A proporção

Quando entra mulher aqui, e por algum motivo, algumas delas ficam sozinhas na sala, quando ele está preparando algum petisco, ou ausente de qualquer forma, eu gosto de ficar escutando as conversas. São invariavelmente iguais em um ponto: todas elas o acham fechado, triste mesmo. Teve até uma escritora que usou a palavra “casmurro”, certa vez. Essa tinha dito que havia algo de lindo e triste nos olhos dele, que ela sentia vontade de descobrir, de proteger e conhecer. Dessa aí eu gostei, foi a que mais chegou perto. E tinha pernas macias.

Façam-me o favor. É muito bom chegar aqui, seja como amiga ou namorada, e criticar o jeito de Eduardo sem saber o que ele fez ou sentiu na vida. Nem todo homem triste é triste por que quer, será que essas menininhas já pensaram nisso?Elas adoram estigmatizar. No círculo de amigos, Eduardo é o físico amargurado, de passado misterioso. Super interessante para elas, não porque estejam interessadas nele, mas na aura de mistério que o envolve. É preciso ele estar constantemente assim, tenso, introspectivo, para eles gostarem dele. Mulher gosta dessas besteiras. Do desafio de mudar o homem. São todas iguais. Eu sei porque eu fico escutando as conversas, bebendo meu leite tranqüila, enquanto elas falam baixinho. Às vezes, me enrosco entre elas, ronrono, faço agrados, pra elas ficarem mais, pra eu poder ouvir mais. Gosto de sentar e ver o carnaval de besteiras em meu redor.

Estou aqui faz tempo. Ainda me lembro da cara de menino desesperado que ele fazia quando entrou naquela feira. Eduardo sempre foi muito certinho, e nesses lugares, quando a polícia chega, é um deus-nos-acuda. Só Marcella pra fazer ele ir lá. Marcella tinha manifestado o desejo de ter um gato, um gato persa, e Eduardo na época nem em sonhos que tinha dinheiro pra isso. Então ele teve que recorrer ao mercado negro mesmo.

Os homens da feira já estavam jogando as gaiolas nas carrocerias e ligando os motores, dando fim ao turno daquela noite. Era sempre rápido, tinha que ser, porque, a certa hora da madrugada, os tiras passavam fazendo ronda. Mas aquele beco era muito bom para vendas, então os “comerciantes” ficavam até quando fosse possível. O resultado era que, faltando cinco minutos pra as viaturas aparecerem nas esquinas, era um corre-corre dos infernos, gente fugindo, piado, latido, ruídos das gaiolas jogadas no fundo das carrocerias, o rastro de borracha que os carros deixavam no chão.

Foi nesse ambiente que eu conheci Edu. Vi ele de longe, rondando do lado oposto da rua, muito escrupuloso, como quem está fazendo uma coisa errada. De fato, estava, porque obviamente a feira era ilegal. Naquela época, eu não entendia por que vender bicho podia ser ilegal, por que alguns ficavam confortáveis nas lojas e eu tinha que ficar naquela merda. Eu era muito jovem. Quando a gente é jovem, é puro vigor e cabeçada.

As viaturas já estavam zunindo quando ele finalmente me viu. Troquei de mãos rápido, mediante pagamento de R$ 250 em espécie, que meu antigo dono cheirou e observou enquanto arrumava seus troços pra escafeder. Eduardo deu com um policial, mas saiu correndo com minha gaiola nos braços, e, quando a coisa toda acalmou, eu já estava no banco da frente do carro dele, esperando para conhecer minha futura casa e aquela que tinha sido a razão do crime do rapaz honesto. Eu estava também orgulhoso do meu preço. Você pode dizer que um gato persa vale mais de R$ 250,00. Mas, naquela feira, tinha mulher se vendendo por R$50. Ou menos, se fosse novinha.

Marcella era o que se pode chamar de uma moça bonita. Magra, por causa do ofício de bailarina, tinha olhos felinos de um azul inocente e aqueles longos cabelos castanhos onde eu gostava de me enrolar. Ela ria com isso. E Marcella amava Eduardo.

Eles dividiam as despesas do apartamento, eram amigos, mas quando eu cheguei, já tinham virado namorados. Ele nunca contou a ela como me conseguiu. Não por causa da ilegalidade do negócio, que Marcella não era moralista nem entendia de política, tributos, mas pra não trazer preocupação a ela. Ele sabia que ela ia se preocupar, se soubesse. Ele sabia que era amado. O que ele não sabia, era da proporção em que era amado. Pouco.

