Amizade Não Faz Doutorado

Eudrico Tristão de Albuquerque, o “Doutor”, lia na sala alcatroada do casarão no qual vivia, trechos do manuscrito a ser enviado a Manuela, seu ex-grande amor que viveu por anos em sua companhia sob contrato verbal, nesse mesmo lugar, com os mesmos móveis e objetos de decoração.

Lia-a para Basílio, proprietário da livraria mais charmosa do Largo onde residiam, e leal escudeiro nos momentos – e foram muitos – de crise aguda do Doutor.

Robusto o laço a sustentar a amizade até os presentes dias, inabalável entre os dois, conheceram-se há duas décadas quando em times contrários defendiam-se nos campinhos de terra batida dum outro bairro da grande cidade.

Enfastiado por assistir a vida lhe roubar os dias à espera de uma mulher que partira com destino certo, sob deliberação duvidosa, o doutor emergira dos lençóis na presente manhã, certo de sua autocomiseração.

Contava quarenta e poucos anos, porém escondia a exatidão; um capricho sempre a lhe acompanhar. Era esguio, de serenidade dosada e bem parecido. Tinha como espelhos, os fartos olhos de jabuticabas e a pungente liquidez da pessoalidade.

Homem conciso, de assaz inteligência e admirável cultura pelas viagens feitas nos tempos de doutorado. Recebia em sua casa poucos e seletos, apenas amigos do peito e “amigos” eram só os que não se restringiam a ele nem à sua intrínseca autenticidade, os sinceros de índole e francos de espírito.

O título de doutor dera-se pelo diploma em direito, alcançado brilhantemente em um país da Europa e o apelido, pela admiração das pessoas às suas salientes virtudes como ser humano.

Renomado no ofício, atendia os clientes – em situação anterior á crise – num escritório que tinha em sociedade com um amigo, o Dr. Pires. Fazia-o mais para justificar o título e em termos duma realização profissional que um meio a sobreviver.

Remoto no tempo, perdera tragicamente os pais em acidente automobilístico e ganhara desmarcada herança, proporcionando-lhe estabilidade econômica vitalícia.

Frente à discreta eloqüência – antítese à parte – Eudrico não ceava unanimidade no bem-querer dos circunvizinhos; alguns o entendiam estranho demais, porém os freqüentadores de seu lar – faziam as visitações duas ou três vezes por semana; a assiduidade dependia das próprias disponibilidades – amavam-no.

O Doutor acolhia a todos com generoso sorriso nos lábios, sempre disposto a ajudar; batia papo ao ar, em prol de boas gargalhadas. Seu diferenciado tratamento para com os amigos, cobria-o de reverências e punha-se de convite para uma próxima vez. Assim, era mais requisitado que a beldade do Largo.

Recebera no decorrer das duas últimas semanas, mais visitas que o habitual; o seu estado de iminente pungência deixara-o introspectivo, sobretudo eufórico. Passara muitos e péssimos momentos; nem trabalhar fora, nem pingado como de praxe.

Não havia malícia em seu jeito límpido de verter o amor; a entrega sempre fora incomensurável e assim, consumia-o muitíssimo.

Os sorrisos freqüentes de outrora morreram mansinhos, sem deixar filhos, durante os meses de desvelo à imagem, de respeito ao afeto; a amabilidade do homem e o saliente pulso secaram-no por dentro. Os amigos intervinham, respeitando-o; nunca foram com ele, abruptos ou cruéis e sim, presentes e solidários.

Decidira não mais viver secionado e restritivo, mergulhado em intransigências meticulosas e abusivas; a dor seria irreversivelmente imolada do peito; precisava encontrar-se novamente para a vida, tornar a respirar o ar essencial, abrir brecha a um novo despertar.

Após ler para Basílio a missiva deixada por Manuela, Eudrico fitou-o por um alento.

- Mais valor tê-la-ia no lixo, bem no fundo! – assertou o livreiro com voz de pigarro, de quem fica muito a ouvir.

- No que peco, meu amigo? Não são sinceras as minhas palavras?

- Pelo que me entra, são! E é por isso que não lhe deve enviar isto... Sinceridade foi uma das coisas que Manuela não prezou. A outra coisa, bem, a outra...

Eudrico recostou-se melhor à poltrona, descruzou as pernas e aferiu com um olhar crítico os trechos que lera para o amigo, não se atendo à ordem nem ao merecimento dos mesmos. Firmou ainda mais os olhos, perturbando os lábios em mudez e considerou:

- O que me tomaria quando os olhos de Manuela encontrassem com estas palavras? Quão mais desolado, eu ficaria?

