o caso do aviador - assassino e herói de guerra - parte final

A Trombose foi em decorrência dos cinco anos na cama. Algumas vezes, durante suas rápidas e súbitas melhoras nós saíamos para caminhar, mas isso era muito pouco, como de fato se constatou.

Haviam colocado soro para ela junto com algum anestésico que eu não conhecia o nome, visto que Natália é quem cuida dos medicamentos. A mim cabe ver minha mãe definhar dia a dia, pouco a pouco. Hoje, com a bolsa interna até não tenho tantos problemas, mas no início, logo na primeira operação, foi muito difícil.

Ela defecava na própria cama e urinava do mesmo modo. A mim e outra enfermeira cabia trocar suas fraldas e as roupas de cama.

Passamos por sérias dificuldades, mas uma prima distante da minha mãe, nos fez um bom empréstimo. Na verdade uma doação, visto que ela sabia que jamais poderíamos pagar aquela quantia. Com o dinheiro eu pude contratar uma enfermeira para tomar conta da minha mãe e pude comprar um carro, que volta e meia se fazia necessário para levá-la até o hospital. Assim, me dediquei exclusivamente a ela e acabei largando o serviço para a cuidar.

Fiz as contas e vi que o dinheiro que usávamos daria apenas para agüentarmos durante tres anos. Tinha que arrumar alguma maneira de repor dinheiro dentro de casa. Os serviços costumeiros não adiantavam. As aulas de inglês e moral e civismo não dava nem para o aluguel.

Passava as noites em claro ao lado dela. Ouvindo sua respiração pesada e seus lamentos de dor. Foi nessa época que sem perceber comecei a escrever, sentado na cadeira e sem pretensão alguma. Quando ví tinha escrito muitos contos burlescos. A enfermeira leu alguns e me disse um dia:

--- Por que o senhor não tenta publicar o que escreve?-

--- Acha que devo? - perguntei.

--- Ora, a gente vê tanta gente escrevendo livro por aí! E olha que o que o senhor escreve é bem bacana!

--- Obrigado Lindalva - era este o nome dela, da primeira das onze enfermeiras que passaram lá por casa.- Estou envaidecido, mas primeiro eu tenho que Ter a opinião de alguém do ramo. Senão vou pagar mico.

No entanto aquelas palavras ecoavam na minha cabeça. Comecei a me interessar pelo assunto. Comecei a ler mais do que já lia e a caprichar mais na ortografia e gramática.

A primeira tentativa não deu em nada. Logo depois me inscrevi em um concurso de contos e consegui o segundo lugar. Um senhor da comissão julgadora era de uma editora e logo veio conversar comigo. Um ano depois de minha mãe Ter feito a primeira cirurgia eu assinei um contrato onde me comprometia a escrever um romance em menos de dois anos. Não foi "aquele" contrato, mas pelo menos serviu para me indicar e iniciar meu caminho na área literária.

Dois anos atrás eu acabei o romance e parece que consegui mais do que esperava. Com algum sucesso o editor fez a renovação do meu contrato por mais dez anos, período esse em que eu me comprometi a escrever quatro romances. Eu agora partia para o terceiro, mas a pesquisa era longa, como as dos demais o foram também.

Minha mãe gemeu e eu coloquei minha mão sobre a dela. Sua carne flácida sobre os ossos parecia tão fina e frágil quanto uma peça rara que podia quebrar-se com um toque mais forte e descuidado. As veias azuis pareciam saltar para fora em sua pele amarelada.

--- Filho...- falou num fio de voz -

--- Mãe! - tinha que controlar a emoção na voz - estou aqui agora! Fica tranqüila!

--- Filho... estou com frio... cobre meus pés - disse minha mãe passando a mão com o soro pelos cabelos finos e de branca cor. Pareciam cachos de arroz doce.

Eu coloquei um edredon sobre ela e sentei-me ao seu lado.

--- Como ... foi a pesquisa...- ela tossiu um pouco.

--- Estou apenas começando mãe! Isso demora ainda um bom tempo!

--- Leia para mim um pouco! - ela sempre pedia isso, como uma criança pequena. Não me lembro se eu pedia isso quando pequeno, mas lembro de ler para meus irmãos.

