O PREÇO DE UMA VIDA

O PREÇO DE UMA VIDA

FlavioMPinto

Até o ar é mais fresquinho lá na Vila Nova. Diferente do ar abafado e poluído do centro da cidade ou dentro da cabine do ônibus.

Anselmo, levantara cedo. Tomara seu mate, olhara o jornal, um café farto, despedira-se da família e se tocara para a sede da empresa para sua rotina diária. Só voltaria para casa depois da 8 da noite. Isso se não tivesse nenhum contratempo. Seja com a máquina seja com os passageiros. Incontáveis vezes já se defrontara com assaltantes, baderneiros e até torcidas organizadas de futebol com sua reconhecida ferocidade travestidos de futebolistas.

Era um motorista reconhecido pelos demais companheiros e diversas vezes premiado como o “ Motorista do mês”. Até umas férias na praia já ganhara por tal merecimento.

Naquele domingo não seria diferente. Transito morno, parecia sem vida, raros carros na rua, movimento escasso na linha. Fizera já duas viagens e não enchera metade dos lugares somados todos os passageiros que embarcara.

No início da Rua dos Andradas, D.Laura se aprontava para passear com o Miguelito, um poodle branco de seis anos, xodó da família. Sempre saia dando pinotes, nervoso, latindo para tudo e D.Laura, sempre nervosa por causa do amigo cuzco, mais preocupada por ele tentar avançar saltitando em todas as pessoas. Só para brincar, não mordia, mas assustava. Aqueles dentinhos finos poderiam causar um estrago.

- Cão que late não morde, não é , Miguelito.

Ela conversava com a cachorrinho como com seus filhos. Até o colocava na mesa para comer. O pratinho ficava ao lado do seu. Só não gostava de limpar o produto despejado por seu amigo cuzco.

- Miguelito, por quê não fazes no jornal?

O cachorrinho olhava para ela como se entendesse, mas não cumpria a ordem.

E foram passear no Gasômetro.

Enquanto aperta o sinal para pedestres e aguardava o semáforo abrir, Miguelito não parava. Indócil, latia.

- Pára quieto! Estás latindo prá quem?

A parada de ônibus estava vazia assim como a cidade naquele dia. Tudo morto.

Genoveva e seus cinco filhos pequenos seguiam para um show no Anfiteatro do Pôr-do-Sol. Seus artistas favoritos iam se apresentar e levava as crianças para conhecer seus ídolos de perto. Faziam uma festa no ônibus quase vazio. Corriam de um lado a outro felizes. Todos soltos e alegres como nunca estiveram. Donos do ônibus. Um em cada banco. O trauma vivido na semana anterior, em que ficaram presos em cárcere privado por um apenado que fugira da penitenciária, teria de ser vencido. As crianças estavam abaladas emocionalmente pelo acontecimento, ainda mais que o pai delas havia sido morto no episódio. Foram poupadas pelo marginal, enquanto os órgãos policiais festejavam “apenas” uma morte, após a resistência de 63 horas do bandido, que saiu protegido pela polícia, um batalhão de advogados, jornalistas e pessoas ligadas aos direitos humanos. A família desassistida enlutava-se com a brutal perda de seu ente querido.

O ônibus de Anselmo desenvolvia uma boa velocidade, compatível com reduzido volume de tráfego e confiante na sua grande experiência como motorista, a longos anos, sentia-se seguro de transportar aquela família feliz.

De repente, e justamente defronte ao semáforo da parada da antiga usina, Miguelito escapa das mãos frágeis de Laura, que surpreendida não tendo forças para segurá-lo adequadamente, dispara a atravessar a faixa de segurança e na frente do ônibus de Anselmo.

Como uma criança atrás de uma bola, em ato reflexo, Laura corre atrás do cachorro.

Anselmo, para evitar de atropelar a idosa e seu cão, atira o veículo para a direita na direção do meio-fio. Com a manobra brusca, o veículo pesado bate no meio-fio, sobe o calçamento, derruba árvore, tomba sem antes levar de roldão toda ferragem da parada, parando quase embaixo dos trilhos do Coester.

Genoveva e as crianças, como por milagre, escapam, mas com graves ferimentos. Anselmo fica preso no meio das ferragens. Não sairia com vida.