A rotina do navio.

Domingas abriu os olhos, cheios de remela. Sentia-se suja, em meio à aquela água preta que continuava a incomodá-la. Olhou para o lado, o irmão dormia como um anjo, igualzinho fazia na cama. Ela não conseguia, o balanço do mar e as tosses não a deixavam dormir, sem tirar o cheiro de coisa podre que não saía do seu nariz.

Viu que era dia, através de um reflexo de luz que vinha lá de cima. Um homem, chamado pelo mestre de grumete, ou aprendiz de marinheiro, trouxe-lhe uma comida pastosa de cor amarela. Era tão ruim que Domingas apenas entendeu se tratar de um mingau, mas não fazia idéia do sabor.

Ela tomou aos poucos, pois a barriga doía pela falta de comida. Por um mínimo momento, ainda veio no coração da pequena uma esperança de comer outra coisa ainda naquele dia, mas ela mesma tratou logo de tirar isso da mente.

Grato abriu os olhos também. Olhou para ela e certificou-se que ao seu lado havia uma cumbuca com mingau. Preferiu não tomar, alegou estar enjoado.

Na cabine, o negreiro José de Barros e o garoto Domingos, haviam acabado de acordar. Antônio Pedreira, o piloto da embarcação estava presente, recebendo ordens do capitão. Esse era o cargo hierarquicamente que vinha logo após o capitão-negreiro.

D. José prometeu descer um pouco mais tarde até o porão para ver como a carga havia passado a primeira noite. Lógico que o interesse maior era em cima de suas mercadorias.

Lá no porão, os marinheiros estavam todos a postos para limpar o chão, ou ao menos, fingir enxugar o chão. D. José pedia que a tripulação mantivesse o mínimo de higiene no barco, pois com mais higiene a perda de peças era mais difícil.

E o marinheiro que não cumprisse bem às ordens do chefe, era submetido a castigo e algumas vezes até jogados no mar. Mas no navio do Dom José Veiga de Barros as coisas não eram assim tão brutais e ele só havia jogado dois marinheiros no mar, nas suas cinco viagens.

A noite logo chegou e outra cumbuca com mingau também se fez presente ao lado de cada um. O cheiro dessa cumbuca era mais estranho, pensou Domingas. Mas mesmo assim comeu. Grato também, e poucas palavras foram trocadas entre os dois.

A primeira semana passou como basicamente como o primeiro dia, com uma exceção: cada dia começou a parecer mais longo do que o outro para todos a bordo. O cheiro de excrementos humanos e de ratos misturado com odor do suor naquele ambiente fechado ia ficando cada vez mais intenso e, ao mesmo tempo, mais tolerável.

O mar aos poucos começava a se agitar também, parecia começar a ficar impaciente com aquela coisa imensa de madeira deslizando sobre ele. Seu balanço iniciava um ritmo mais rápido e brusco.

Nuvens pretas e ventanias mais frias também começaram a ficar mais constantes. Dentre os homens da tripulação, instaurava-se um ar de estresse e preocupação cada dia maior.

José de Barros ficara grande parte do seu tempo apenas observando o mar e pensando. Descera no porão apenas uma vez durante aquela semana. Guardava as suas forças para mais adiante na viagem, que era também quando tinha mais problemas entre as peças.

Domingos de Barros, o garoto praticante, ficara apenas zanzando de um lado para o outro. Procurando algo para fazer, mas nem o seu senhor lhe dirigia e isso fazia o menino ficar cada dia mais entediado. Não podia descer até o porão, José não permitia por medo de contaminação.

A nona noite chegou pesada. Domingas e Grato se falaram ainda menos, pareciam dois desconhecidos. Aliás, tirando a tosse, toda a embarcação era silenciosa, poucas vozes sussurradas eram ouvidas.

Dormia enrolada no próprio corpo, na posição fetal. Grato continuava sentado, encostado em uma espécie de pilastra de madeira, havia apenas fechado os olhos e adormecido.

Um barulho de explosão foi ouvido e isto fez muitos levantarem-se no susto. Talvez nem precisasse ser um barulho tão forte para assustá-los, qualquer som inesperado faria o coração daquelas pessoas disparar. O barulho era um trovão anunciando a chegada ou o encontro de uma tempestade.

Esta chegou forte e intensa, fez o oceano agitar-se em uma agonia que angustiava todos os passageiros da embarcação. Estavam eles cada vez mais próximos, permitindo o calor humano aquecê-los.

Mas o frio era congelante, não havia meio de fazer aquela sensação passar. As tosses passaram a ser mais altas e intensas, Domingas rolava de um lado para o outro em um curto espaço buscando uma posição quente e confortável. Grato mantinha-se praticamente imóvel e, por muitas vezes, imune e distante de toda aquela situação.

Ouvia-se o barulho das imensas ondas se chocando com o casco da embarcação e o balanço fazia algumas crianças chorarem um choro que beirava ao desespero. Alguns se embolavam no ritmo do movimento do navio e caiam por cima dos outros. Em meio à escuridão do navio negreiro, homens, mulheres e crianças – todas negras e africanas – se misturavam como uma massa só, todos à espera de qualquer acontecimento, a qualquer hora, mas sem a mínima idéia do que poderia acontecer.

Estavam eles sendo levados, ou sentenciados, à sua própria morte, fosse esta carnal ou espiritual. Estavam todos recrutados por povos de uma nação, que os levava para outra, como uma condenação selvagem e totalmente humana.

Malluco Beleza
Enviado por Malluco Beleza em 05/10/2009
Código do texto: T1849313
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