Peguei o livro que já havia iniciado na noite anterior. O Manto Sagrado de Lloyd Douglas, que fora grande sucesso no cinema na década de 50. O filme foi dirigido por Henry Koster e estrelado por Victor Mature, Richard Burton e Jean Simmons.

O filme foi muito bom, mas o livro realmente é excelente, e em alguns trechos que leio para minha mãe eu vejo que ela se emociona. Eu tenho fazer o papel de homem duro e forte, mas escondo minhas lágrimas.

É perto das duas da manhã quando eu consigo adormecer, para no instante seguinte acordar sobressaltado. Da cadeira olho para o tubo de soro e vejo que ele está realmente no fim. Eu o troco por outro, e descubro que minha mãe dorme tranquilamente. Seu rosto parece sereno e feliz. Eu já me acostumei a ver esse sorriso nela. Parece que se tivesse que partir nesse momento ela partiria feliz.

Tomando cuidado para não fazer barulho, desço as escadas até a cozinha para fazer um café.

Lembro que os meus irmãos podiam ajudar um pouco, mas todos eles são casados e eu como o único solteiro, aceitei esse encargo de bom grado. Durante o dia eu deixo a enfermeira com ela e posso fazer as coisas que preciso. Já me acostumei a dormir as sete da manhã quando a enfermeira chega.

Ouço os galos cantando lá fora e vejo que consegui escrever umas cinco páginas. Sempre escrevo a noite enquanto vigio minha mãe. São resquícios de minha infância, onde tento resgatar as memórias de nossa família. Mas isso ainda é coisa particular, não tenciono publicar tão cedo.

Nátalia começou ontem aqui em casa, mas veio com excelentes recomendações. O próprio médico que trata de minha mãe a recomendou. Após Natália chegar eu durmo até as duas da tarde. Acordo e vou até uma lanchonete no centro fazer um lanche. Começa o segundo dia de pesquisa.

Durante o lanche resolvo ir até a Secretária de Segurança Pública ver se consigo uma ordem para pesquisar o arquivo policial do estado.

Na entrada do prédio, uma menina namorando pelo telefone me deixa esperando meia hora até resolver me atender.

Lhe informo o que pretendo e ela diz que não posso fazer essa consulta. Insisto, peço a ela para me indicar alguém com quem falar e ela me indica para subir até o segundo andar.

Subo. Saio do elevador e entro em uma porta aberta. Uma morena de não mais que 23 anos e cabelos compridos, escuros, conversa com uma amiga loira e que com certeza andou comendo mais do que devia.

--- Sério.. ele é demais... tem que ver nós...

Se me viu fez que não viu, visto que continuou a tagarelar.

Por fim bati na mesa atrapalhando a interessante conversa sobre namoros de fim de semana.

--- Moça, por favor! - disse eu perdendo a paciência.

Ela virou então para mim e com a cara de desdém, como se eu estivesse atrapalhando me atendeu.

Expliquei o que queria e que não sabia com quem falar.

Ela prontamente deu um grito para dentro de uma sala e logo um rapaz negro, quase cem quilos, apareceu para falar comigo. Assim que se viu livre de mim a morena voltou a sua conversa interessante com a amiga.

O rapaz moreno, disse chamar-se Wilson e após lhe dizer o que buscava ele foi até outra sala, dizendo ir consultar o seu superior. Entrou por uma porta em uma sala e menos de cinco minutos depois voltou.

--- Infelizmente, o senhor terá de ir até a sede da Policia do Litoral. É com eles. Sabe onde fica?

Sim, eu sabia. Na pesquisa de um dos meus livros eu havia falado com o Diretor Mauricio Skudlak, um bom homem, simpático e aberto para conversas.

Desci as escadas. Consultei o relógio na portaria. A menina que namorava pelo telefone havia sido trocada por um militar fardado. Olhou-me com cara de intrigado. Eram perto das quatro da tarde. Caminhei rapidamente, dobrei uma esquina, virei a direita, e logo estava em frente ao prédio do Dr. Mauricio.

Eu já tinha cogitado de procurá-lo logo no dia anterior, mas me sentia receoso por ter de falar-lhe novamente. Poderia achar ruim eu ir com outra pesquisa. Bom, mas agora não tinha jeito. Era ele que iria me ajudar de novo.

No balcão de entrada do prédio da. D.P.L um careca com um brinco enorme na orelha direita e uma cicatriz na testa me informa que o Doutor Mauricio não se encontra.