Veio Basílio:

- Perderias a arma que ainda não te secas por completo, o único trunfo dum dia olhares no espelho e não se sentir envergonhado do reflexo. Demais, tornaria mais árduo o seu despejar da consciência – gesticulando aspas com os dedos.

- Clareie pra mim, companheiro, por obséquio – requestou Eudrico.

- Seu orgulho, hombridade, seu valor. Orgulho não tem medida de riqueza e deve ser mantido sempre em uma das mangas, quando no jogo se está derrotando!

Eudrico pensou pelo instante mais longo desde o prólogo da conversação. Estava por digladiar com a dependência que o mesmo imputara-lhe. Necessitava transpor os muros construídos, tijolo a tijolo, desde a partida de Manuela.

Eram sábias as palavras de Basílio, um tanto óbvias, contudo encharcadas de delicadeza, de perspicácia à periculosidade, pois o seu mau emprego, poderiam enlamear a mente do achacado.

Por mais um bocado, adotaram o silêncio na sala alcatroada, já mais pelo crepúsculo a pesar nas vidraças que pelo hábito.

- Tens razão! Não será enviada! – disse com firmeza, dobrando duas vezes a carta; Basílio mostrou-se inalterado – Mas irei guardá-la por um tempo, até que me acostume com a idéia. Anos não são horas, meu amigo!

- Quer pensar por mais?

- Não será preciso! Amputei de minha vida quase todas as reservas de espírito; um resíduo do orgulho ainda me mantém. Tens razão – mergulhando no bolso os óculos - Não será enviada! – repetindo com intrepidez ainda maior.

- Contento-me totalmente. Não faz horas que lhe digo que Manuela não tem merecimento em relação a ti. Tem anos e anos. Nesses, não prestou nem de longe o papel da pessoa boníssima que conheci, exacerbadamente zelosa...

Eudrico o interrompeu:

- Foi esse zelo exacerbado – em tom mais alto que o anterior e mais pausadamente também – essa inclinação para comigo, a segunda razão de meu exílio temporário, das minhas abdicações e da minha espera por ela...

- A primeira?

- O amor inconteste, verdadeiro, incontido, sufragâneo, absoluto – suspirou o doutor – Nisso, eu me apeguei; esperei então, um final feliz...

- E já o encontrou? – perguntou o livreiro.

- Quem, o final? – Basílio mostrou o polegar em riste – Eu não, o nosso amor sim!

Um tomo de silêncio instaurou-se no ambiente e as cabeças mantiveram-se em constante labor. Eudrico alicerçava-se a não mais voltar atrás na decisão tomada e Basílio buscava meios de tornar a idealização do amigo, fato consumado e irreversível.

Mais um pouco morderam as mentes e abstinentes que estavam, olharam-se por instantes. Daí, Basílio perguntou:

- Já se ateve ao motivo do abandono? –Basílio questionava sobre o fato porque desde o ano de partida de Manuela, entraram em cova todos os ingredientes da trama e em semelhança à súplica do Doutor, os amigos os sepultaram.

Todavia, todo morto que se preze, para iniciar o processo de esquecimento deve parar de respirar, tornar-se frio, intumescer e putrefar. O caso aqui se ausenta das últimas duas manobras.

Sem atentar à reação do amigo que se pôs a refletir, o livreiro prosseguiu:

- Será que por outro? Alguém que lha tratasse com mais desdenha, que lha mostrasse o dono da vez, que lha magoasse suavemente, não sendo a vaquinha de presépio de sempre, que se exigisse mais valor?

- Com certeza! – disse imperiosamente. Basílio surpreendeu-se – Manuela não encontraria outro motivo para me deixar se não fosse ir ter com outro homem. Deve tê-lo conhecido em uma de suas viagens a Milão, num café, num bar, num teatro ou até numa igreja. Nesse ponto minha ingenuidade não alcança, nem nunca tocou – e puxou para frente e de supetão o paletó.

- E em relação à segunda parte? – questionou o livreiro, arqueando-se e apoiando os cotovelos nos joelhos. No semblante, a tradução de “agora que eu quero ver”.

- Como assim? – perguntou o doutor, no limiar entre a inocência e o cinismo.

- Falo da tua plena dedicação, dos teus excessos no tratamento a ela; da ausência de tempero, de pimenta mesmo.

- Quem ama cuida, meu amigo; sabes o que digo! Eu e Manuela fomos cúmplices dum amor visceral, absorto das mesmices – pensou por um tomo e continuou – Não será você, o homem que levou anos a fio, vigilante relação com Ana Silvia, a me dar este tipo de conselho. Admiro-te e gosto-te como dum irmão, mas esta não aceito! – completou, levantando-se a buscar um copo d’água.

