DE NOITE

O que fazer dentro de um quarto de uma pensão miserável quando a

noite vem? Ler, extasiado, um conto de Cortázar? Masturbar-se? Re-

ler o jornal e dessa vez não se espantar com o sangue, a corrupção,

a mentira? tentar ser vencido pelo sono?

Sentado na cama, ele acendeu um cigarro, deu uma tragada e ficou

pensando na vida. Pensar na vida era um exercício doloroso e inútil

porque, além de se lembrar de tanta coisa ruim, ele sabia que não po-

dia mudar o destino das coisas.

Ou será que podia?

Jogou o cigarro no cinzeiro, abriu a porta e desceu as escadas da

pensão.

Na rua captando a solidão daquela noite no grande centro urbano.

Meninos tendo a rua como lar.

O furto era sobrevivência.

A calçada era leito.

A marquise era cobertor.

Cola.

Maconha.

Andando por uma rua estreita. Uma mulher o parou.

- Tem cigarro?

- Tenho.

Levou a mão ao bolso, tirou um cigarro e entregou à mulher.

- Vamos subir?

- Não. Hoje eu estou liso.

- Hoje eu ainda não descolei.

- Sinto muito- disse isso e continuou a andar.

Fugindo.

Para onde?

Entrou num bar, sentou-se e pediu uma cerveja. O bar estava qua-

se vazio, fato que o deixou satisfeito. Agora o mesmo exercício do-

loroso e inútil. Toda palavra tinha o vício da incerteza. Todo rosto

se desgastava paera sorrir ridiculamente no final de semana. As i-

magens da vida. As manchetes dos jornais. A inegável certeza que

a cerveja é uma das maiores invenções do homem.

Pagou a cerveja, levantou-se e saiu outra vez à rua pensando na

insignificância da sua vida e nas coisas que deixou de fazer. O tem-

po passando e cada vez que olhava no espelho e via os fios de ca-

belo branco na cabeça, assustava-se. Passou pela mesma mulher

de alguns minutos atrás e dessa vez ela o olhou com desprezo. Um

leve sorriso saiu dos seus lábios. Apressou os passos em direção

à pensão. Subiu as escadas, abriu a porta do quarto, entrou e tornou

a fechá-la.

Um pensamento angustiado veio à sua mente.

"Meu Deus, é assim que se perde a esperança. Depois de tanta

luta, a vida continua a mesma porcaria de sempre".

Numa pequena cômoda havia um livro de Cortázar. Pegou-o. Sen-

tou-se na cama e começou a ler. Quando terminou de ler a primeira

página, fechou o livro, colocou-o novamente na cõmoda e se deitou

pensando na namorada. Foi vencido pelo sono.

Não se masturbou.

Não releu o jornal.

Apenas sonhou com o Cântico de Maria.

"Depôs dos tronos os poderosos, e elevou os humildes.

Encheu de bem os famintos, e despiu vazio os ricos".

Oito e meia da manhã. Os rumores do sonho passaram e o dia

era a realidade esquecida no sonho.

Acordou.

JOAQUIM RICARDO
Enviado por JOAQUIM RICARDO em 11/10/2009
Código do texto: T1860305
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