Lhe digo do que se trata e ele me manda de volta ao Edifício da Secretaria de Segurança Pública. Segundo ele os arquivos policiais são de responsabilidade da Secretária e não da policia do litoral. Concordo com ele. Peço para me indicar com quem posso falar. Não quero chegar lá novamente e falar com um monte de gente que não sabe de nada, além de ficar igual bola de ping-pong.

Me indica para falar com o Dr. Valério do terceiro andar.

Desorienteado, um pouco cansado e já desanimando, volto correndo até o prédio da S.S.P de Santa Catarina.

O policial militar na portaria indaga com quem irei falar. Dou as coordenadas e ele me dá um crachá adesivo, de papel.

Na única porta do terceiro andar eu entro. Vejo agora pessoas sentadas atrás de mesas cheias de papeis.

Da entrada da sala eu indago para um jovem que levanta os olhos;

--- Dr. Valério?

--- Na outra sala! - diz ele apontando o dedo para uma sala ao lado, dentro do local onde estávamos.

Eu me encaminho para lá e alguém chama minha atenção:

---- Pois não! Que deseja? - fala uma mulher magra, aparentando uns 38anos, cabelos pretos, curtos e de blusa branca.

Eu freio minhas passadas e me viro.

--- Gostaria de falar com o Dr. Valério!

--- Ele está no telefone! - diz ela ao mesmo tempo que eu vejo pela porta aberta da sala a minha frente um homem que aparenta 40 e poucos anos falando ao telefone. - O senhor pode sentar.

Sentei-me. Coloquei a pasta ao lado das minhas pernas, no chão.

---- Sobre o que se trata? - quis saber ela.

Eu a observei por uns instantes. Me parecia uma pessoa daquelas que gostam de tudo nos seus lugares. As folhas de papéis estavam empilhadas cuidadosamente em um dos lados da mesa. As canetas, todas com tampas, estavam dentro de um estojo plástico. A mesa bem arrumada. Pintura sem excesso. Discreta e elegante.

--- Estou fazendo uma pesquisa... - comecei e lhe expliquei tudo.

--- Ora, que bacana! Espero que tenha sucesso! Sei que isso não é fácil! - disse ela.

--- Realmente, é difícil pra caramba! Mas...

--- Sei o que digo! Minha filha é bailarina! Já participou do festival de Dança de Joinville duas vezes... é uma luta.

--- Ô se é! - concordei.

Ela se calou por alguns minutos e eu ouvi, mesmo estando de costas, o delegado falando ao telefone.

--- O Senhor trabalha com o quê? - quis saber ela. Droga, eu não podia dizer que era um desempregado por culpa da doença de minha velha mãe.

--- Ah -- esperei um segundo para responder- Trabalho em uma vidraçaria! Sabe como é.. são poucos os escritores que se podem dar ao luxo de viver exclusivamente da literatura.

Espero que ela não tenha notado que era mentira sobre o meu trabalho.

--- Então aproveita o tempo vago para fazer pesquisas?! Minha filha é assim também! Trabalha o dia todo e a noite faz tres horas de balé. Chega em casa morta de cansaço. Isso sem falar nos finais de semana.

--- Quem quer vencer tem que fazer alguns sacrifícios! - disse eu.

--- Mas dá uma dó! A menina largou a faculdade para fazer dança. Graças a Deus que agora começa a ter algum reconhecimento.

--- sério? - perguntei interessado.

--- Ela foi convidada para fazer parte da escola do balé Bolshoi em Joinville coisa de dois meses atrás.

Eu notei que ela falou aquilo com orgulho. Orgulho de pai é sempre algo bonito de se ver. Pena que minha mãe não tinha muita coisa de se orgulhar de mim.

Logo o Dr. Valério me atendeu.

Um homem ainda novo. Cabelos bem escovados, rosto sem marcas, bem vestido. Me atendeu com um sorriso nos lábios.

--- Boa tarde! - o cumprimentei apertando sua mão esticada.

--- Prazer! - disse ele - A Michele me disse que o senhor está fazendo uma pesquisa.. falou abrindo o assunto.

Eu sabia que essas pessoas são por demais orgulhosas do cargo que ocupam e ao mesmo tempo sabem da impressão que causam a nós, civis, então fui direto ao assunto.