A saída tinha a salga duma afronta, porém a estratégia dum alívio. A conversa chegara a sufoca-lo, mais pela distância em tempo que não o tratavam e nisto se deflagra a inabilidade e a imperícia do vitimado, que pelo bravo ofegar de seus aeróbios e aumento do calibre de sua jugular.

Por dois minutos, Basílio ficara matutando na sala.

- Queres? – perguntou na volta, entre os goles.

O livreiro evidenciava um semblante fechado, bastante militante; olhava para o doutor, mas não o via, vagava alhures, por outros portos; nem sequer prestou-lhe atenção quando o mesmo se pôs a extraviar da seriedade; estava á procura de mais argumentos.

- Esquece Basílio, o martírio acabou! – com mediano grau de exaltação – A italiana – assim a chamava quando rixavam – faz agora parte do passado. Movo forças para que ela seja feliz com quem quer que seja, com um italiano qualquer – estancou a fala, pensou um pouco e retomou – caso esteja realmente em Milão. Não me surpreenderia se mentira no bilhete sobre seu destino! – e movimentou-se a se levantar novamente.

Surgira ainda mais a evidência da frescura do cadáver com a observação do Doutor. Não deveria importar-se com o paradeiro da ex. No entanto, mais fácil era exteriorizar as entranhas que cair em terreno desconhecido.

- Senta-te camarada! – em tom amical. Eudrico obedeceu – Senta-te, pois preciso falar-lhe o que me engasga, o que me provoca ânsia.

Basílio subiu e abaixou o olhar por várias vezes, á caça de um preâmbulo convincente ao amigo. Secou as mãos úmidas nos joelhos das calças, estalou os dedos, roeu uma unha e quando o maior eloqüente exigiu uma brecha, colocou:

- Não te entendo Basílio, juro não te entender! Começo a achar que até aqui lutava contra a manutenção de minhas esperanças e agora parece descontente não sei com o que? Talvez...

- Mulheres! – em interrupção abrupta – Gostam de ser bem tratadas – Eudrico ouvia-o atentamente – necessitam de carinho, exigem compreensão e aplaudem-na – deslizou em concha, uma mão sobre a outra. Isso não significa que querem ao seu lado um ser submisso, alienado aos próprios anseios, às próprias vontades – respirou profundamente – O modo com o qual levava Manuela era bom pra ela, sem dúvida, mas não era favo para o amor.

- Fantasiava-se de parede e eu não sabia! – produzindo descomunal ironia á avançada do amigo - Nunca nos viu no íntimo, Basílio!

A exasperação do doutor era bastante compreensível; nenhum dos amigos nunca falou tão abertamente como o livreiro fizera; a novidade causou intenso desconforto ao seu ego e as duras palavras ouvidas ardiam-lhe, mas visavam cicatrizá-lo com brevidade.

Sem mais a dizer, o doutor calou-se em seguimento do comparsa, não se enfadando com a exacerbação ao ânimo do livreiro.

- Se o amor é bom pra ela ou pra você, o aprazimento se dá, mas por pouco. Rio efêmero em meio à mata virgem; se bom para o amor, melhor para os dois e assim o relacionamento se faz perene... Quiçá eterno!

Eudrico promoveu um olhar tão dúbio, exageradamente sonso, que lhe anexou uma careta.

- Hoje você está com a macaca, meu amigo – e sorriu aberta e demoradamente, não tardando em desmanchar o rancor da face. Basílio não se fez jus, fechou-se ainda mais.

- O amor exige respeito, carinho, afeto, compreensão – parou por um átimo – cumplicidade, admiração mútua... No entanto, pertinácia e atitude são ingredientes imprescindíveis para quem lhe deseja vida longa – repetindo o que já dissera, porém com outras palavras.

- Agora entendo para que me alertas! – retirando da face o pincenê dourado de pernas pouco tortas – Compreendo, mas custo a acreditar – levantando-se e pondo-se a caminhar com as duas mãos para trás – Está dizendo que o ponto de fratura do meu romance com Manuela esteve sob minha custódia o tempo todo; que no fim das contas, o equívoco foi meu?

- Era seu o ponto de inflexão e nela estiveram em pertinência as características que deveriam pertencer a você. Ela representou o papel do homem e você o de mulher. A perfídia deu-se em terreno amistoso.

Eudrico era assaz inteligente; sempre sustentou com maestria as questões mais cabeludas as quais se deparara, mas a complexidade movida por Basílio, baralhou-lhe os miolos.

- Então, sem mais nem menos a italiana me abandona e eu enterro-me em culpa, mesmo sofrendo por todos esses meses? – indagou com repulsa.