Você pode nem estar gostando da minha história, dizer que eu sou enrolado, que meu estilo é meio cheio de vai-e-vem. É mesmo. Mas o amor também é. Nessa vida que levo por aí, cheia de saídas noturnas, becos e confissões, já ouvi muita gente reclamar de coisas que machucam muito, mas que não se sabe exatamente o que são. As amigas de Marcella vinham com essa queixa direto...”O namoro não deu certo”. “Por que?”. “Não sei”. E eu pensava: “Como assim? Tão sério e você não sabe?”

Mas com Eduardo e Marcella foi igualzinho, eles foram esfriando, esfriando, e nem ele nem ela nem eu sabíamos dizer ao certo por que. E olhe que, repito, eles se amavam. Mas o problema estava justamente aí: na proporção.

Hoje eu conheço, hoje eu sei. Sei que não basta ser amado. É preciso ser amado com a amplidão das coisas infinitas, com paixão, com força. Marcella não tinha isso não. Ela foi apaixonada por ele por um tempo, mas ele a amou por muito mais. Não sei se você me entende. Se for como Eduardo, vai entender. Eduardo é um cara que demora a se envolver nas coisas, mas, quando o faz, ele se entrega. Marcella, até que se entrega, mas não se envolve. Eduardo passava meses fazendo planos para os dois, que ela desmanchava em segundos se uma amiga chamasse pra sair, mas que ele desmanchava com prazer, se ganhasse um beijo dela e ela dissesse que estava feliz. Se Edu ficava doente, ela não escanteava, ia à farmácia, comprava remédio, mas era aquela cordialidade meio distante. Quando Marcella adoecia, tinha que ver... Ele faltava trabalho (sagrado trabalho), velava se precisasse, acho que morria se precisasse... Às vezes, ele distanciava um pouco, achando que talvez pudesse incomodá-la, já que os artistas são livres, Marcella não queria ninguém controlando sua vida. Marcella parece que nem percebia o distanciamento. Tinha muitos amigos, eles vinham direto, ela às vezes dormia com alguns, só dormia mesmo, sem problemas, Edu é um doce. Ele morria por dentro quando sentia que ela não precisava desesperadamente dele, como ele dela, mas vivia bem com isso. Não faria escândalo para não incomodá-la. Nunca fez.

Enfim, era aquela merda. Aí a coisa foi definhando. Ela achando que estava tudo bem. Ele destruído, sem querer amargar com queixas. Um dia ela pediu que ele falasse se alguma coisa o incomodava, e ele falou mais ou menos a metade do que sentia (eu escuto as conversas, eu durmo entre os dois na cama, eu vejo. Eu sei que ele sentia mais do que aquilo). Ela até tentou ser legal, mas já havia perdido o interesse nele.

Depois três meses, veio a separação. Não preciso dizer quem se retirou, nem quem sofreu mais. Eduardo foi morar sozinho. Aqui se lê Newton, Einstein, Coulomb e adjacências, e, também, muito e sempre, Florbela Espanca.

Olhe, meu amor, eu vou lhe contar: na vida, a gente às vezes vive uma história, aprende com ela, e pronto. E está bem. Os fatos sempre são os mesmos, mas a repercussão dos fatos é diferente para cada pessoa. Cada um sabe de si. E o que é melhor nisso tudo? O fato de o homem estar “condenado à liberdade”. Estar vivo e usar nosso tempo para que a vida seja boa. Isso às vezes envolve ficar meio orgulhoso, sabendo que você tem muito amor, mas que nem todos vão saber receber seu amor, nem entender o quanto é grande. A proporção em que é grande.

Eduardo ainda não entendeu isso, é um romântico. Quando ele bebe, e está sozinho, no meio da noite eu ainda escuto um “Marcella”, de vez em quando. Às vezes, traz mulheres, eu ronrono para elas, bebo meu leite, fico escutando. Elas não entendem mesmo. Eu passo minhas unhas sobre o peito dele, de noite na cama, é meu jeito conforta-lo. Passamos horas ouvindo música e nos contemplando, às vezes ele chora. E a gente vai levando. Edu é jovem, forte, tem uma vida inteira pela frente. Eu então, tenho sete. “Casmurro”? Ah, tenha a santa paciência.

Jéssica Callou
Enviado por Jéssica Callou em 15/08/2006
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