Ele ouviu atentamente. Lhe mostrei as anotações que tinha, inclusive o xerox da minha primeira pesquisa tempos atrás.

--- Interessante! Sim, senhor! Bem interessante! - disse ele. Parecia mesmo interessado no assunto. Havia me ouvido sem fazer nenhum aparte.

--- Digamos que é um caso sui-generis! - lhe disse retribuindo sua gentileza em me receber.

--- Infelizmente - começou ele premindo os lábios como se estivesse desalentado com o que iria me dizer - infelizmente acho que não irá conseguir nada nos nossos arquivos. Já faz muito tempo!

--- A partir de que data vocês tem os arquivos?

--- Veja bem, não temos uma data precisa. Os arquivos policiais são guardados durante um certo tempo enquanto podemos usá-los, depois ..

--- enquanto não são prescritos -- o cortei, empolgado.

--- exato! Mas depois que são prescritos, dez anos no máximo. Não temos motivos para guardá-los. O pessoal do forum sim. Por que os arquivos são usados até que a pessoa vá a julgamento em todas as instâncias, depois do ultimo veredicto. Todos os arquivos referente ao caso vão para o tribunal.

--- Quer dizer que o pessoal do fórum é que deve ter um arquivo mais completo?

--- Positivo! Eles é que tem a função de arquivar os casos e eventos que geram conflitos de interesse jurídico para o município.

Ainda conversamos mais algum tempo, mas em síntese o resultado foi que não consegui achar um arquivo para consultar. O Delegado Valério pediu que lhe enviasse uma cópia do livro. Eu prometi, caso pudesse completar minha pesquisa. O engraçado é que ninguém ajuda, mas todos querem ver o fruto de seu trabalho. Ninguém fala em comprar, falam em ver.

A sede da S.S.P. de SC fica uma duas quadras próxima da Biblioteca. Meu carro ficara estacionado no mercado público. É difícil pra caramba encontrar uma vaga no centro. Então eu sempre estacionava no vão do Mercado Público, pois ali havia a sombra de algumas árvores.

Para chegar até o mercado público seguindo o curso do prédio da .S.S.P. a gente acaba passando quase que obrigatoriamente, em frente a Biblioteca Municipal.

Resolvi entrar. Sabia que ela estava em obras e que somente a parte de baixo, onde ficavam os jornais e revistas recentes, estava aberta para atendimento ao público. Mas insisti. Era uma das últimas esperanças minhas.

Muitas pessoas estavam sentadas lendo jornal e revistas, me dirigi até um balcão onde se guardavam os objetos, sacolas e bolsas antes de se subir para os outros andares.

--- Por favor, a seção de microfilmagem está funcionando? - indaguei a uma senhora com alguns fios de cabelos brancos.

--- Terceiro andar! - disse ela para minha surpresa. Puxa, até que enfim uma noticia boa. - O senhor tem consulta marcada? - parecia pergunta de clinica médica. Resolvi mentir deliberadamente.

--- Sim! - disse já tirando meus cadernos e canetas de dentro da pasta.

--- Dona Mercedes está lá em cima? - a senhora perguntou a uma moça de cabelos pretos que lia um almanaque da mônica. Esta balançou a cabeça afirmativamente. Em seguida a dona de cabelos grisalhos pegou minha pasta e a colocou em um local numerado me dando uma espécie de chave com o número da estante onde ficaram guardadas minhas coisas.

Subi de elevador até o terceiro andar. É triste quando a gente que gosta tanto de livros os vê amontoados aos milhares em toda parte. Pelo chão, em cima das mesas, em cima das cadeiras, todos os tipos de livros. Novos, velhos, usados, não usados. Confesso que a cena assim que saí do elevador me chocou. Só quem escreve sabe o que teve que passar para poder editar o seu material e daí chega um dia que o vê relegado a um canto, como se fosse apenas mais um entre tantos. Não creio que um autor goste de ver seu livro jogado no chão, empilhado como se não tivesse valor algum. Eu pelo menos não gosto.

Avistei uma cabeça branca por detrás da pilha de livros em uma mesa. Caminhei por entre os volumes empilhados no chão.

Era uma senhora perto dos sessenta anos. Sorridente, ajeitou os óculos e olhou para mim.

--- Pois não?

--- Boa tarde! Eu estou fazendo uma pesquisa, será que podia usar os microfilmes de vocês?