- O sofrimento não implica em redenção, meu amigo; não implica. Você pecou na lei dos homens e aí não há misericórdia! Esse é meu ponto de vista.

Por nunca dantes os bons parceiros terem intimado secretas minúcias sobre seus relacionamentos amorosos, o clima permaneceu atípico, porém fôra por pouco. No caso de Eudrico e Manuela, Basílio achava que inconveniente seria meter-lhe o nariz; noutro, Basílio nunca se permitira. Conselhos às vezes davam, mas sem tórrida contundência, sem posterior cobrança; faziam-se em prol da amizade.

As palavras do livreiro podiam estar um pouco desatualizadas no contexto ou pecarem pela urgência com que as requeria em troca, sem brandura no retrocesso da maré; o fato é que o homem muito prezava a amizade do doutor e lhas dissera polidamente, baseado no conhecimento do amor literal vivido com sua mulher até os últimos dias, antes de sua partida para o celeste.

- Não obstante a discórdia, pensarei com asseio em tudo o que me disse, Basílio; esteja certo disso! – guardando o pincenê no bolso do flanelado.

- Meu regozijo estará na tua tentativa e não na tua compreensão, meu amigo. A cabeça pensante lhe trará o discernimento; poderá enxergar que a perfídia não brota assim do nada, de uma mente límpida e inescrupulosa; há, com toda a certeza, um caminhamento de lógicas nos meandros, em cujo homem que o percebe, furta-se das conseqüências.

Por minutos sucessórios á formalidade, os amigos falaram de tolices, ninharias que lhes esfriaram os ânimos, trouxeram-lhes descarrego e lhes devolveram o tom jocoso de sempre; desfizeram-se os vincos das testas franzidas.

Clarividente e harmônico para ambos, estava o poder da pessoa amada na fraqueza da mente e na temeridade do espírito da outra; a busca da vital essência guarnecia mais no afetuoso sentimento que apregoavam – e o sentiam em notas mais graves – que nos acordes suaves e despropositados impostos pela vida. Seria, sobretudo, a incessante revelação do amor a sua correspondência e o seu caráter de persuasão – não eram lá muito fáceis de se compreender, de se ensinar – os ingredientes do sucesso de uma relação.

Toda a urgência requerida pelo viúvo movia algo de senso incomum. Pudera um homem exigir de um amigo o desanuviar duma idéia renitente pelos anos, em pouco mais de minutos?

Pode o leitor imaginar em sua sábia faculdade, quais ares traziam as intenções do livreiro, que por belas vezes dizia metáforas e, ao presente, resolvera expor na íntegra de sentido as palavras?

Mas, Eudrico confiava no homem e não cabe a mim, de todas as formas que tenho para tal, julga-lo.

- Então, hoje faremos festa? – atreveu-se Basílio – Um bota-fora da agonia, da abdicação e do desvelo?

Eudrico que não deitara o pensamento, assertou:

- Uma festa – destacando a prima vogal – na acepção do termo, não diria. Mas, uma reuniãozinha entre amigos não nos causaria nenhuma sarna! – arrematou com um riso tímido.

Basílio, em um relampejo de olhar, calçou-se de contentamento pela reação do amigo; abraçou-o e sorrindo disse-lhe:

- Só resta me dizer para brindarmos com champanha! – sobre a abstinência do álcool que Eudrico se imputara.

- Vocês... Não entendo como problema, porém eu ainda me resguardarei – O viúvo ergueu os ombros – Ainda não! Deixe para se impressionar mais com as mulheres; a minha parte está feita e de bom tamanho – riram e antes de se despedirem, o doutor ainda disse:

- Podes chamar os amigos?

Basílio ergueu o polegar, colocando na extrema falange tamanha força que avermelhou o referido, e abaixou, ainda mostrando os dentes.

- Marco às nove? – mencionou porque era balda do doutor.

- Às oito! – respondeu de resvalo, a contrariá-lo cordialmente – Se não lhe peço demais, vá à Nossa Senhora de Fátima e comunique ao capelão Demério da reunião, mesmo que não apareça, ficara bem em saber.

- Com toda certeza – respondeu o livreiro.

Basílio saíra tão radiante da casa do doutor que não tivera logo à própria. Parava quem encontrava e repetia:

- O Doutor saiu do gelo! Festa em sua casa, às oito!

Celebrava duplamente o livreiro: pelo amigo e por ele próprio - jamais chegará a carta, às mãos de seu caso oculto.

Cesar Poletto
Enviado por Cesar Poletto em 08/08/2006
Código do texto: T211930
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