velho prédio destruído da Zona Leste de Cabul. Era a imagem de uma Rede estrangeira que fora autorizada a fazer uma série de reportagens sobre o país. Havia imagens do dia e da noite. Imagens do cotidiano e do subterrâneo afegão. E numa das imagens da madrugada, Peter e Samyra, concomitantemente, imaginaram ter visto um casal se beijando nos escombros. Era uma menina sonhadora e um soldado brasileiro da força de paz da ONU. Quem sabe na Copa de 2018 haja um time disputando a Taça sob a bandeira afegã, com treinador brasileiro? Quem sabe haja uma torcida organizada onde as adolescentes afegãs desfraldarão as cores de seu país, o estandarte da alegria, os contornos de seus sonhos? Peter e Samyra se entreolharam e deram um longo e demorado beijo de amor sob os céus iluminados do mundo da igualdade e da liberdade...

ALEX GUIMA
Enviado por ALEX GUIMA em 27/06/2006
Reeditado em 13/01/2024
Código do texto: T183166
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