--- Que pesquisa?

--- Algo acontecido por volta de trinta e oito. Vocês tem registros dessa época né? - disse olhando ao lado. Ainda estava meio aparvalhado pela visão estapafúrdica que se descortinava ante meus olhos.

---- Dessa época só temos o jornal "O Estado". Tem uma data mais específica?

--- Na verdade não! Eu calculo que deva ser entre 1937 e 1942. Foi um assassinato acontecido durante uma festa que arrecadava fundos para a criação do Preventório. A festa era... - acabei esquecendo o nome -

--- Festa?? - insistiu ela.

--- Festa das ... - abri a pasta, peguei o xerox e procurei a página - festa dos pessegueiros em flor. - ela firmou os olhos na página e eu passei a ela.

--- Ah... - disse ela lendo tudo que eu tinha circundado de caneta azul. - O senhor tem sorte, não tem ninguém na máquina. Uma moça tinha marcado mas não veio.

Dito isso ela foi até um armário e abaixou-se. Puxou uma gaveta e ví várias pequenas caixas amarelas. Correu o dedos por elas e conclui que era onde estavam os microfilmes. Tirou uma delas.

--- Vamos começar então! - disse ela sorrindo e me levando até a máquina.

--- Pensei que estava fechada! Por isso que não vim ainda ontem! Estive no arquivo publico do estado mas não achei nada!

--- É que lá só tem documentos oficiais! E essa festa não era uma festa oficial. Era mantida por algumas senhoras da alta sociedade, por isso que lá não ia encontrar nada.

Concordei com ela. A mulher que trabalha no arquivo público já tinha me dito aquilo tudo.

A Senhora de cabelos brancos, Dona Mercedes, era bem descontraída e parecia mesmo disposta a ajudar. Colocou o microfilme na máquina e saiu. Começava ali a minha volta ao passado.

Frases com letras perdidas e deformadas. Farmácia ainda com ph e muitas outras palavras que a primeira vista pareceriam estranhas. Aos poucos fui mergulhando em tudo aquilo.

Pude notar que mesmo naquela época, havia um grande destaque na imprensa para o futebol. Mas as maiores manchetes sempre vinham de fora. A maior parte do jornal retratava noticias européias, sempre com alguns dias de atraso, então colocavam a data em frente a manchete.

--- Olha eu...-

Pulei da cadeira! Puta que susto! Gelei!

--- Desculpe-me! - a velha senhora assustou-se com minha reação -

--- Não! Que é isso! É que..

--- estava mesmo concentrado né! Me desculpe é que eu andei dando uma olhada e descobri que o Preventório foi inaugurado em 1941. - tinha uma livro em suas mãos.

Eu o peguei. Realmente ali tinha uma foto de Nereu Ramos inaugurando o hospital de leprosos.

--- Mas não tem nada mais não! Só isso! - disse ela.

Agradeci sua gentileza e ela pediu se não queria o microfilme de 1941. Disse que ainda não. Queria começar por ali mesmo, pois a festa era para a fundação do hospital, portanto deveria Ter sido antes da inauguração do mesmo. Ela concordou e afastou-se. Olhei para a caixa do microfilme que estava analisando. Março de 1937 a Setembro do mesmo ano.

No jornal do dia dez de maio de trinta e sete encontrei o nome do comissário de policia daquele ano. Sr. Fúlvio Paulo da Silva. Achei melhor anotar pois poderia precisar daquilo no futuro. Mais a frente encontrei o nome de Claribalte Galvão citado no dia quinze do mesmo mês como secretário de segurança pública de Santa Catarina. Também observei que nessa época era grande a polêmica em torno da idéia da mudança do Hyno (era assim que se escrevia hino) Nacional.

Rodei o filme ainda mais um bom tempo. Prestando a máxima atenção. Meus olhos ardiam tal o esforço que fazia. O jornal do dia vinte e quatro de junho de 1937 trazia o nome do capitão de Corveta Epaminondas Gomes dos Santos como o comandante da base de aviação naval de Santa Catarina. Observei esse detalhe. Era uma base de aviação naval. Não era uma base aérea da aeronáutica.

Nisso, cansado, voltei-me para trás e vi que já eram dez para as seis. Tinha que correr. Estava na hora do rush.

Rebobinei o filme rapidamente e marquei uma nova consulta para o dia seguinte. Agradeci a boa vontade da senhora Mercedes e saí para a rua. Começava a chuviscar. Filha da mãe. Voltei correndo até o balcão. Estava esquecendo minha pasta e tudo o mais. Entreguei a chave numerada e de posse dos meus objetos, guardei lá dentro o caderno de anotações e saí para a garoa fina e úmida.

Demorei um bocado até chegar em casa. O trânsito já é horrível nos dias normais agora imagina só quando chove. Todo mundo anda a vinte por hora, e ainda tem uns engraçadinhos que começam a buzinar por qualquer coisa. Fora os momentos em que chove tão forte que somos obrigados a parar o carro por não termos visibilidade alguma do que ocorre lá fora.

Eram sete e vinte da noite quando cheguei em casa. Natália já estava a minha espera na sala. Trocamos cumprimentos e ela me passou as ocorrências como se fosse um boletim médico. Minha mãe a havia feito trocar as fraldas duas vezes durante o dia. A fizera evacuar a pouco, portanto a noite poderia ser mais tranquilo. Também lhe dera um pouco de sedativo para que pudesse dormir mais tranquila.

Eu subi para tomar um banho. Havia feito um banheiro no quarto de mamãe. Era mais fácil de tratá-la, limpá-la e ao mesmo tempo era mais fácil banhar-se ali pois em caso de emergência estava mais próximo dela.

Ela dormia feito um anjo. Ajeitei suas cobertas e desci para preparar algo para comer.

Durante a noite tive que trocar minha mãe. Ela fez cocô na cama e além de lhe dar banho ainda tive que trocar os forros da cama. Dá pena a situação da pobre velha. Não pesa mais que cinquenta quilos. Parece mesmo uma pena de tão leve. Seu corpo magro e ossudo não oferece a mínima resistência e a impressão que se tem quando a pegamos nos braços é que podemos machucá-la de tão frágil que é sua musculatura.

Sempre Pontual Anália chegou as sete da manhã e eu me coloquei embaixo das cobertas. O dia começara frio e úmido, nuvens negras se estendiam até onde a visão através das vidraças permitia ver. Era um bom clima para se dormir.

Acordei perto das treze horas. Assisti o noticiário e almocei um pedaço de bife com arroz e feijão. Natália pediu-me para deixar dinheiro para ela encomendar remédios. O tempo ainda estava feio. Caía uma chuva fina e fria, daquelas que a gripe vem junto.

Cheguei no centro antes das duas da tarde e Dona Mercedes me recebeu alegremente. Parecia até que ela se sentia bem em colaborar com minha pesquisa.

Como ela no dia anterior mostrara-me que o Preventório fora inaugurado em 1941 decidi pegar outro filme para pesquisar. Peguei o filme que continha dados referentes ao mês de Agosto de 1940 até o mês de Março de 1941.

Sentei-me em frente a máquina e comecei a voltar novamente ao passado. Sim, é um volta completa. Encontramos e vemos como eram feitas as antigas propagandas, as formas das letras e como estas eram feitas, os próprios produtos veiculados, damos risada hoje, mas na época devia ser coisa séria. Assumptos, ahi, seccamente, heroe, collocada, palavras que hoje parecem grifadas erroneamente mas que na época eram por demais usadas.

Depois de um bom tempo em frente a máquina, já com os olhos cansados, encontro uma citação da festa para ajuda do Preventório na data de cinco de outubro de 1940. A citação é um convite para a festa que irá ocorrer durante os dias 06, 07 e 08 de outubro de 1940. Á testa da organização da festa está Dona Beatriz Pederneiras Ramos esposa do Interventor Federal no Estado Dr. Nereu Ramos.

Contente, devoro as próximas páginas com redobrado interesse, prestando atenção nos mínimos detalhes, o que me deixa com as vistas cansada e olhos vermelhos. No entanto o tempo passa e não consigo achar mais nenhuma citação sobre a dita festa. Provavelmente não foi nessa que o crime ocorreu.

Logo encontro uma citação sobre Leônidas da Silva, o Diamante Negro. Um cronista esportivo local da época diz que está errado quando a imprensa designa este esplêndido jogador como o criador da "Bicicleta", jogada futebolística. Diz o cronista que quando pequeno assistiu a uma partida onde um desconhecido jogador efetuou a dita jogada em um lance na defesa de seu time, para impedir o gol adversário. A data dessa citação é do dia sete de novembro de 1940. Achei interessante e resolvi anotar no caderno.

Perdido na busca não vejo a hora passar. Tantos detalhes interessantes. As histórias maravilhosas que contam de heroísmo durante a guerra. Nunca saberei aonde acabava a verdade e aonde começava a arte de incentivo aos jovens brasileiros que eram convocados à época.

Descobri mais na frente que a força policial do estado em 1941 contava com 1044 homens sendo 41 oficiais, quatro do quadro maior, um auditor da justiça militar e 998 praças.

Meus olhos ardiam e eu olhei para o relógio às minhas costas. Eram 17:40. Nossa, as horas passaram voando. Fazia mais de tres horas que estava ali e sequer havia notado que passara uma hora. Mais um dia que a pesquisa não resultara em nada de produtivo. Mas ao menos agora eu tinha uma citação de data da tal festa. Ela ocorria durante o mês de outubro. Isso poderia ajudar para o dia seguinte. Poderia partir da idéia de pesquisar do mês de outubro em diante. E o caso deveria ter ocorrido anteriormente a 1940. Pelo menos eu presumia assim.

Mamãe estava acordada quando cheguei e urrava de dor. Antes mesmo de entrar em casa eu ouvia seus gritos. Subi apressado as escadas e vi Natália atendendo sua paciente com esmerada paciência. A estava trocando. E eu sabia o quanto isso doia para minha genitora. Os movimentos, por menores que fossem, sempre lhe causavam dores. Em mim aqueles gritos penetravam até a alma, e pareciam varavam meu corpo, me deixando atônito e também com uma vontade enorme de gritar, desistir de tudo, acabar logo de vez com aquele sofrimento. Várias vezes cheguei a pensar nisso, em acabar com o sofrimento daquela pobre alma.

Vendo que Anália tomava conta de tudo, desci até a cozinha e preparei um lanche.

Logo depois a enfermeira desceu.

--- Ufa! Ela está bem agitada hoje. Talvez o senhor tenha que levá-la novamente para o hospital amanhã. A pressão dela está instável. Sobe e desce sem controle. Lhe dei remédio e torço para que estabilize.

--- Obrigado Natália! Obrigado mesmo! - lhe disse apertando seus ombros.

--- Sou profissional seu Gildo! Não precisa me agradecer, basta me pagar!

Ela era fria, ou pelo menos gostava de dar a impressão que era.

Subi para o quarto e minha velha mãe estava dormindo. Peguei um livro para ler. Scot Turow, "Acima de qualquer Suspeita". Alguém havia me dito que era um bom livro. Fora feito também um filme estrelado por Harrison Ford baseado nessa obra, mas infelizmente eu não o assistira.

O começo do livro não nos chama a atenção. É uma leitura monótona cansativa, até o meio do livro, aí sim as coisas começam a acontecer. Mas se não prestamos atenção no início, temos de voltar até as primeiras páginas, para entender alguns acontecimentos. A partir do indiciamento do narrador eu me apego de vez na leitura.

Minha mãe em determinada hora acorda.

--- Filho... estou com sede.. - ela agora não tem mais o soro nas veias.

Eu me levanto, vou até onde está um garrafão de água mineral e encho um copo plástico.

Ela bebe vorazmente. Eu seguro sua cabeça inclinada enquanto ela sorve o líquido.

--- Como foi sua pesquisa hoje? - pergunta depois.

--- bem, já consegui alguma coisa. Encontrei uma citação sobre a tal festa. - minha mãe se interessa pelo que escrevo. Nunca leu um livro meu, mas diz que pelo trabalho que tenho deve ter algum valor. Ela não está de todo errada, bom, pelo menos para mim tem. O interesse dela ás vezes é que me mantém insistindo nos temas que pesquiso.

--- O que você está lendo? - pergunta ela vendo o livro sobre a mesinha ao lado da cama dela.

--- É "Acima de qualquer Suspeita". Um thriler policial. Meio cansativo no começo mas agora está ficando bom.

--- É americano?

--- O autor?

--- É! O autor. Aqui no Brasil não tem escritor nenhum interessado nesse tipo de livro. Engraçado né... é o que mais vende e o que mais se produz no mundo e aqui ninguém segue o genêro...

Ela sabia que estava falando coisas que eu havia comentado com ela.

--- Aquela enfermeira... aquela gorda... ela é nojenta... não gosto dela... - pronto, tinha demorado para reclamar da enfermeira. Era sempre assim. Um dia ou dois, daí começava a ladainha de sempre. - ela fuma... sinto o cheiro na roupa dela... isso me dá nojo... já falei pra ela... não gosto dela, do jeito dela..

--- que jeito mamãe?

--- Ela é toda mandona. E não fala comigo. Só sabe dizer... faça isso... faça aquilo...não gosto dela... muito gorda... se cuida da saúde dos outros porque não cuida da dela?

E assim nós passamos uma hora conversando até que o Morfeu a ataque novamente.

O analgésico é o último remédio que ela toma antes de pegar no sono.

Eu aproveito e desço para esquentar um leite. Consulto o relógio na parede da cozinha. 5:20 da manhã.

Tomo meu leite quente e como um pedaço de pão com catchup. Subo para o quarto e cochilo um instante. Acordo quando a claridade do dia começa a invadir o quarto e eu puxo as venezianas. Arrumo as cobertas sobre minha mãe e desço para esperar Natália.

A gorda enfermeira chega pontualmente ás sete da manhã.

Eu estou cansado. Com sono. Lhe dou as boas vindas e rumo para meu quarto. Meu quarto, ah... a quanto tempo não vê uma forma feminina em seu interior? Um ano? Mais...Dois anos e pouco, a última garota que se atreveu a sair comigo sequer teve coragem de me ligar depois.

Não as recrimino. Eu não consigo ficar com elas o tempo que necessitam e minha cabeça está voltada a qualquer movimento e ruído no quarto lá em cima. Acho que sequer cheguei a ficar excitado com as carícias da Sabrina, ou seria Karina? Sei lá, nem lembro o nome direito.

Não tenho me dedicado a função de macho procriador, quanto mais a de macho caçador de fêmeas. Também não sinto tanta falta assim. Quer dizer, as vezes sinto sim, muita.

Quando comecei a escrever aqui pensei em fazer disso uma espécie de diário sobre as minhas pesquisas, no entanto vários meses se passaram desde o parágrafo acima. Muitas coisas aconteceram e até mesmo fica difícil para mim colocar tudo em sequência cronológica.

A pesquisa foi interrompida quando depois de conseguir a data certa do ocorrido, em 10 de julho de 1938, tive de ir até o fórum fazer uma pesquisa mais apurada. Lá fui muito bem recebido pelo secretário geral do Fórum, senhor Alexandre Moraes, um homem de trinta e poucos anos, moreno e gentil. Me indicou com quem falar e como proceder a pesquisa no arquivo público do fórum. No entanto no departamento de pesquisa do fórum não tive a mesma recepção e a moça com quem falei, uma tal Maria não sei das quantas, depois de pegar os dados necessários para a pesquisa me disse que em trinta dias me ligaria. Nunca recebi uma ligação dela.

Minha mãe faleceu coisa de dois meses atrás e eu me sinto ainda meio que perdido. A casa parece mais vazia, como se alguma coisa estivesse faltando. Eu saio para caminhar sozinho e volto duas horas depois, cansado, suado e sozinho. E fico na casa, sozinho.

Meus amigos parecem terem seus próprios problemas e não acho justo desaguar sobre eles minhas lágrimas e minha solidão.

Cogito vender esta casa, quem sabe assim me livro um pouco das memórias da familia. Primeiro meu pai, depois minha mãe. Perdi meu pai ainda com doze anos quando ele tentou salvar um menino de uma casa em chamas. Minha mãe o chamava de "o herói bêbado". Eu pouco me lembro dele, mas das conversas que ela sempre tinha com parentes deduzo que bebia além da conta e que no dia fatídico resolveu mostrar que ainda tinha brios e caráter suficiente para largar o álcool e que se assim não o fez antes foi por que não achava um motivo justo para isso. Não sei e nem procurei saber quando ele começou a beber, mas sei que isso o afastou da carreira do corpo de bombeiros. Depois de quase vinte anos apagando incêndio e salvando vidas provavelmente não suportou ver um menino de dez anos ser cozido em sua frente sem fazer nada.